Resumen de la Ponencia:
Córrego Narciso é uma comunidade quilombola rural (afrodescendente) situada em Araçuaí, no Médio Vale do Jequitinhonha, nordeste semiárido de Minas Gerais. Grande parte de africanos que alcançaram o sudeste do Brasil é originária de povos banto de Angola e Congo, na África Central. Marcando práticas sociais, religiosas e culturais, o sistema de forças vitais compreendido pela Filosofia Bantu aparece nas rezas, curações e benzeções de quebranto e mau-olhado, assim como nas oferendas de água, pedras e pés de mandioca, feijão ou milho depositadas nas cruzes de penitência por chuva, ao final do período de seca, reminiscentes de práticas semelhantes consagradas a Quianda, um dos mais populares espíritos das águas em Luanda, Angola. Como categorias não estanques, mas porosas e consubstanciais da experiência, essas práticas, religiosidades, crenças e simpatias são apresentadas e ilustradas em suas imbricações com dimensões como alimento, natureza, água, terra, nascimento, gênero, tabu e jejum, morte, honra e moral, comunhão e expiação, trabalho, troca, família, sociabilidade, sacrifício, ritual e festividade. Ilustram essa imbricação a crença de que não se pode apontar uma abóbora bonita na roça com o dedo, senão ela “peca” (fica chocha), e os relatos de que era costume ir uma “Procissão de gente pra chapada pegar pequi”, de que “Tudo que é sofrido Deus abençoa” (referindo-se à torração de farinha), de que “Uma medida que nós colhe vale três comprado... é mais abençoado” e de que o trabalho na roça de fumal “é uma penitência”. Desde a década de 1960, o Jequitinhonha foi tomado por instituições do estado como uma região identitária referenciada no estigma de Vale da Fome e da Miséria, muito em função de justificar a implementação de políticas de desenvolvimento pretensamente redencionistas, como o estímulo público a monocultivos de eucalipto e pastagens de gado. A fé e religiosidade popular e ancestral vivida corriqueiramente em Córrego Narciso é aqui apresentada e compreendida, no entanto, não unicamente pela referência a um contexto de privação, mas buscando-se entrever como as figuras de uma natureza sacralizada e de um Deus terreno generosos, que abençoam, retribuem e permeiam os modos de produzir, colher, compartilhar, beber e comer, habilitam aos sujeitos uma transfiguração da falta, dureza e regramento em fartura, delicadeza, encantamento e provisão. O que as instâncias etnográficas aqui trazidas mostram é menos “a doença, a morte ... o fracasso e a pobreza” explicadas por aquela filosofia bantu, e mais como a vida e a morte na roça, no quilombo, do nascimento ao desenlace, parecem acontecer em medida farta. Por sob um olhar inatento ou superficial, entrevê-se como diante de condições verdadeiramente duras (e secas) - ou mesmo justamente devido a essa dureza - é-se ainda capaz de finezas e farturas nos modos de produzir, compartilhar e comer.