Resumen de la Ponencia:
É comum estabelecer-se uma associação imediata entre a propalada “influência do jazz” e a emergência e consolidação da Bossa Nova. Afinal, como reconhecem muitos pesquisadores, jamais a música popular brasileira ocupou o centro de tantas discussões no campo cultural, no Brasil, como nos efervescentes anos 1960. Sem pretender negar o óbvio, esta comunicação empreende uma viagem de volta no tempo e busca documentar, de forma analítica, como as lutas de representações travadas entre setores que cultuavam a tradição e a brasilidade e outros que se apresentavam como modernizantes antecedem em muito aquela época. Para tanto, retrocede ao período pós-Primeira Guerra Mundial a fim de flagrar a eclosão das jazz bands, que na “era do jazz”, na década de 1920, estenderam seu raio de alcance a diferentes pontos da América Latina e do Brasil, inclusive a cidades interioranas. Em sua marcha ascendente, a penetração dos procedimentos musicais norte-americanos prosseguiu, especialmente nos anos 1930, num momento em que o fox-trot se converteu no gênero de música estrangeira mais gravado no país. Na esteira desse fenômeno, esta exposição objetiva capturar as reações ao que foi entendido como um processo de desnacionalização da música popular brasileira, que culminaria com a preparação de terreno para a “desfiguração” do samba “autêntico” promovida pelo samba-canção e pela Bossa Nova. As fontes mobilizadas para levar adiante a pesquisa são, em primeiro lugar, os registros fonográficos que documentam essa história, acompanhados de material diverso produzido por críticos e jornalistas, entre os quais aqueles que escreveram na Revista da Música Popular, que atuou como um espaço de consagração, de caráter nacionalista, de uma espécie de folclore urbano calcado principalmente no samba e no choro. Teoricamente, parte-se da constatação de que nação e nacionalismo, em determinadas circunstâncias, como que se dão as mãos, a ponto de gerarem o que Homi Babba designa como “narrativas pedagógicas da nação”. Com base nisso é possível captar, em diversas situações, os nexos profundos que enlaçaram a música e o nacionalismo. Ao pensar o nacionalismo musical, sobretudo aquele orquestrado pelo Estado, o musicólogo Julio Mendívil, por exemplo, frisa que “la música ha sido y sigue siendo un espacio predilecto para impulsar y difundir discursos nacionalistas” e emenda que “los nacionalismos requieren siempre de una amenaza ‘foránea’”. Nessa perspectiva, a presença do “outro” é, a rigor, indispensável para a constituição da identidade nacional, definindo os termos centrais de uma contradição que, dialeticamente, se apoia na unidade dos contrários própria, nas palavras do historiador Tim Blanning, da “dialética do nacionalismo”.
Introducción:
Adalberto Paranhos
akparanhos@uol.com.br
UFU/CNPq-Brasil
Nos anos1960, a Bossa Nova rompeu de vez os diques que, sob vários aspectos, ainda represavam a expansão dos horizontes da música popular brasileira. Na esteira da enorme repercussão causada pelo seu carro-chefe, a canção “Chega de saudade”, no final da década anterior, ela se espraiou mundo afora. Sobretudo no exterior, os bossa-novistas, com Antonio Carlos Jobim e João Gilberto à frente, angariaram mil e uma manifestações de admiração daqueles que se entregaram ao seu poder de sedução artística, a começar pelos músicos que compunham a nata do jazz made in USA (Paranhos, 1990). No entanto, como que a atestar o dito popular de que nem sempre santo de casa faz milagres, no Brasil nem tudo foram flores na acolhida proporcionada à Bossa Nova. De um lado, seus cultores a enalteceram como o ajuste de contas do país com a modernidade musical. De outro, encararam-na como expressão de um crime de lesa-brasilidade pelo enlace “espúrio” que selou com o jazz. Por essa razão os puristas de plantão acionaram, com uma estridência até então sem igual, os sinais de alarme.
A trincheira da reação foi, em larga medida, encabeçada pelo crítico musical José Ramos Tinhorão. Ele e outros que tais atingiam as raias da indignação ante o que ocorria no campo musical. Não admitiam assistir, impassíveis, à "intromissão indevida" do jazz e da música norte-americana como um todo na música popular brasileira ou – o que dá na mesma – ao distanciamento desta das nossas "raízes". Num texto sobre "Marcha e samba", inserido na Revista Civilização Brasileira, Tinhorão demonstrava sua total contrariedade com o que se poderia designar como involução do samba. O desfecho do artigo era um monumento à ortodoxia. Sem o menor pudor, ele se recusava a tratar, mais especificamente, da Bossa Nova. Nas suas palavras, “surgiu no fim da década de 50 uma mudança de estrutura: o samba de bossa nova. Mas aí já se penetra na história do jazz, e o autor deste artigo só gosta de falar de música popular brasileira” (Tinhorão, 1966, p. 261).
Nesse texto, samba-canção e Bossa Nova eram atirados às feras, depreciados como representantes da "corrupção" dos costumes musicais populares. Nada estranhável, partindo de quem elevava o "nacional-popular" à categoria de bem supremo num período em que, como relembra Roberto Schwarz (1987, p. 32), no front nacional-populista “reinava um estado de espírito combativo, segundo o qual o progresso resultaria de uma espécie de reconquista, ou melhor, da expulsão dos invasores”. Trocando em miúdos essas considerações, o que me interessa ressaltar, acima de tudo, é que, ao colocarem o jazz, de modo geral, sob sua alça de mira, as batalhas culturais desfechadas contra ele – e, por consequência, contra a Bossa Nova – objetivaram converter o “outro” no bode expiatório da afirmação de um certo nacionalismo musical.
Mas, sob a atmosfera política do nacional-populismo em vigor naqueles anos, as coisas não pararam por aí. Em 1962, a reação à “jazzificação” do samba se instalou nas próprias fileiras bossa-novistas, uma evidência de que a oposição samba x jazz não refletia apenas o ponto de vista dos que eram contra ou a favor da Bossa Nova. A realidade se mostrava algo mais complexa, incapaz de ser submetida a esquemas analíticos simplistas. Contraditoriamente, Carlos Lyra, um dos mais fecundos compositores da Bossa Nova, soltou seu grito de alerta em “Influência do jazz”, que alcançou ampla reverberação. Sua arquitetura musical, calcada nas características da Bossa Nova, colidia intencionalmente com a letra, que desnudava o militante Carlos Lyra, ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), em tempos em que o nacionalismo e o anti-imperialismo andavam de mãos dadas.
Por essas e outras, ganhou força a ideia que superestima a relação jazz e Bossa Nova, a ponto de contribuir poderosamente para quase apagar as linhas de convivência que, ao longo da história, marcaram a aproximação entre o jazz e a música popular brasileira em geral. É como se, no limite, seus vínculos com a produção bossa-novista tivessem inaugurado uma nova era, cuja presença solar turvaria a nossa vista, impedindo-nos de enxergar outras dimensões do passado. Daí que esta comunicação, na sequência, puxa os fios dessa trama sobre as ressonâncias do jazz por estas bandas e enfatiza que, de há muito, a resistência à penetração, no Brasil, da música de procedência estadunidense se fez sentir, com maior ou menor virulência (Paranhos, 2020). Por vezes, repito, a impressão que se tem é de que a “influência do jazz” se expressaria especialmente no período bossa-novista. Ledo engano. Desde que o jazz é jazz, ele viajou pelo mundo a bordo de partituras, de discos, do rádio e do cinema. E, ao dilatar seu raio de propagação, suscitou reações de setores nacionalistas.
Desarrollo:
A “era do jazz” e as irrupções nacionalistas
Nação e nacionalismo, em certas circunstâncias históricas, como que se dão as mãos, a ponto de se produzirem o que Homi Bhabha (1990) designa como “narrativas pedagógicas da nação”. Nesse contexto, historicamente, é possível captar, em diversas situações, os nexos profundos que enlaçaram igualmente a música e o nacionalismo. Disso se ocuparam tanto musicólogos quanto historiadores. No primeiro caso, por exemplo, ao pensar o nacionalismo musical, sobretudo a partir da impulsão estatal, Julio Mendívil (2016, p. 93 e 95) frisa que “la música ha sido y sigue siendo un espacio predilecto para impulsar y difundir discursos nacionalistas” e emenda que “los nacionalismos requieren siempre de una amenaza ‘foránea’”. Nessa perspectiva, por sinal, o historiador Tim Blanning (2011, p. 251; 2007, p. 305-321) chama a atenção para o fato de que a presença do “outro” é, a rigor, indispensável para a moldagem da identidade nacional, ao definir os termos básicos de uma contradição que, dialeticamente, constitui a unidade dos contrários própria da “dialética do nacionalismo”. E foi o que se viu em meio à “era do jazz”, carne viva de que se nutriram muitas irrupções nacionalistas, seja no Brasil, seja em outros cantos do mundo.
A expressão “era do jazz”, que se situa em particular na década de 1920, foi empregada pela primeira vez pelo romancista Scott Fitzgerald (2003) por alusão a uma torrente de mudanças comportamentais. Num sentido lato, ela englobaria a celebração de uma época de efervescência cultural, de desintegração de valores tradicionais, de diversão, de modernidade, de velocidade e de alegria contagiante. Sob essa ótica, a “era do jazz” transcende a seu enquadramento exclusivo no âmbito da música e da dança.
Musicalmente, seu berço por excelência, segundo os estudiosos, foi a New Orleans da virada dos séculos XIX e XX. O estilo dixieland, que lá despontou, acelerou a popularização da palavra jazz. Este, entretanto, era um imenso guarda-chuva que dava guarida a danças e gêneros de distintas nomenclaturas como charleston, cakewalk, one-step, two-steps, shimmy, ragtime, fox-trot. E, no rastro de seu desenvolvimento e de sua aceitação social, ele aprofundou sua inserção na área das diversões.
Conforme Tim Blanning (2011, p. 128), pesquisador que sublinha as origens afro-americanas do jazz, “durante parte do século XX, apesar de toda a capacidade do jazz de expressar o sofrimento e as aspirações de uma comunidade oprimida, o gênero fez parte integral da indústria do entretenimento”. Nesse cenário, no pós-Primeira Guerra Mundial – e, em especial, na década de 1920 – assistiu-se à disseminação do jazz também pelos lados da América Latina. Na Argentina (Pujol, 2004 e 2013; Corti, 2015), no Chile (González; Rolle, 2005, p. 538-574) e no Brasil, para não ir mais longe, ele se espalhou como um rastilho de pólvora. A isso se seguiria a febre das jazz-bands, sinônimo de música dançante. Como anota o musicólogo Alberto Ikeda (1984, p. 9), “pela década de 1920 afora proliferaram em diversas cidades do Brasil, até nas cidades interioranas, as formações instrumentais do tipo jazz-band”. Elas traziam consigo os últimos passos da moda musical irradiada pelos Estados Unidos (o que não excluía necessariamente do repertório das jazz-bands brasileiras gêneros propícios à dança e à explosão de alegria, como o samba e o maxixe).
Diante desse quadro, com o fox e o charleston em alta, houve até quem se visse na contingência, ante a proximidade do carnaval, de desencadear uma campanha em favor do maxixe, em 1928, como foi o caso do redator carnavalesco Arlequim, nas páginas de O Jornal do Rio de Janeiro. Ele argumentava, sem meias-palavras: “O próprio maxixe perdeu prestígio. O fox e o charleston deixaram-no abandonado e triste”. Afastado do teatro ou dos clubes, “hoje não se dança mais o passo nacional” (apud Tinhorão, 1986, p. 87-88).
O fox e o charleston eram dois tentáculos poderosos da “era do jazz”, troncos de uma árvore frondosa que brotava em mil cantos e recantos do planeta. Sequer a música erudita ou as óperas escaparam ilesas ante sua presença, quando não onipresença. O jazz representou um sopro de renovação nas práticas musicais, ao pavimentar o caminho que conduziu a uma maior aproximação entre a música dita popular e a música “séria”. Absorvido por compositores eruditos animados por propósitos antiwagnerianos, como Hindemith, Stravinsky e Satie, ele provocou novos giros nas engrenagens musicais. Uma sucessão de fatos artísticos como óperas-jazz e festivais realizados na Alemanha anunciava outros tempos, aos quais se associaram Kurt Weill e Bertolt Bretch, que o transpuseram para os palcos, ao celebrarem o seu sentido de emancipação do ponto de vista rítmico e harmônico (Willet, 1967).
No Brasil, o jazz também insuflou novos ares nos cabarés e nos espetáculos de teatro de revista. Como já foi atestado, no liquidificador sonoro das revistas ouviam-se, em regime de comunhão de bens culturais, sambas, maxixes, marchinhas e ritmos estrangeiros, principalmente de origem norte-americana. Contudo, como ressalvam pesquisadores do ramo (Veneziano, 1991, p. 48-50; Ruiz, 1984, p. 128-129), isso não implicava pura e simples cópia ou imitação do que vinha de fora. O escracho, por vezes, dava o tom, como na letra de uma canção, de título não identificado, interpretada por Araci Cortes na revista Às urnas, em 1929, no Teatro Recreio, do Rio de Janeiro. Num linguajar deliberadamente estropiado, se cantava, numa “adaptação” do idioma inglês difundido como nunca graças ao cinema falado que aterrissara no país em fins dos anos 1920.
Nessas circunstâncias, nem uma grande legenda da música popular brasileira ficou imune à sanha nacionalista. Pixinguinha, que integraria, posteriormente, o panteão da música nacional como um símbolo da tradição, seria, de certa maneira, indigitado como um exemplo de traição. Quem diria? Logo ele, em plenos anos 1920, se tornou objeto de comentários nada elogiosos por haver assimilado a influência das jazz-bands. E mais: um crítico musical, Cruz Cordeiro (1928-1929), codiretor da revista Phono-Arte, denunciaria a influência da música norte-americana na melodia e na parte rítmica de "Lamento", “Carinhoso” e “Gavião calçudo”. Ao escrever sobre este samba, o crítico era categórico ao emitir sua condenação: “Mais parece um fox-trot que um samba. [...] Tudo respira música dos ‘yankees’”. Apagados esses fatos da memória, em 1954 a Revista da Música Popular (2006, p. 25), dirigida por Lucio Rangel e Pérsio de Moraes, dedicava a capa do seu número de estreia a Pixinguinha, saudado como modelo do "autêntico músico brasileiro, o criador e verdadeiro que nunca se deixou influenciar pelas modas efêmeras ou pelos ritmos estranhos ao nosso populário". Detalhe: no seu rol de colaboradores figurava ninguém menos do que Cruz Cordeiro... Ironias da história.
Guerra e paz nas fileiras nacionais
No que tange à propagação do fox-trot, este gênero musical expandiu o seu raio de penetração – se levarmos em conta os registros fonográficos – particularmente nos anos 1930. Uma consulta à Discografia brasileira 78 rpm (Santos et al., 1982, vols. 2-3) evidencia que o fox-trot estava no topo da lista das músicas estrangeiras mais gravadas no Brasil entre 1930 e 1945 (na sequência vinham o tango e o fado, se excluídas as valsas). Ele inclusive servia de pau para toda obra ou todo tipo de acasalamento musical. As etiquetas dos discos arrolam uma diversificada gama de foxes: fox-canção, fox-cançoneta, fox-cowboy, fox-marcha, fox-sertanejo e... fox-samba. E se ouviram também foxes nacionais e estrangeiros, no original ou em versões. Nesse terreno, como é voz corrente entre os pesquisadores, ninguém excedeu a Custódio Mesquita, com impecáveis composições em que dava mostras da assimilação criativa de procedimentos musicais norte-americanos, tal como em “Nada além” e “Mulher”.
Armado esse cenário, compreende-se por que, já em 1930, num samba amaxixado de Randoval Montenegro, Carmen Miranda descarregava a ira dos nacionalistas contra o fox-trot e proclamava “Eu gosto da minha terra”: “Sou brasileira, tenho feitiço/ gosto do samba, nasci pra isso/ o fox-trot não se compara/ Com o nosso samba, que é coisa rara”. Por outro lado, Noel Rosa, um dos maiores ícones do samba – senão o maior – na década de 1930, se juntava ao coro das vozes descontentes com o estado de coisas que apontava para a paulatina (embora bastante relativa) americanização do Brasil. Ele nem de longe compactuava com o modismo do fox-trot. Tudo o que lhe parecesse americanizado o desagradava profundamente, da mesma maneira como achava deplorável o brasileiro cantar em outras línguas. Nas palavras dos seus melhores biógrafos, “os estrangeirismos simplesmente não combinam com seu jeito de ser. São chiquês de grã-finos e intelectuais enfatuados, pura moda, mania de exibição”. Daí seu nacionalismo popular (Paranhos, 2015, p. 61-70), em linha direta com o que envolvia as classes populares: “Seu nacionalismo tem esse sentido. De gostar das ‘coisas nossas’. De preferir o samba ao fox-trot” (Máximo; Didier, 1990, p. 242). Seu ponto de vista foi sintetizado numa de suas obras-primas, “Não tem tradução”, de 1933, em sua investida contra aqueles que, “dando pinote”, só queriam “dançar o fox-trot”.
Nacionalista assumido, Assis Valente, um dos mais destacados sambistas dos anos 1930, repugnava igualmente o culto aos estrangeirismos. Ele aconselhava em “Good-bye”, uma marcha lançada em 1933: “Good-bye, boy,/ good-bye, boy/ deixa a mania do inglês/ fica tão feio pra você/ moreno frajola/ que nunca frequentou/ As aulas da escola”. Decididamente, inúmeros exemplos poderiam ser colhidos para ilustrar como, entre 1930 e 1945, a música procedente dos EUA continuou sua marcha por estas terras, o que, de resto, estava em sintonia com as novas rotas mundiais do capitalismo e da sua indústria de entretenimento (Moura, 1984; Tota, 2000).
Nos anos 1940, contudo, gravações embaladas por sons de “outras terras, outra gente” eram ouvidas até na instrumentação de sambas, como em arranjos produzidos por um dos mais conceituados maestros brasileiros, Radamés Gnattali. Na primeira metade da década de 1940, a brasileira Leny Everson (nascida Hilda Campos Soares da Silva) começou a gravar como crooner de Anthony Sergi (Totó) e sua orquestra Columbia ou em discos solo, e se sucederam também as gravações de The Midnighters, grupo instrumental liderado por Zacarias, cujo crooner era Nilo Sérgio, que desenvolveria carreira em disco de 1945 em diante. Ambos cantavam em inglês, fosse fox-trot ou simplesmente fox. Data desse período ainda o que se poderia chamar de fox-símiles, casos de canções melodicamente bem elaboradas por José Maria de Abreu, como o fox-canção “Brigamos outra vez” (com acompanhamento de Fon-Fon e sua orquestra, gerando uma sonoridade à la EUA, ao promover o feliz casamento entre instrumentos de sopros e de cordas) e o fox “Eu, você e mais ninguém” (com acompanhamento ao piano de Carolina Cardoso de Menezes e seu quarteto, numa demonstração de pleno domínio da linguagem musical norte-americana).
Nesse campo, a mobilidade de fronteiras do samba iria se manifestar novamente. E ele, aos poucos, enveredava, uma vez mais, por territórios inexplorados, como prelúdio de tempos que estariam por vir, cenas dos próximos capítulos que desembocariam na Bossa Nova. Sob a rubrica de samba-swing, um compositor admirado por João Gilberto, Janet de Almeida, trazia o futuro para o presente. “Pesadelo”, gravada em 1943, é rico em dissonâncias e recortes harmônicos pouco usuais no Brasil de então. Daí ao samba “Boogie-woogie na favela” (de Denis Brean, pseudônimo de Augusto Duarte Ribeiro), de 1945, o caminho a ser vencido era curto, a despeito da reação que, em honra às tradições nacionais, insistia em dar o troco em “Boogie-woogie não é samba”.
“Música de boate” para “beautifull people”
Nesse contexto, o pano se levantou para a entrada em cena, em 1946, de um marco do samba-canção, “Copacabana”, sucesso imediato na voz aveludada de Dick Farney (batizado Farnésio Dutra), cujo nome se devia à sua admiração por cantores estadunidenses como Bing Crosby. Nele o culto aos encantos da praia de Copacabana – bairro que se tornaria sinônimo da “era do samba-canção” – antecipava algumas das temáticas favoritas da Bossa Nova: “Tuas areias/ teu céu tão lindo/ tuas sereias/ sempre sorrindo”. Ia para o ar uma canção embutida numa moldura harmônico-melódica com a sofisticação bossa-novista, que enaltecia o que já foi denominado “boemia solar”: “pelas manhãs tu és a vida a cantar”. Mas o que contava, acima de tudo, nesse quesito, era, efetivamente, a boemia noturna de Copacabana (Mello, 2017, caps. 10-14; Castro, 2015).
Neste rápido e lacunar inventário de momentos marcantes da história da música popular brasileira, é imprescindível relembrar que o samba-canção, surgido no final da década de 1920 como samba de meio de ano, passou a dominar a noite do Rio de Janeiro a partir da segunda metade dos anos 1940 e, principalmente, na década de 1950, com sua "música de boate", que iria se espraiar por outros centros urbanos como São Paulo. Uma parcela tida como mais exigente do público consumidor de música, normalmente de extração social de classe alta e média (“beautifull people”, frequentadores do “café society”), identificava nele uma coisa de "bom-tom", que convivia com a assimilação de componentes da música norte-americana. A produção mais consistente do samba-canção e o clima de intimidade que ele instalava propiciaram, até certo ponto, a aparição da Bossa Nova.
Música cantada em pequenos ambientes, associada frequentemente à cultura de fossa, as casas noturnas em que era ouvida serviram de escola para Tom Jobim e Johnny Alf, por exemplo, destaques nas noites cariocas e paulistanas. Cantores rotulados como "românticos", especialmente Dick Farney e Lucio Alves, lembrados como "precursores" pelos bossa-novistas, marcaram época nesse período. Compositora e cantora cercada de grande respeito, Dolores Duran era mestre no scat singing, no que viria a influenciar Leny Andrade, que até hoje a reverencia como sua "diva”.
Simultaneamente, Os Cariocas, um dos emblemas da Bossa Nova, já em 1948 esmeravam-se na ousadia de harmonizações dissonantes. Reprocessando elaborações de grupos vocais norte-americanos (notadamente os Modernaires e os Pied Pipers), eles se consagrariam, na opinião de muitos críticos e apreciadores de música, como o mais criativo conjunto vocal da história deste país. Suas duas primeiras gravações, o samba-canção “Nova ilusão” e o samba “Adeus, América”, destoavam bastante da maneira como cantavam outros grupos, embora não se deva desconsiderar a relativamente inovadora atuação de conjuntos como Os Namorados da Lua, à frente do qual figurava o crooner Lucio Alves, familiarizado com as vocalizações de congêneres dos Estados Unidos.
O samba-canção expressava, como observou o crítico José Lino Grünewald, a internacionalização do samba "através do abandono da tipicidade dos instrumentos”, enquanto “o ritmo se adapta a orquestrações com predominância de cordas" (apud Paranhos, 1990, p. 25). E essas influências "estranhas" e "estrangeiras", incidindo sobre a perda de importância da percussão, iriam, obviamente, suscitar críticas: a reação ao samba-canção representou, sob diversos aspectos, a antessala da reação à Bossa Nova.
A atmosfera musical que imperava nas boates ficou sob a mira de muitos nacionalistas. Textos publicados na Revista da Música Popular, em sua breve existência (1954-1956), ilustram notavelmente bem o descontentamento que grassava em relação ao estado de coisas reinante. Ary Barroso, um dos mais festejados compositores brasileiros, não tinha papas na língua. Para ele, uma palavra resumia tudo: “decadência”. E como isso era passível de constatação? Ele enumerava seus argumentos: “2. Antigamente não havia ‘acordes americanos’ em samba. [...] 3. Antigamente não havia ‘boites’, nem ‘night clubs’, nem ‘black tie’ [...] 4. Antigamente não havia ‘fans-clubs’ [...] 5. Antigamente as orquestras [...] eram bandas autênticas” [...] 9. Antigamente samba era uma coisa, hoje é outra... 10. Decadência! Decadência! Decadência!” (Barroso, 1955, p. 463).
Proliferou, então, uma espécie de samba de uma nota só nas críticas encampadas pela revista. Cláudio Murilo (1954, p. 35), outro insatisfeito, ao deplorar o que designava como “espírito de imitação”, era curto e grosso: “Positivamente, o músico brasileiro está com espírito de imitação. [...] No Brasil, toca-se ‘be-bop’, toca-se ‘cool’ e difundem-se as duas coisas”.
Se o quadro que se desenhava era desalentador, segundo esses porta-vozes do nacionalismo musical, o pior consistia em os brasileiros se deixarem enganar, comprando gato por lebre. Em outras palavras, em vez do “puro” e “verdadeiro” jazz, aquele que remetia ao início do século, produzido pelos negros de New Orleans, eles embarcavam na canoa furada do “pseudojazz” (o bebop e o cool jazz), uma descaracterização do dixieland. Essa posição era explicitamente assumida pelos dois críticos que, em momentos distintos, atuaram como diretores da seção Jazz da Revista da Música Popular, José Sanz (1954, p. 60-81; 1955, p. 378-379) e Marcelo F. de Miranda (1955, p. 602-604). Ressalve-se que Jorge Guinle (1956, p. 706-707), um cultor do jazz, que colaborava também com esse periódico, não partilhava dessas convicções, nem sequer das de Lucio Rangel; ele era, porém, uma voz solitária nesses assuntos.
Conclusiones:
Proposta de armistício
O debate que girava ao redor da música popular iria se acirrar alguns anos mais tarde. Enquanto isso, já com a Bossa Nova na praça, provocando furor, um baiano, compositor e humorista, Gordurinha (por conta de sua magreza...), unia sua verve ao talento do paraibano Jackson de Pandeiro. Em 1959 ambos deram à luz o samba (sambaião, samba-roque ou o que for) “Chiclete com banana”. Com toda a sua carga de humor, eles conceberam um desafio aos gringos que, na verdade, era uma proposta de convivência musical amistosa: “Eu quero ver a confusão [...]/ olha aí, o samba-rock, meu irmão/ é, mas em compensação/ eu quero ver um boogie-woogie/ de pandeiro e violão/ eu quero ver o Tio Sam/ de frigideira/ numa batucada brasileira”.
Com muito molho, como que a exalar o tempero da Paraíba e da Bahia, a cozinha rítmica da gravação funde, na prática, chiclete (o bebop e o boogie-woogie) com a banana da terra (o samba e o baião, gênero), acrescentando pitadas de rock e de scat singing à moda da casa. Essa composição era uma falsa peça da artilharia musical nacionalista, como se percebe. Representava, isso sim, uma abertura para o diálogo artístico com gente de outras terras. Tinhorão e outros mais tinham tudo para ver nisso as artes do tinhoso. Estava tudo perdido! E a perdição tinha nome e sobrenome: Bossa Nova. Com ela, como uma nódoa aparentemente irremovível, a sombra tenebrosa do jazz continuaria a pairar sobre os destinos da música popular brasileira. Mas tal fato, enfim, como procurei evidenciar ao longo deste trabalho, não era exatamente uma novidade senão para os desavisados.
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Santos, A.; Barbalho, G.; Severiano, J.; Azevedo, M. A. de (Nirez). (1982). Discografia brasileira 78 rpm: 1902-1964, vols. 2 e 3. Rio de Janeiro: Funarte.
Schwarz, R. (1987). Nacional por subtração. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
Tinhorão, J. R. (1966). Marcha e samba. Revista Civilização Brasileira, 8, 250-261.
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Tota, A. P. (2000). O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras.
Veneziano, N. (1991). O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas: Editora da Unicamp/Pontes.
Willet, J. (1967). O teatro de Brecht: visto de oito aspectos. Rio de Janeiro: Zahar.
Referências discográficas
“Adeus, América” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa), Os Cariocas (1948). 78 rpm Continental.
“Ave Maria Lola” (Sergio G. Siaba). Dolores Duran (1959). 78 rpm Copacabana.
“Boogie-woogie na favela” (Denis Brean), Ciro Monteiro (1945). 78 rpm Victor.
“Boogie-woogie não é samba” (Hélio Sindô), Hélio Sindô (1945). 78 rpm Continental.
“Brigamos outra vez” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), Orlando Silva (1945). 78 rpm Odeon.
“Carinhoso” (Pixinguinha), Orquestra Típica Pixinguinha-Donga (1928). 78 rpm Parlophon.
“Chega de saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Morais), João Gilberto (1958). 78 rpm Odeon.
Chega de saudade. João Gilberto (1959). LP Odeon.
“Chiclete com banana” (Gordurinha e Jackson do Pandeiro), Jackson do Pandeiro (1959). 78 rpm Columbia.
“Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), Dick Farney (1946). 78 rpm Continental.
“Eu gosto da minha terra” (Randoval Montenegro), Carmen Miranda (1930). 78 rpm Victor.
“Eu, você e mais ninguém” (José Maria de Abreu e Saint-Clair Sena), Francisco Alves (1942). 78 rpm Odeon.
“Gavião calçudo” (Pixinguinha), Patrício Teixeira (1929). 78 rpm Odeon.
“Good-bye” (Assis Valente), Carmen Miranda (1933). 78 rpm Victor.
“Influência do jazz” (Carlos Lyra), Carlos Lyra (1962). Depois do carnaval: o sambalanço de Carlos Lyra. LP Philips.
____________, Carlos Lyra e Quarteto de Oscar Castro Neves. Bossa Nova at Carnegie Hall. Vários intérpretes (1962). LP Audio Fidelity.
“Lamento” (Pixinguinha), Orquestra Típica Pixinguinha-Donga (1928). 78 rpm Parlophon.
“Mulher” (Custódio Mesquita e Sadi Cabral), Sílvio Caldas (1940). 78 rpm Victor.
“Nada além” (Custódio Mesquita e Mário Lago), Orlando Silva (1938). 78 rpm Victor.
“Não tem tradução” (Noel Rosa), Francisco Alves (1933). 78 rpm Odeon.
“Nova ilusão” (Luiz Bittencourt e José Menezes), Os Cariocas (1948). 78 rpm Continental.
“Pesadelo” (Janet de Almeida e Léo Vilar), Anjos do Inferno (1943). 78 rpm Columbia.
Palabras clave:
jazz; nacionalismo musical; identidade nacional.