Resumen de la Ponencia:
Michel Foucault, aclamado filósofo francês, com certeza é um dos autores que mais marcam o pensamento contemporâneo. Suas contribuições, inúmeras para a teoria social, são essenciais para adensar uma sociologia do esoterismo. Sigo a proposição de Antoine Faivre, que entende o esoterismo como saber e sensibilidade: não apenas como conhecimento secreto, contraparte do Iluminismo, e sim como corrente (contra)cultural que, desde o século XV, congrega a síntese do gnosticismo e dos construtos cosmológicos renascentistas. As fontes históricas do esoterismo apontam para uma leitura de mundo renascentista que remontam as práticas do cuidado de si antigas, bem como uma cosmovisão astrológica renascentista, e que se reinventam em diferentes temporalidades históricas. A partir de certa brecha na obra de Foucault, entre a arqueologia dos saberes e a hermenêutica do sujeito, meu trabalho pretende, justamente, entender como certas tradições ocidentais ‘espirituais’ das práticas de si sobrevivem de formas sincrônica e diacrônica integrando o esoterismo moderno. Assim, pretendo, a princípio, elencar os elementos fundamentais das práticas do cuidado de si antigas, analisadas longamente por Foucault em Hermenêutica do Sujeito. Para isso, faço menção a algumas tecnologias de si analisadas pelo autor que podem ser entendidas como antecessoras das práticas esotéricas gnósticas, como a praemeditato malorum e a arte de viver, entendidas como manifestações culturais que fundamentaram a dimensão gnóstica do esoterismo. Depois, analiso a proposta de Foucault em As Palavras e As Coisas, ao delinear a epistéme das semelhanças e compará-la à epistéme da representação e à construção das ‘ciências do outro’. Tal entendimento será necessário para embasar os fundamentos epistêmicos do esoterismo, ou seja, para que se possa entender de quais topoi, como coloca o autor, partem os fundamentos do esoterismo, entendido como um saber gnóstico e cosmológico. A proposta, em resumo, tratará de mapear rastros das práticas de si antigas que fundamentam a filosofia como prática espiritual, na extensa obra de Foucault e elucidar suas afinidades com o esoterismo moderno e reler Foucault, por vezes contra, mas fundamentalmente para além de si mesmo, elaborando uma releitura de sua obra, principalmente como um marco importante para a construção de uma sociologia do conhecimento esotérico.
Introducción:
O esoterismo costuma ser definido a partir de suas expressões, como um termo ‘guarda-chuva’. Entendido muitas vezes no senso comum como sinônimo de gnosticismo ou hermetismo, o esoterismo também é capaz de englobar as chamadas ‘ciências ocultas’, como astrologia, magia e alquimia, saberes como cabala e tarô, bem como correntes culturais como o movimento Rosacruz, a Maçonaria e a Teosofia, até se confundir com as diversas práticas espirituais da chamada Nova Era.
As reflexões sobre o esoterismo remontam a pesquisa ora em curso sobre a transformação dos jogos de cartas em oráculos, dos séculos XV ao XIX, no Doutorado em Sociologia do Programa de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Frédéric Vandenberghe. A pesquisa procura mapear as diferentes tentativas de imaginação das cartas de jogar e do tarô do Renascimento à modernidade, procurando entender a relação entre jogos, imagens e construção de sentido dos oráculos a partir de cartas dentro do quadro da sociologia do conhecimento.
Procuro, nos limites deste artigo, (i) definir o esoterismo a partir de suas bases teórica e metateórica, apontando seus fundamentos cognitivos e (ii) delinear, a nível exploratório, não somente afinidades temáticas, mas também uma possível interpretação de Michel Foucault tendo em vista uma síntese de perspectivas internas ao autor capazes, a meu ver, de lançar bases fecundas para uma sociologia do conhecimento esotérico.
Desarrollo:
Afinal, o que é esoterismo?
Etimologicamente, ‘esoterismo’ é um neologismo que remonta ao termo grego esôterikos, referente a tudo aquilo que é interior (Stuckrad, 2010, p. 45).
“O adjetivo ‘esotérico’ (do grego esôterikos, que significa “o interior” [o interno; the inner]) é documentado pela primeira vez em uma sátira de Lucian de Samosata no século II, termo que contrasta com ‘exotérico’, que também já estava presente na filosofia grega antiga. O neologismo ‘esoterismo’, entretanto, tem uma história relativamente mais recente. Em sua versão francesa ‘l’ésotérisme’ parece ter aparecido em 1828, quando do alvorecer da crítica do Esclarecimento à religião, também quando correntes religiosas alternativas começam a romper com o Cristianismo mainstream.” (ibid., idem).
O sentido clássico grego (voltar-se para dentro, o contrário de exotérico) possui em si uma ambiguidade: se não entendido apenas como termo reflexivo, ‘esotérico’ pode se referir a algo reservado para poucos, um conjunto de conhecimentos apenas para os iniciados, que toma um sentido importante como de fato muitas vertentes esotéricas ficaram marcadas quando das primeiras ondas do chamado ocultismo no século XVIII, quando a era do Iluminismo provocou uma ‘interiorização institucional’ do esoterismo, no sentido de um conhecimento secreto a círculos fechados.
Em termos históricos, o esoterismo tem relação com diversas correntes de sabedoria antiga, próprias da Antiguidade tardia, principalmente o gnosticismo e o neoplatonismo (Hanegraaff e Broek, 1997). Algumas dessas narrativas foram descritas por Foucault na fase final de sua obra. O esoterismo, porém, passa necessariamente pela revitalização dessas correntes filosóficas e culturais no Renascimento, quando da publicação e tradução, por exemplo, do Corpus Hermeticum por Marsílio Ficino em 1462, bem como com a influência da cosmovisão astrológica, tão marcante característica do período (Dooley, 2014).
Porém, o esoterismo, em termos sociológicos, só pode ser entendido como fenômeno moderno, uma vez que, no período renascentista, o que se entende contemporaneamente como esoterismo tratava-se da cosmovisão hegemônica vigente, ou como topos, como quer Foucault. Com isso, quero dizer que só existe esoterismo no sentido de uma esfera ou campo autônomo justamente quando do declínio da cosmovisão renascentista e da progressiva construção de hegemonia do pensamento científico ilustrado e da modernidade.
Para estabelecer, contudo, bases de construção teórico-conceitual de uma sociologia do esoterismo, é preciso caminhar pelas tentativas de construção do próprio campo. Uma das mais influentes formulações sobre a temática foi a de Antoine Faivre, que contesta o sentido de esoterismo como disciplina secreta, conhecimento arcano, já que o Renascimento foi um período histórico de eclosão do imaginário esotérico. Esoterismo também não se confunde com processo iniciático, o que é intrínseco a toda religião. Essa associação entre esoterismo e iniciação, para ele, revela uma tentativa de marginalizar o esoterismo (Faivre, 1992, p. 06).
Faivre elenca quatro elementos essenciais do esoterismo: primeiramente, a lei das correspondências: a partir da interdependência universal, toda realidade é capaz de ser simbolizada. Essa característica é o que Foucault chamou de epistéme das semelhanças ou das similitudes, mas que o autor, como veremos, ampliou e cujos elementos internos examinou a fundo.
Em segundo lugar, a ideia de natureza vivente, sendo a magia naturalis e o paracelsianismo exemplos clássicos dessa característica essencial do esoterismo. Isso significa que, no pensamento esotérico, tudo na natureza se move: entre a magia e a ciência, emerge um conhecimento gnóstico, regido por simpatia e antipatia (ibid., idem), pautado na tríade Deus-homem-natureza.
Em terceiro lugar, Faivre destaca o que chama de imaginação e mediações: imagens simbólicas tomam vida, como, por exemplo, anjos, daemons e todos os intermediários de Deus e da natureza em relação ao homem. São eles que permitem um conhecimento gnóstico, um mundus imaginalis.[1]
Em quarto e último lugar, a experiência da transmutação é imprescindível como característica do esoterismo. Aqui, Faivre diz respeito ao elemento gnóstico e alquímico do esoterismo. Essa característica assenta suas bases históricas no mesmo contexto da discussão de Foucault em História da Sexualidade, especialmente nos volumes 2 e 3, e Hermenêutica do Sujeito, quando se trata da relação do sujeito com a verdade.
Na verdade, o esoterismo se trata de uma forma de conhecimento, assim como pensou Faivre, mas também procuramos pensar, sociologizando o tema, ao entender o esoterismo como epistéme, mas também como uma forma de cosmologizar o mundo, desdobrando seus nexos internos para realmente entender que articulações cognitivas são centrais para o esoterismo e, por conseguinte, para propriamente defini-lo[2]. Pretendemos demonstrar, com este trabalho, que Foucault produz um adensamento heurístico e teórico dos elementos trazidos à baila por Faivre.
Para esse empreendimento e para compreendermos melhor o esoterismo, desde suas origens, precisamos recorrer a um patamar arqueológico para entender seus fundamentos gnosiológicos. Assim, uma articulação entre o que Foucault entende como ‘verdade de si’, a partir do princípio do ‘conhece-te a ti mesmo’ é articulado ao que ele anteriormente em sua obra entenderia como ‘epistéme das semelhanças’.
Elemento gnóstico ou subjetivo – a verdade e o sujeito da Antiguidade ao Renascimento
Michel Foucault foi, sem dúvida, um pensador múltiplo, atravessado por preocupações pessoais diversas e mesmo por transformações históricas importantes que impactaram sua trajetória de pesquisa, suas afinidades temáticas e suas orientações teórico-políticas.
Sua obra considerada madura, aquela em que Foucault delineia a ‘microfísica do poder’ em termos da produção de corpos dóceis no circuito biopolítico que envolve diversas instituições e formas de subjetivação, foi, sem dúvida, uma virada epistêmica em termos da relação entre poder, subjetividade e linguagem, consagrando essa fase de sua obra o ‘autor-Foucault’, não somente como filósofo reconhecido, mas também como instituição, já que, quando se pensa Foucault, imediatamente associa-se ao Foucault da crítica ao biopoder.
Porém, Foucault fundamentalmente possui pelo menos quatro fases em sua obra, marcadas tanto por preocupações temáticas distintas, mas também por diferentes pressupostos epistemológicos: a arqueologia dos saberes e o surgimento das ciências humanas; a já citada genealogia do poder, marcada pela compreensão dos mecanismos de biopoder que desembocam em uma genealogia da governamentalidade, no primeiro momento, para passar a uma crítica do neoliberalismo, uma fase intermediária em que Foucault começa a se distanciar tanto do estruturalismo quanto de seu quadro teórico hipercrítico, e, finalmente, a hermenêutica do sujeito, em que as práticas helenísticas do cuidado de si tornam-se uma possibilidade de pensar uma estética da existência, quando Foucault objetiva propor uma filosofia, em certo sentido, ‘emancipatória’ em relação ao poder[3].
Na verdade, os primeiros escritos de Foucault, a partir de As Palavras e as Coisas, consagraram uma pesquisa muito frutífera para a construção de uma sociologia do conhecimento esotérico, já que partimos da premissa ainda intuitiva de Faivre segundo a qual o esoterismo se trata de uma ‘forma de pensamento’ ou ‘conhecimento’. Assim, uma análise sobre o esoterismo como epistéme será necessária.
Mas, o esoterismo não é apenas um conhecimento, e sim um conhecimento de si. Nesse sentido, será crucial recorrer à hermenêutica do sujeito para entender de que bases gnosiológicas partem o esoterismo, e não apenas epistemológicas. É interessante pensar que, ao início de sua obra, Foucault apenas pensa a emergência do sujeito como desejante a partir do quadro epistêmico das ‘ciências do outro’, no século XIX, com especial destaque para sua reflexão sobre antropologia e psicanálise, por exemplo. Aposto que, na verdade, com a virada de sua perspectiva para a hermenêutica do sujeito, Foucault relativiza o quadro teórico do início de sua obra: agora, o sujeito aparece na Grécia Antiga, não dessa maneira nomeado, porém como um ser no mundo que produz ativamente o cuidado de si.
A partir de sua leitura de Platão, o que chama de autocuidado coincide com o cuidado da polis. Foucault encontra na Antiguidade o princípio do cuidado de si (epiméleia heautou), cujo imperativo de conhecer-se a si mesmo (gnôthi seauton). O “conhece-te a ti mesmo” é a “fórmula fundadora da questão das relações entre sujeito e verdade”, segundo ele (Foucault, 2004, p. 5).
Foucault entende a filosofia como “a forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade”, que se complementa, na época clássica, à espiritualidade, entendida como
“o conjunto de buscas, práticas e experiências, tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações da existência, etc. que constituem não para o conhecimento, mas (...) para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade (...) [assim,] a espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito” (ibid., p. 18).
Assim, na espiritualidade, “a verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito” (ibid., p. 20). Essa filosofia reflexiva do cuidado de si como prática espiritual é uma chave importantíssima para entender como uma prática social pôde sobreviver ao se metamorfosear da Antiguidade até o mundo contemporâneo por meio do esoterismo.
Foucault estabelece, então, um quadro histórico-filosófico: (i) de Sócrates e Platão, passa pelo que chama de (ii) ‘era de outro’ da cultura de si, situada entre os primeiros séculos da nossa era, representado pelos estóicos, cínicos e epicuristas e pela conversão ao (iii) ascetismo cristão, nos séculos III-IV (ibid., p. 41).
Após os séculos III e IV, Foucault estabelece a primeira derrocada do princípio do cuidado de si com o que chamou de ‘pastorado cristão’ ou ‘poder pastoral’, que pode ser entendido como a virada histórica em que a relação do sujeito com a verdade passou pela via confessional cristã, dado que, agora, o cristianismo não mais convivia com sua vertente gnóstica, mas sim como uma projeção de poder que opera na chave pastor-rebanho. O pastorado cristão e, posteriormente, o ‘momento cartesiano’ promovem o ocaso do cuidado de si na cultura ocidental.
Assim, a cultura de si no helenismo valoriza o sujeito mesmo como instância do cuidado de si e estabelece a vida como obra de arte, daí surge a ideia de uma “arte de viver” (ibid., p. 254). Foucault lembra que a temática do cuidado de si retorna na modernidade como uma “ética ou estética de si”, desde Nietzsche, até Baudelaire, passando pelo pensamento anarquista, pelo dandismo e por Schopenhauer (ibid., p. 305). Trata-se da “relação de si para consigo” que atravessa a governamentalidade do governo de si e dos outros, de uma cadeia que articula a política e a ética (ibid., p. 306-307).
Foucault defende que Descartes foi o marco de transição entre uma forma de subjetivação cuja filosofia servia como cura de si, como forma de cuidado e de autoconsciência, mas também de ação política e de governamentalidade, em que o sujeito se transformaria na imanência de seu cuidado, para um marco em que todos têm acesso à filosofia, porém, não necessariamente praticam o conhecimento como exercício espiritual. Com Descartes, não há mais condições de acesso à verdade pelo sujeito; assim, o conhecimento se equipara à verdade.
Essa leitura de Foucault, primeiro em relação à conversão do pastorado cristão e, muitos séculos depois, ao momento cartesiano, como rupturas à cultura do cuidado de si reforçam a ideia de que o esoterismo sobrevive como uma terceira corrente cultural no Ocidente, não se confundindo com o Esclarecimento e nem com o cristianismo, ainda que possam ter afinidades em determinados contextos.
Um dos exercícios de pensamento interessantes citados por Foucault é a praemeditatio malorum, a meditação dos males futuros. Quem trabalhou nesse sentido foram os estóicos estritos, como Sêneca e Epicteto, assim como Plutarco. Esse exercício consistia em “considerar o pior sempre como certo”, e não prever desgraças futuras, como sói parecer. Só são males os males por conta da opinião que desses eventos temos; nada seria mal em si. (ibid., p. 609).
A praemeditatio malorum trata-se de um exemplo de prática de si que será antecedente das articulações cognitivas que Foucault entenderá como divinatio, a ser discutida na próxima seção, que consiste em uma forma de relação com o mundo em que o tempo do sujeito e o tempo do cosmos (categoria renascentista) produzem uma colagem. Por mais que não se tratem do mesmo fenômeno, podem ser consideradas preocupações reflexivas dos sujeitos em relação ao futuro.
Esses exercícios, por mais que possuam variações diversas, que começam com Platão e o cuidado de si como cuidado da polis e vão tomando tons mais individualizados até os séculos III e IV, podem ser consideradas protoformas do que na modernidade se entenderia como esoterismo. O princípio do cuidado de si como filosofia espiritual que não é dada ao sujeito, e sim como ethos reflexivo marcará o que procuramos chamar de atitude gnóstica ou gnosiológica do esoterismo.
A partir das considerações iniciais, pautadas na conceituação descritiva de Faivre e da leitura mais aprofundada de Foucault, chegamos à conclusão inicial de que, na verdade, o esoterismo possui dois eixos interdependentes como elementos internos centrais: o elemento gnosiológico ou subjetivo, herdeiro do primado do cuidado de si da Antiguidade, enquanto vertente cultural que o faz sobreviver em diferentes temporalidades históricas, mas também de um elemento cosmológico ou objetivo central que radica na Renascença como uma epistéme (a das similitudes ou semelhanças), ou seja, uma forma de ser do Renascimento que também revive-se através de diferentes temporalidades históricas.
Elemento cosmológico ou objetivo – do Renascimento ao moderno esoterismo
O autor estebelece a ousada proposição categorial epistéme muito embasado, sem dúvida, pelo clima intelectual do estruturalismo francês, do qual foi um dos condutores. Epistéme será entendida como a fundamentação englobante de cada época histórica, entendida como o topos, a forma de vida última capaz de formar e englobar cada temporalidade histórica.
Antes de apenas uma forma de conhecimento, uma epistéme fundamenta uma forma de habitar o mundo – daí a relação topográfica e a metáfora arquitetônica das ‘topias’ – que tem implicações como discursos que promovem práticas sociais. Pode-se considerar, então, o pensamento foucaultiano como topológico, já que sempre pressupõe uma instância metassintática que coordena, de acordo com a temporalidade histórica, a junção de palavras e coisas.
O conceito de epistéme será central para analisar como o esoterismo se constrói como forma de conhecimento que representa uma sobrevivencia cultural de diversas temporalidades históricas e que acaba por constranger sociólogos mais imediatistas que não entendem as origens do interesse dos jovens contemporâneos por astrologia ou mesmo que se satisfazem pela compreensão deslocada do fenômeno da Nova Era, sem recorrer às fontes clássicas do esoterismo.
Visto que o esoterismo, então, trata-se fundamentalmente de um saber gnóstico e cosmológico pautado numa relação de ressonância entre o macrocosmo e o microcosmo, é preciso voltarmos nossa atenção para o que Foucault entende como epistéme das semelhanças. Trata-se de uma forma de vida (e de conhecimento) que se caracterizou pela ideia de que todo o universo poderia ser simbolizado a partir da interdependência universal. Em síntese, Deus imprimiria sinais nas coisas (semiologia), restando ao homem interpretá-las (hermenêutica).
Foucault estabelece três diferentes epistémes em análise em sua obra: a primeira é a epistéme das similitudes ou das semelhanças, da época da Renascença; a segunda, a epistéme que funda a chamada Idade Clássica, ou a epistéme das ‘ciências do mesmo’, do início do século XVII; e a terceira, a que funda a Idade Moderna, com o surgimento das ‘ciências do outro’, já no século XIX.
Enquanto a epistéme das similitudes retrata uma relação de simbolização e contiguidade entre sujeito e mundo, a epistéme da Idade Clássica é pautada na serialização e na quantificação do mundo, que o autor também volta ao termo grego: mathesis, ou seja, a vontade de matematizar o mundo e sequenciar as coisas em categorias, quando se institui, por exemplo, a estatística e a taxonomia, que serão bases para a economia política, alguns séculos depois.
Já a epistéme da época moderna será caracterizada pelo descobrimento do sujeito como um outro de si mesmo: a partir da literatura e da instituição do narrador, o sujeito moderno consegue identificar-se e colocar-se na posição de alteridade: daí surgem ciências como a antropologia e a psicanálise, por exemplo.
A epistéme das similitudes possui quatro formas essenciais de articulação interna do ‘conhecimento por semelhança’. A primeira delas é a convenientia. Seu postulado prega que, quanto mais próximo fisicamente, mais uma coisa será conveniente à outra; trata-se de uma similitude pela relação de vizinhança. O próprio autor exemplifica: alma e corpo estão juntos fisicamente e se parecem, em termos morfológicos; o homem e tudo o que o rodeia, a terra e o mar são exemplos de relações de convenientia (ibid., pp. 26-27).
A segunda articulação cognitiva das similitudes era chamada aemulatio: a emulação não depende da vizinhança, e sim de uma relação entre reflexo e espelho, como por exemplo, quando se dizia que a mente do homem emularia a sabedoria de Deus; a boca é associada a Vênus (veículo do amor), já o nariz teria a ver com Júpiter e Mercúrio: são formas de semelhança que não dependem da vizinhança e quando uma coisa é reflexo ou espelho da outra (Foucault, 1971, pp. 28-30);
Já as analogias, a terceira articulação, incorporam um pouco da convenientia e da aemulatio, mas são mais específicas: por exemplo, a cabeça do homem corresponde à folha da planta; seu corpo ao caule e os pés à raiz. Trata-se tanto de uma emulação, um reflexo do espelho, quanto de uma conveniência, dada a proximidade do homem com a planta, mas é mais complexa, porque parte do corpo corresponde, analogamente, a outras de forma coordenada (ibid., pp. 30-32);
A quarta e última articulação são as simpatias. “Aqui, não existe nenhum caminho determinado de antemão, nenhuma distância está suposta, nenhum encadeamento prescrito” (ibid., p. 32). Segundo Foucault,
“a simpatia é um exemplo do Mesmo tão forte e tão urgente que não se contenta em ser uma das formas do semelhante; tem o perigoso poder de assimilar, de fazer as coisas idênticas umas às outras, de mesclá-las, de fazer desaparecer sua individualidade – assim, então, de fazê-las estranhas ao que eram. A simpatia transforma.” (ibid., idem).
A simpatia carrega um ‘poder mágico’, portanto, no sentido de transformar as próprias coisas. Foucault a exemplifica com os quatro elementos aristotélicos: a simpatia opera por assimilação de um suposto outro que se torna o mesmo, descaracterizando-o. Por exemplo, os elementos têm antipatia entre si: ar e água: ou seja, ar nunca se torna água e vice versa, mas ar pode se transformar em fogo, por exemplo, por simpatia. As simpatias e antipatias coordenam as outras formas de semelhança, porque as coisas só podem se emular, avizinhar ou serem análogas pelo mecanismo de simpatia (ibid., p. 34).
Esses quatro princípios só fazem sentido se o mundo é entendido por meio de assinaturas. Fundamentalmente, a epistéme das similitudes opera por meio delas, segundo Foucault. O sistema de assinaturas inverte a relação entre o visível e o invisível: trata-se do que Foucault chamaria do mundo como um ‘grande sistema de hieróglifos’. Assim, as semelhanças apenas reproduzem ou espelham sigilos mágicos da natureza, analogamente ao mito da caverna de Platão. Acrescendo ao elemento da magia naturalis ou natureza vivente, a que se refere Faivre, as assinaturas são símbolos postos à disposição de quem consegue lê-los.
As assinaturas são formas de associação entre elementos conhecidos e desconhecidos na natureza que são trazidos à vista pelas analogias. Por exemplo, as linhas da mão seriam consideradas uma emulação do céu ou dos planetas nas mãos, mas também uma analogia entre as linhas da mão e a vida amorosa de seu portador e suas fases da vida, por exemplo. Outro exemplo comum à época é a relação com as plantas: estas têm assinatura porque, analogamente ao corpo, expressam um padrão, assim como emulam a força dos planetas e avizinham (convenientia) o reino vegetal e o reino humano. A assinatura, assim, pressupõe um “mundo em prosa”: tudo o que existe é observável, decifrável e comparável.
Diferentemente dos historiadores do esoterismo, Foucault demonstra, aqui, como o esoterismo possui elementos internos qualitativos que podem qualificá-lo como forma de conhecimento e de relação com o mundo específica, não apenas, como quer Faivre, com elementos exteriores. Assim, a epistéme das similitudes – forma de conhecimento e de relação com um mundo de ultrassimbolização, de premência da hermenêutica e da semiologia – pode ser considerada a grande fundadora do conhecimento esotérico, porém, tal afirmação só fará sentido se as assinaturas atravessarem o sujeito como uma prática de si.
Nesse sentido, o conhecimento esotérico é necessariamente reflexivo e cosmológico, reunindo, em si, a experiência da vida do sujeito com as assinaturas expressas no mundo: a cosmovisão neoplatônica de correspondência do macrocosmos com o microcosmos é fundamental nesse contexto, formando um grande espelho de correspondências (ibid., p. 39).
Porém, alguns desdobramentos necessários da epistéme das similitudes creio que sejam elementos fundamentais não pontuados na literatura sobre o esoterismo. O primeiro deles é a dimensão temporal do esoterismo, que Foucault chega a mencionar quando se refere a essa epistéme como divinatio. Essa implicação direta trata da dimensão temporal da experiência: a colagem do tempo subjetivo com o tempo do mundo no esoterismo se dá a partir justamente da divinatio.
A divinatio, ressalto, precisa ser entendida tanto em sentido temporal: adivinhar no sentido de divinizar o futuro, como também a epistéme das similitudes institui a divinatio no sentido de que tudo no universo é divino (dimensão espacial, topográfica, de onde parte a reflexão do primeiro Foucault).
A questão da divinatio tem como vetor correspondente e inseparável a imaginação e o imaginário inflados à epistéme das similitudes, o segundo elemento central marginalizado na literatura. A semelhança só se exerce a partir da imaginação. Isso implica em que (i) as imagens são fundamentais na cosmovisão e na epistéme renascentista e todas as relações de semelhança são pautadas em imagens; (ii) a perda de hegemonia da epistéme renascentista em relação à epistéme clássica e, posteriormente, à moderna implica entender uma decadência do pensar com imagens, de entender o mundo a partir de sinais e imagens vivas.
No século XVII, a tendência de matematizar o mundo, tornar as coisas séries contábeis a partir da taxonomia, das estatísticas e da probabilidade formou uma ‘ciência geral da ordem’ e que, progressivamente, no século XIX, dá lugar a outro sistema com o surgimento do problema do eu e do outro, mas também do sentido, não mais apenas de interpretar o mundo, como no Renascimento, de representar o mundo, como na Idade Clássica, mas também de dar sentido ao mundo, como na Idade Moderna.
Em resumo, ressalto alguns elementos centrais para a definição e a compreensão sociológica do esoterismo: em primeiro lugar, o resgate arqueológico do princípio do cuidado de si como prática espiritual na Antiguidade como um antecessor das formas de reflexividade do esoterismo – a que chamei de elemento gnóstico ou subjetivo do esoterismo. Em seguida, a epistéme das similitudes ressalta o elemento cosmológico ou objetivo do esoterismo. Para isso, a dimensão temporal da divinatio e a dimensão da imaginação mostraram ser características intrínsecas ao esoterismo.
A questão, porém, reside no fato de que, com Foucault, mas também contra Foucault, a epistéme das similitudes só faz sentido como um conhecimento de si, uma vez que seus elementos internos de articulação cognitiva já mencionados só podem ser entendidos se as assinaturas cosmológicas atravessem a prática de si dos sujeitos, exercendo esse cosmoteísmo renascentista a dinâmica de uma filosofia como forma de espiritualidade, nos termos de Foucault.
[1] Para Faivre, místico refere-se a tudo aquilo que é fruto de uma revelação direta de Deus, enquanto esotérico refere-se àquilo que precisa da mediação das imagens para acessar a Deus, da imaginação criativa (Faivre, op. cit., p. 17). Por isso, para Faivre, a imaginação, no sentido de ler com imagens, imaginar como criação de imagens e mundos, é tão importante nesse contexto. Imaginar, para ele, parte do mesmo campo semântico e cosmológico de imagens, magia e magnetismo (ibid., p. 18).
[2] Nesse ponto, estou de pleno acordo com a instigante categoria cosmoteísmo de Hanegraaff.
[3] Quem sabe, uma indisciplina em relação a si mesmo, enquanto autor-instituição que acabou se tornando.
[4] Novamente, procuro salientar a importância de voltar à Antiguidade para entender as raízes da epistéme renascentista, bem como já observado em relação à praemeditatio malorum.
[5] Para melhor análise, ver, por exemplo, Cassirer (2001).
Conclusiones:
Chegamos à conclusão preliminar, a partir de uma leitura muito particular de Foucault, de que a análise do esoterismo como uma sobrevivência cultural das práticas do cuidado de si antigas revelam uma relação do sujeito com a verdade central para o entendimento do esoterismo moderno, bem como a epistéme das similitudes é capaz de revelar um topos de conhecimento que encontra ecos mesmo em fenômenos contemporâneos, como a chamada Nova Era. Poderíamos, então, definir o esoterismo como um ethos, uma relação do sujeito com o mundo que possui um elemento gnóstico e outro cosmológico: uma forma de se relacionar com o mundo reflexiva e cosmoteísta.
A leitura de Foucault precisa ser minuciosa, para que não se caia numa espécie de hipercrítica social. Entendemos que, da arqueologia à genealogia, de nítida inspiração nietzscheana, Foucault apresenta, por vezes, uma filosofia da história muito sincrônica, em que elementos genealógicos aparentam-se como antecedentes históricos em sentido por vezes lineares.
Em termos de outra filosofia da história, procuro pensar desdobramentos conceituais a partir de Aby Warburg, que entende a história como ondas de sobrevivências culturais, fundadas na dialética rememoração-reinvenção do imaginário social. O conhecimento esotérico constrói mundos imaginados; não somente reproduz, e sim reinventa a totalidade do cosmos em cada reaparição. Trata-se da excelência do “pensamento fantasmagórico”, segundo Warburg, que elabora o repositório do imaginário cultural ocidental.
Com essa crítica, não pretendo prescindir de Foucault, até porque sua análise das epistémes, ou mesmo suas obras sobre os diversos dispositivos discursivos que compõem as sociedades disciplinares ou a governamentalidade não se tratam de mera lógica sincrônica. Procuro apenas enfatizar, com Warburg, os elementos diacrônicos de reinvenção e criatividade histórica.
Como Foucault sempre se preocupou majoritariamente com as correntes hegemônicas no pensamento moderno, talvez por isso tenha tão pouco se referido explicitamente ao esoterismo, bem como pouco se interessado tanto pelo gnosticismo quanto pelo neoplatonismo, que influenciariam muito o fenômeno em tela. Porém, suas contribuições são, sem dúvidas, centrais para entender o esoterismo segundo seus elementos cognitivos, como síntese gnóstico-cosmológica, uma forma de imaginação e temporalização do mundo; um jogo de imagens em movimento que constituem parte de uma totalidade cósmica que atravessa o mais íntimo do sujeito.
Bibliografía:
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STUCKRAD, K. Locations of knowledge in Medieval and Early modern Europe: esoteric discourse and Western identities. Leiden/Boston: Brill, 2010.
Palabras clave:
Michel Foucault; Esoterismo; Epistéme; Cuidado de si.