Resumen de la Ponencia:
Este artigo objetivou analisar as mudanças culturais percebidos na comida caiçara da Ilha Grande, seus modos de fazer, utensílios, levando em conta os costumes de habitantes pré-históricos até o período contemporâneo, análise esta que integra pesquisa para tese de doutorado, ainda em construção. As comunidades caiçaras são consideradas as provenientes da miscigenação de indígenas, negros africanos escravizados, e colonizadores europeus. Essas comunidades situam-se no litoral das regiões sul e sudeste do Brasil, e tem sua alimentação e trabalho tradicionalmente baseados na pesca e da agricultura artesanais, embora, atualmente, sua economia seja baseada principalmente no Turismo, na maioria dos casos, o que ocorre também na Ilha Grande. Para ter maior proximidade com o tema em questão, esta pesquisa qualitativa com fins exploratórios estabelece caminhos para estudos vindouros, buscando conexões entre os antigos e atuais hábitos alimentares de populações de herança caiçara situadas na Ilha Grande (RJ), pelo processo de lembrança e esquecimento da memória, que preenchem de sentido o ato literal e simbólico de comer. A pesquisa ocorreu por meio de levantamento bibliográfico e documental, e pesquisa em campo, de inspiração etnográfica, com entrevistas semiestruturadas e observação direta. Os dados primários e secundários obtidos em pesquisas entre os anos de 2008 e 2022, geraram grandes categorias de análise, a partir das quais foi possível desenhar ligações que desencadearam na alimentação contemporânea dessas populações. Nesse sentido, levou-se em consideração os ciclos econômicos (e alimentares) das populações locais, da Baía da Ilha Grande e, de modo geral, do próprio Brasil, tendo em vista a importância história desses ciclos para o país. Sobretudo, essas conexões podem ser percebidas até hoje nos modos de vida, trabalho e alimentação mesmo em comparação com estudos já existentes sobre os habitantes pré-históricos da Ilha Grande (sambaquis), os indígenas Tupinambás, que habitaram a região. Esses marcos históricos são pertinentes para entender as implicações do modo de vida caiçara no ambiente em que vive. E, considerando a comida como uma forma de linguagem, simbolicamente ela comunica sua ancestralidade e as mudanças socioculturais sofridas no território da Ilha Grande.
Introducción:
Este artigo, parte integrante da pesquisa para tese de doutorado ainda em construção, objetivou identificar pontos históricos importantes para o processo de mudanças culturais que culminaram na formação da cultura alimentar caiçara da Ilha Grande, atentando aos modos de fazer, aos utensílios, às técnicas, aos rituais envolvidos, levando em conta os hábitos de habitantes pré-históricos até o período contemporâneo bem como o contexto por trás.
Sabendo que comer é mais que só levar os alimentos à boca e nutrir-se, porque a comida comunica a história dos povos, carregando em si a ancestralidade, as dificuldades, as conquistas, a memória, percebeu-se ser necessário para a análise da cultura alimentar de comunidades caiçaras na Ilha Grande, compreender os fatos atrelados à história da ilha e da região circundante, a partir dos ciclos vivenciados por todos aqueles que a habitaram até hoje. Buscou-se, portanto, situar os acontecimentos históricos e hábitos alimentares dessas populações e como se relacionavam com o ambiente.
Desarrollo:
A comida escreve histórias
A comida traduz os recursos naturais em cultura, a existência em modos de existir. Há quem pense em cultura e natureza como entes díspares, que formam uma dicotomia, mas estão intrinsecamente relacionados. Não há cultura sem natureza, e a própria natureza é vista, sentida e transformada de acordo com os diversos modos de existir, dentre os quais, o ser humano faz parte.
Cozinhar, mais que uma necessidade biológica que garante a sobrevivência, é um processo cultural, ao que estão vinculados comportamentos e crenças, pois é “no pensar, no sentir, no fazer e no viver que a noção de natureza se constrói e se reconstrói”, segundo Irving (2012, pp. 43-44), que entende ser por meio da cultura que se traduz e retraduz o sentido da natureza. Um prato também é carregado de fazeres e saberes e contam a história de quem o preparou e de toda uma população (Almerico, 2014; Wilk, 1999; Santili, 2015; Boutaud, Becut e Marinescu, 2016).
Nota-se seu sentido simbólico, baseado na vivência, quando Woortmann (2013) cita que os alimentos são pensados antes de serem comidos, é um habitus alimentar, para além de sua composição nutricional, que é entendido como um saber social em dois sentidos, entre indivíduo e sociedade (Bordieu, 1983, segundo Woortmann, 2013).
Os insumos disponíveis, o modo de preparo, os utensílios utilizados, a temperatura, o tempo, as combinações de sabores e saberes e até os tabus alimentares apresentam significantes responsáveis pela tecitura de uma “teia de significados” que enraíza, engendra, costura, mistura e faz pertencer.
As preferências por sabores e modos de preparo são produto de uma realidade social e de uma construção histórica (Montanari, 2013). Quanto a isso, Woortmann (2013) coloca uma diferença entre o comível e o comestível. Enquanto este tem a ver com o que está disponível na natureza, para consumo humano, aquele está relacionado a culturas particulares, diferenciando-se até épocas vivenciadas dentro de uma mesma cultura, já que o que é “culturalmente comível” para um grupo num espaço-tempo pode não ser (mais) para outro grupo ou o mesmo grupo num espaço-tempo diferente.
A construção simbólica do prato se dá numa passagem do plano da natureza, representado pelo alimento, algo que pode “vir a ser” consumido, para o plano da cultura, representado pela comida, como algo que, depois do preparo, pode ser consumida (Woortmann, 2013).
2. A Ilha Grande através do tempo
2.1 Pré-história: economia coletora
A Ilha Grande localiza-se no município de Angra dos Reis, litoral sul do estado do Rio de Janeiro, a 149km da capital, Rio de Janeiro. Seus cerca de 193km² de área de Mata Atlântica, reconhecidos como território caiçara, são protegidos atualmente por três unidades de conservação (Parque Estadual da Ilha Grande, Reserva Biológica da Praia do Sul, Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Aventureiro).
As comunidades caiçaras são consideradas as provenientes da miscigenação de indígenas, negros africanos escravizados, e colonizadores europeus, e “caiçara” é uma classificação que se faz das populações “caipiras” do litoral das regiões sul e sudeste do Brasil (Prado, 2006).
Fato é que são comunidades cuja vida cotidiana vê-se tradicionalmente distribuída entre a terra e o mar, e seu trabalho e produção alimentar baseiam-se, de forma mista e complementar, entre “roçar” e “matar peixe”, para sua subsistência, e venda de excedentes na cidade, o que transpassa uma definição engessada do “ser caiçara", em oposição ao conceito de cultura dinâmica de Geertz (1973).
Esse rótulo é apropriado cada vez mais por essas populações como uma nova forma de autorreconhecimento enquanto “população tradicional”, e que, antes, se autodenominavam como “badjecos”, “filhos do lugar”, ou simplesmente como “ilhéus” ou “moradores”.
Os sistemas florestal e antrópico desenvolveram-se em profunda interação, durante os ciclos econômicos, que serviram como pano de fundo para os modos de vida dos núcleos familiares em comunidades inteiras. Por isso, considera-se, aqui, o contexto dos ciclos econômicos e alimentares, a fim de identificar as mudanças e interferências antrópicas no ambiente, bem como o uso dos insumos provenientes do ambiente para sua subsistência e manutenção no lugar (Hecht & Posey, 1989; Gadgil et. al., 1993; Adams, 1994 citado por Oliveira & Netto, 2006).
Tenório (2006) levantou a existência, há cerca de 3000 anos, de um grupo pescador, coletor e caçador, que viveu num pequeno morro na parte sul da Ilha Grande, hoje chamado de Ilhote do Leste, e localizado dentro de uma unidade de conservação de proteção integral, a Reserva Biológica da Praia do Sul.
A escolha do local de fixação da população possivelmente foi porque o ilhote era estratégico tanto para vigiar os inimigos, quanto por ser possível ver cardumes entrando na lagoa, a 500m de distância do ilhote. Ao redor, tinham uma variedade de insumos alimentares disponíveis nos manguezais, na restinga e na mata. Mesmo que tenham incrementado a alimentação com moluscos, devido à grande quantidade de peixes encontrados em fogueiras mais antigas no ilhote, considera-se que eram predominantemente pescadores (Tenório, 2006).
Chama a atenção a retirada, da mata, de troncos de bacurubu, que eram matéria-prima para a feitura da canoa, até hoje utilizada, embora em menor escala, por várias famílias da Ilha Grande. Oliveira & Netto (2006, p. 43) destaca que não foram encontrados vestígios como cacos de cerâmica, indicadores da existência de agricultura, mas os numerosos sulcos nas rochas poderiam ter a finalidade de derrubar árvores para a construção de canoas
Os moluscos tornaram-se alimento mais significativo para sua dieta depois que houve uma proliferação de novas espécies no canal que daságua no mar. Eles eram coletados, levados para o ilhote, consumidos, e as carapaças eram amontoadas próximo ao barranco e empurradas morro abaixo.
Embora essas populações tenham tido uma relação de maior proximidade com o mar, os “rastros” deixados pelo homem pré-histórico na floresta foram pontuais, e revelam certa complementaridade, tanto na produção de canoas para uso em alto mar e navegação de cabotagem, quanto com a caça como complementar em sua alimentação.
Oliveira & Netto (2006) indica que a cultura de pesca, coleta e caça prolongou-se até contato dessas populações com indígenas tupis-guaranis e a invasão dos europeus ao território, quando ocorreram importantes mudanças nos hábitos alimentares.
2.2 Economia indígena Tupinambá
O território dos Tupinambás, cobria grande parte do litoral do estado do Rio de Janeiro, entre Cabo Frio e a Baía da Ilha Grande, estendendo-se até São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Hans Staden, navegador alemão e considerado o primeiro a fazer uma etnografia no Brasil, tendo vivido, capturado, por anos, entre os Tupinambás, relata em “Duas viagens ao Brasil” (1557) que viviam no território entre a serra e o mar, apesar de seu território se estender até “além das montanhas”, os descreveu como “caçadores, coletores e cultivadores de mandioca habilidosos”.
Quando os europeus aqui chegaram, os indígenas não levavam mais uma vida baseada no nomadismo (Quintiliano, 1965), embora a distribuição da população pelo território se desse mediante a abundância dos insumos necessários a sua sobrevivência, alimentação e distração. Construíam suas casas em lugares onde havia água, madeira, peixes e outros animais, e, ao esgotarem os insumos, mudavam-se para outro lugar, ainda próximo ao local anterior (Capaz, 1996; op. cit., 1965).
A fase agrícola dos grupos indígenas deve ter tido pouca expressividade em razão da existência de outras fontes, como a pesca (Oliveira & Netto, 2006), o que é corroborado por Fernandes (1949) sobre os Tupinambás em geral, e por Nesi (1990) especificamente a respeito da Ilha Grande, os quais citam que a terra era tão fértil, e tamanha era a abundância de frutos, caças e peixes, que haveria uma certa “desproporção” entre as necessidades dos grupos locais e o que dispunham do ambiente.
Os Tupinambá utilizavam técnicas de produção complexas, uma série de tipos de flechas e técnicas de pesca, e instrumentos para plantio, além da prática de queimada para a preparação do solo para o plantio, que se assemelha à técnica empregada pelas comunidades caiçaras no preparo do solo para a roça de coivara (Fernandes, 1949).
A caça e a pesca tinham um papel complementar às raízes cultivadas e consumidas como farinhas, ralando a raiz na pedra, prensando no tipiti, peneirando e secando num tabuleiro de barro. A produção de farinha de mandioca também guarda semelhanças da “farinha da terra” produzida pelas famílias caiçaras até hoje.
Staden (2008), Souza (1587), Fernandes (1949) e Capaz (1996) exaltam sua destreza como caçadores e pescadores (mergulhadores) e seu senso de orientação pelos sinais da natureza. Mas sua percepção e conhecimento sobre o ambiente em que viviam acima da visão física certamente neles gerava sua perícia na caça e na pesca.
Além da alimentação, os insumos serviam para a produção de instrumentos utilizados na caça e pesca, como relatado em Staden (2008, p. 171) sobre pequenas redes de pesca produzidas a partir de “longas folhas pontiagudas que chamam de tucum”.
Staden também relatou que entravam em terras dos Tupiniquins duas vezes por ano violentamente. Uma, para conseguir o milho maduro (abati), que usavam para preparar uma bebida fermentada chamada de cauim, feita também com mandioca. E outra, para perseguir um peixe chamado de pirati, para produzir e levar para sua terra, uma farinha de peixe, chamada de piracuí.
Não tinham o costume de domesticar animais. Fernandes (1949), entretanto, menciona macaco, cachorro, tatu, porcos, papagaio, pato e galinha como animais domesticados, que se tornavam “tabus alimentares”, já que não os comeriam.
Os Tupinambás eram uma população antropofágica, e a principal razão para essa prática não era a alimentação do corpo, mas para vingar a morte dos seus pelas mãos dos “perós”, como chamavam os portugueses, de quem eram inimigos, o que Eduardo Bueno chamou de “canibalismo ritual” no prefácio do livro de Staden (2008). Era um alimento espiritual, e Staden, após ser capturado pelos indígenas e levado até a “aldeia”, foi obrigado a gritar “Aju ne pee remiurama”, que significa “Estou chegando, sou a vossa comida”.
Por volta de 1550, os Tupinambás realizavam trocas com seus inimigos, portugueses e com seus aliados franceses, sempre em alto mar. Seu alimento, a farinha de mandioca, pimenta, além de penas e pau-brasil, eram trocados por facas, anzóis, espelhos, pentes e tesouras (Staden, 2008).
Sobre o preparo dos alimentos, assavam a carne antes de comer (op. cit.). Para conservar o peixe ou a carne durante algum tempo, faziam o moquém, técnica de assar sobre pedaços de madeira, até defumar e secar a carne. Com essa técnica, conservavam a carne, além de facilitar seu transporte, em forma de farinha. Contudo, como a economia tupinambá consistia em produzir e coletar o que fosse necessário ao consumo imediato, não lhes era central o conhecimento sobre a conservação de alimentos. Inclusive, não utilizavam sal nos alimentos (Fernandes, 1949; Nesi, 1990).
No final do século XVI, foram exterminados e dispersados os tupinambás. Nesse momento, com a miscigenação e a permanência de colonos nas regiões próximas ao Rio de Janeiro, ocorriam a pesca de subsistência e, paralelamente, a pesca da baleia, tanto na Ilha Grande quanto na Ilha da Gipóia, também na Baía da Ilha Grande (Capaz, 1996).
Pesca de baleia (século XVII)
Durante o século XVII, os habitantes da Ilha Grande viviam da pesca, da lavoura de subsistência, da extração de madeira e principalmente do cultivo de cana, o que fez surgirem os primeiros engenhos para a produção de açúcar e de aguardente” (Capaz, 1996, p. 95).
Mas o que marcou esse século, foi a pesca, que, nos tempos coloniais, já era uma atividade de importância na região, e mais especificamente, na Ilha Grande, já que havia abundância em peixes e grande variedade de espécies (op. cit.). No final do século XVII, desenvolveu-se a pesca da baleia na Ilha Grande (Nesi, 1990).
Mello (1987) cita a aplicação do óleo de baleia como componente da argamassa utilizada na construção de edificações. Na Ilha Grande, há, por todos os lados, ruínas de edificações levantadas à base de argamassa com óleo de baleia.
A exploração econômica da pesca de baleia prolongou-se pelo século XVIII, tendo seu declínio no século XIX (Mussolini, 1980). Juntamente a isso, iniciou-se um novo ciclo de exploração econômica, o Ciclo das fazendas e à economia de plantation.
2.3 Ciclo das fazendas e economia de plantation (séculos XVIII – XIX)
O ciclo das fazendas foi caracterizado por uma intensa exploração das florestas, caracterizada pelas monoculturas, que recortavam os morros em desenhos retangulares. O litoral sul do estado do Rio de Janeiro era ocupado por muitas fazendas entre os séculos XVIII e XIX, em que se plantavam principalmente cana-de-açúcar, cacau e café. Como a cana-de-açúcar geralmente é plantada em sistema de monocultura, pode-se afirmar que tenha iniciado uma devastação das áreas de mata primária (Oliveira & Netto, 2006). Na Ilha Grande, foram estabelecidas, nessa época, fazendas em Abraão, Dois Rios e Parnaioca (Wunder, 2006).
Entre 1725 e 1764, foi cultivada cana-de-açúcar, o que culminou na produção de aguardente, que foi reconhecida na região até o século XX. Também aparece a cultura de café na Ilha Grande, entre 1760 e 1890, além de Mambucaba, sendo, entretanto, a cana-de-açúcar mais importante que a de café (Mello, 1987; Lima, 1974; Capaz, 1996).
De acordo com Lima (1974), até o ano de 1850, Angra dos Reis configurava como um dos mais importantes polos de lavoura e comércio do Brasil, contando com dois dos mais importantes portos do município Abraão e Sítio Forte, na Ilha Grande, por onde ocorriam a importação e exportação de/para províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
Além das áreas destinadas a monoculturas e grandes lavouras, começaram a surgir no início do século XIX, variações na ocupação litorânea, evidenciando-se os pequenos núcleos localizados à linha costeira, que giravam em torno de centros urbanos maiores, enviando sua pequena produção de farinha de mandioca, peixe e café (Mussolini, 1980; Capaz, 1996).
2.4 Caiçaras e o manejo florestal de subsistência (séculos XIX e XX)
As comunidades caiçaras situam-se no litoral das regiões sul e sudeste do Brasil, e sua cultura é muito característica das comunidades litorâneas no sul do Rio de Janeiro e norte de São Paulo.
O “ser caiçara” dessa época está relacionado com uma vida relativamente fechada, com pouco contato com o mundo de fora, ou recebendo pouca influência cultural, de produtos, e que “por não dispor de meio aquisitivo, resultou um aproveitamento intensivo, quase exclusivo e mesmo abusivo dos recursos do meio, criando-se, por assim dizer, uma intimidade muito pronunciada entre o homem e seu habitat” (Mussolini, 1980). Além disso, como seus ancestrais Tupinambás, esse saber sobre os movimentos da natureza demonstra sua integração com seu ambiente de vivência.
Oliveira & Netto (2006) indica que, na área da Reserva Biológica da Praia do Sul foram encontrados vestígios de antigas comunidades caiçaras, como “baldrames de casas, fornos de farinha e adensamento de espécies semidomesticadas como o cambucá (Marliera edulis)” (p. 46). Com a economia mais voltada às roças de coivara para subsistência, o trabalho da terra era central.
Tinham sua alimentação e trabalho baseados na pesca e da agricultura e subsistência, a roça de coivara, de herança indígena, com o plantio de mandioca, feijão, guando, inhame, abóbora, milho, mamão, melancia, batata-doce, cará, caruru, taioba, bem diferente dos moldes da economia de plantation, na fase anterior da Ilha Grande.
Segundo Mussolini (1980), a farinha de mandioca, conhecida também como “farinha da terra”, é um exemplo de produto de subsistência. A mandioca, chamada de “pão dos trópicos” e de “pão dos pobres” foi um substituto ao pão europeu, tem seu cultivo muito presente em todo o território do Brasil.
As canoas de voga, “feitas de um tronco só escavado pacientemente a machado, enxó e mesmo a fogo – herança indígena que é” eram utilizadas para transporte de aguardente e outros excedentes para os centros urbanos. De acordo com Mussolini (1980), elas desapareceram por volta de 1920, quando barcos de cabotagem começaram a ser utilizados para transportar essas cargas, sobrando poucas canoas para contar a história daquele tempo. Na Ilha Grande, eram feitas a partir do tronco do bacurubu.
Alimentavam-se dos insumos que tinham à sua disposição, e havia uma situação de segurança alimentar, complementariedade de nutrientes e variedade de alimentos, sem agrotóxicos e conservantes, porque era o que a terra e o mar lhes concediam naturalmente. As compras na cidade eram poucas.
Mussolini (1980) traz o relato de um morador do litoral norte de São Paulo, que se aplica também às comunidades do litoral sul do Rio de Janeiro, sobre o que se trazia da cidade nas canoas: compras como “uma lata de querosene, um saco de sal para o peixe, anzol pra pescar, pano para vestido”.
É importante iluminar a complementariedade da terra e do mar como ponto central da cultura alimentar caiçara. A mais comum é a associação feita do peixe com a farinha de mandioca (Mussolini, 1980, p. 226), a associação do mar e da terra, do trabalho na pesca e na roça, do trabalho masculino com o trabalho feminino, do trabalho de provimento com o trabalho de cuidado (Silva, 2013), do núcleo familiar com o núcleo comunitário, família e sociedade (Mussolini, 1980, p. 238).
Na passagem do século XIX para o século XX, o cultivo em fazendas na Ilha Grande tornou-se menos interessante por haver outras opções mais viáveis com a abertura de novas lavouras no continente, o que se deu pelo fechamento de portos na Ilha e abertura de rodovias e ferrovias que facilitavam o acesso, o que, comparando-se à topografia montanhosa da Ilha Grande e ao transporte caro por barcos, já era um fator dificultador para o cultivo. Com o declínio das grandes lavouras na Ilha Grande nesse momento, iniciou-se a regeneração da mata. Nessa mesma época, entre 1893 e 1903, a antiga fazenda de Dois Rios recebeu nova função, tornou-se prisão (Wunder, 2006).
Oliveira & Netto (2006) consideram que a ocupação populacional “em função da fertilidade do solo e da capacidade de manutenção dos sistemas de ciclagem de nutrientes” favorecia a formação de diferentes fragmentos funcionais e mosaico formados pela complementaridade e diversidade, que remetem à conservação da mata, pela sustentabilidade dos modos de produção e pela diversidade de fontes nutricionais e à segurança alimentar das populações, pela complementaridade dos frutos da terra/roça com os frutos do mar/pesca.
Anos 1930-1980
Se, por um lado, observou-se o declínio da produção agrícola, a pesca cresceu vertiginosamente no século XX, por influência dos imigrantes japoneses, que agregaram técnicas de pesca e abriram fábricas de sardinha em torno da ilha, o que chegou a atrair pessoas do continente para o trabalho.
Mussolini (1980) aborda essa questão, trazendo a tendência de mudança, entre as décadas de 1930 e 1980 da pesca de sardinha fosse se perdendo seu caráter local para se tornar uma atividade comercial, com barcos de procedências distintas.
As inovações tecnológicas são consideradas uma dessas mudanças, trazidas pelos movimentos de imigrantes japoneses chegando ao litoral brasileiro, principalmente pelo porto de Santos. A partir da década de 1930, os barcos de pesca motorizados, as “traineiras”, dentre outras tecnologias de pesca, foram introduzidas a partir da Ilha Grande, impulsionaram o mercado de pesca e salgas de sardinha, e desbancaram as canoas de bacurubu, que foi, gradativamente, perdendo seu lugar central no trabalho nessas comunidades. Apesar disso, as rotas se mantinham as mesmas, o modo de pescar é que foi sendo alterado com o tempo.
A autora (op. cit.) ainda coloca que os japoneses que migraram para o Brasil e instalaram-se no litoral norte de São Paulo e no litoral sul do Rio de Janeiro foram agregados como sujeitos locais, também submetidos a influências externas. Na Ilha Grande, eles concentraram-se principalmente na Praia do Bananal e na Praia do Matariz.
Na década de 1980, havia 18 salgas na Ilha Grande. As sardinhas em lata eram despachadas para a região Norte do Brasil, porque o produto não tinha boa aceitação por parte do consumidor do estado do Rio de Janeiro. O processo de salga, todo artesanal, começava com a compra de sardinhas frescas, colocadas em salmoura por 10 a 15 dias, desvisceradas, prensadas e enlatadas (Mello, 1987). Moradores e moradoras das praias onde as fábricas foram instaladas eram contratados para o trabalho braçal.
Há relatos de moradores que pegavam sardinha na ponte (cais) para sua alimentação. As trabalhadoras da salga também levavam alguma sardinha em lata para casa, do que excedia a produção. Tamanha era a abundância da sardinha, era recorrente o discurso: “Um dia, vocês vão querer comer peixe e não vai ter”.
Entre os anos 1970 e 1980, foram criadas áreas protegidas na Ilha Grande, que facilitaram a recuperação da cobertura florestal, pela proteção da natureza, ao mesmo tempo em que houve, a partir daí, uma desproteção sociocultural, dos modos de vida, com a progressiva diminuição das roças itinerantes e do distanciamento dos espaços de pesca artesanal.
Entre 1973 e 1975, houve a abertura da Rodovia Rio-Santos, para ligar a capital do estado à Usina Nuclear de Angra dos Reis e ao porto de Santos. A Rio-Santos abriu caminho a lugares anteriormente de difícil acesso, para turistas “desbravando o (a ideia de) paraíso”. Alguns desses turistas se apaixonavam pelo lugar e tornaram-se empresários na Ilha Grande e região, consequentemente, escancarando o problema da especulação imobiliária e da gentrificação, sintetizado pelo poeta paratiense Luís Perequê em “O pescador troca a rede pela colher de pedreiro”.
2.5 Ciclo do Turismo (1990 - dias atuais)
A instalação das fábricas de sardinha, a abertura do Instituto Penal Cândido Mendes, seu posterior fechamento, em 1990, e implosão, em 1994, deu início ao ciclo do Turismo, levando ao “estabelecimento de redes de fluxos mais intensas com o continente” (Oliveira & Netto, 2006, p. 54). A rodovia Rio-Santos foi canal do fluxo de turistas vindos de grandes centros urbanos à Ilha Grande.
Isso, somado às restrições impostas pelo órgão ambiental ao cotidiano dos moradores da Ilha, teve efeitos em sua cultura alimentar e de trabalho nas roças e na pesca. Aquelas não puderam mais ser itinerantes, e seu pousio foi interrompido, tendo em vista que uma vez que houvesse a recuperação da mata, não poderia mais ser roçada. Hoje em dia, a canoa também tem um papel mais “patrimonializado”, como parte do acervo de museu. É usada ainda para o trabalho, mas não como antes.
Houve, com isso, uma situação de desamparo, viram-se obrigados a mudar para sobreviver. Mudar hábitos alimentares, de trabalho, mudar da ilha para a periferia de Angra dos Reis, vendendo seus terrenos a preços módicos, comovidos pelos argumentos da especulação imobiliária.
Oliveira & Netto (2006) citam a expressiva abertura de bares no Aventureiro, para venda de bebidas e comidas “típicas”. O que é considerado e vendido como “típico” pode ser o peixe frito dos pratos feitos, mais conhecidos como “PFs”, está superficialmente relacionado à cultura alimentar das populações caiçaras da Ilha Grande. A diferença não é notada apenas no prato e na mesa, mas também nas roças, que perdem sua extensão e significado, devido à maior facilidade de aquisição de produtos no continente, ao cerceamento da itinerância das roças de coivara, depois da criação das unidades de conservação, e devido ao Turismo ser um trabalho mais fácil que o trabalho duro na roça e na pesca. O mutirão, base da cultura de trabalho cooperativo dessas populações vem sendo trocado por concorrência.
As mudanças culturais transpõem a alimentação, passam pela valorização da cultura dos “de fora”, os turistas, e podem ser percebidas também no modo de se vestir, de se divertir e nas tatuagens, que fazem parte de um novo modo de se reconhecer como “caiçaras”, “filhos do lugar”, recriando um sentimento de pertença ao seu território.
Nesi (1990, p. 157) lista como “pratos típicos” da Ilha Grande “o peixe com banana verdolenga; o bobó de camarão; as lulas recheadas; as sirizadas ou a sopa de siri; as peixadas fritas ou cozidas”. Além destes, o angu de coco, o café de cana, peixe seco, pirão de banana verde, biju na folha de bananeira, bolinho de frigideira, doce de laranja, inhame cozinho e fruta-pão no café da manhã também são pratos citados como parte da alimentação cotidiana das comunidades da Ilha Grande.
Considerando os estabelecimentos de alimentação da Ilha Grande, a maior parte dos proprietários são “de fora”, principalmente quando se situam nos principais centros turísticos. Em comunidades do lado de trás da Ilha, em mar aberto, os estabelecimentos são, em sua maioria, de proprietários da Ilha. Os insumos, como carnes e hortifruti, são comprados fora da Ilha, em Angra dos Reis ou centros de abastecimento no Rio de Janeiro (Bursztyn, 2016).
Para Bursztyn (op. cit.), há uma homogeneização da oferta de refeições, “desenraizadas da cultura alimentar local”, com exceção do reconhecido peixe com banana. Esse é vendido como “prato típico” da Ilha Grande, tornando-se, assim, comida para turista, tanto quanto a comida para turista, os PFs, tornam-se a comida da Ilha Grande, no sentido inverso, já que começam a integrar a alimentação cotidiana dos moradores da Ilha.
3. Metodologia
A proposta deste estudo foi traçar um panorama histórico, para identificar as mudanças culturais percebidas na comida caiçara da Ilha Grande, disponibilidade de insumos, seus modos de fazer, utensílios para coleta e produção, levando em conta os costumes de habitantes pré-históricos até o período contemporâneo das comunidades da Ilha Grande.
Esta pesquisa qualitativa com fins exploratórios estabelece caminhos para estudos vindouros, buscando conexões entre os antigos e atuais hábitos alimentares de populações de herança caiçara situadas na Ilha Grande (RJ), pelo processo de lembrança e esquecimento da memória, que preenchem de sentido o ato literal e simbólico de comer. A pesquisa ocorreu por meio de levantamento bibliográfico e documental, e pesquisa em campo, de inspiração etnográfica, com entrevistas semiestruturadas e observação direta.
Os dados primários e secundários obtidos em pesquisas entre os anos de 2008 e 2022, geraram grandes categorias de análise, a partir das quais foi possível desenhar ligações que desencadearam na alimentação contemporânea dessas populações. Nesse sentido, levou-se em consideração os ciclos econômicos (e alimentares) das populações locais, da Baía da Ilha Grande e, de modo geral, do próprio Brasil, tendo em vista a importância história desses ciclos para o país.
Conclusiones:
Os marcos históricos apresentados, no cotidiano alimentar das populações pré-históricas até os dias atuais, são pertinentes para entender implicações do modo de vida no ambiente em que vivem as populações da Ilha. A vivência dessas populações deu-se de forma integrada ao ambiente em que vivem, e exemplo disso, vê-se pela técnica de cultivo aparentemente desordenado beirando o caos, mas que guarda um saber agroecológico sustentável das roças de coivara.
A comida é uma forma de linguagem, simbolicamente comunica sua ancestralidade e as mudanças socioculturais ocorridas no território da Ilha Grande. Uma vez que se traça um panorama histórico, iluminam-se as mudanças no cotidiano alimentar que trouxeram de seus ancestrais, até os modos de vida atuais das comunidades autodenominadas caiçaras.
Os trabalhos antes exercidos, seu impedimento ou a integração de modos de fazer “de fora”, a falta de insumos por trás da homogeneização da oferta de alimentos e o desenraizamento da oferta turística de refeições, a transformação da comida de casa em “culinária/gastronomia caiçara”, a “gourmetização” de pratos em “fotos-troféus” para postar em redes sociais, também são parte do processo dinâmico da cultura, e traduz em uma linguagem de sabores e saberes as modificações ocorridas no tempo e no espaço.
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Palabras clave:
Cultura alimentar, marcos históricos, Ilha Grande