Resumen de la Ponencia:
Deve-se observar que a democracia à brasileira constituiu um mercado eleitoral heterogêneo e complexo, típico do fenômeno das democracias liberal-representativas de massas, todavia, marcada por particularidades próprias da formação social brasileira. Assim, a “República à brasileira” adquiriu diferentes modelagens, com formas e conteúdos particulares, adequando-se aos diferentes processos históricos, abertos e fechados, com os diferentes ciclos de acumulação do capital: 1. Primeira República (1889-1929): marcada por estruturas de poder de oligarquias agrárias, com restrições e limitações à disputa pelo poder, no interior das próprias oligarquias representativas; 2. A chamada Revolução de 1930/Governo Provisório (1930-1934): introduziram-se os mecanismos e os instrumentos político-econômicos, a partir dos quais forjaram-se o tipo e a forma da democracia liberal-representativa de massas, restrita e limitada (forma híbrida liberal-corporativa), a partir da qual os interesses de frações de classe dominante tipicamente urbano-industriais passaram a ser predominantes; 3. Segunda República (1934-1937): implantou-se um conjunto de instituições político-econômicas, necessárias a constituição da democracia liberal-representativa de massas, restrita e limitada, com potencial de expansão controlada; 4. Bonapartismo varguista (1937-1945); 5. Terceira República (1945-1964): expande-se a democracia liberal-representativa de massas, restrita e limitada, todavia, com a instituição do instrumento político da oposição consentida; 6. Bonapartismo militar (1964-1985): permaneceram os instrumentos de oposição consentida e expansão controlada, com restrições e limitações mais profundas; 7. Quarta República (1988-2016): consolidou-se a democracia liberal-representativa de massas, com a permanência de aspectos e instrumentos de restrição e limitação, próprios da autocracia burguesa institucionalizada, todavia, ensaiou-se a possibilidade de eliminação dos instrumentos de oposição consentida e expansão controlada; 8. Tempos de Incertezas: pode-se abrir uma Quinta República Regressiva ou um novo regime bonapartista (2016 – ). Desse processo, pode-se destacar a constituição de uma lenta e gradual democracia liberal-representativa de massas, restrita e limitada, que, mesmo durante os bonapartismos de tipos varguista e militar, expandiu-se de tal forma que poder-se-iam apontar o tamanho e a complexidade dos colégios eleitorais. O fenômeno social de constituição de uma democracia liberal-representativa de massas foi forjado após a chamada Revolução de 1930, visto que na Primeira República, o processo era marcado por recorrentes fraudes eleitorais e forte presença do coronelismo. O voto não era secreto e predominava a estrutura de “voto de cabresto”, como demonstrara Vitor Leal Nunes (1978), em Coronelismo, Enxada e Voto. Pode-se constatar uma expansão do direito ao voto, a partir de 1930: a) Eleições de 1933: 4% da população; b) Eleições de 1945: 16% da população; c) Eleições de 1962: 24% da população ou 18,5 milhões de eleitores; d) Eleições de 2014: 70% da população, com 144 milhões de eleitores. Quando se pensa a “República à brasileira” não se pode estabelecer uma relação direta e mecânica entre quantidade e qualidade, entre direito ao voto e participação e representação política.
Introducción:
A variável em questão, no âmbito das relações imediatas, revela mudanças e transformações profundas, de tal forma a instituir as chamadas arenas de competição em escala – definidas e analisadas, a partir das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, e/ou por municípios (5.570), Unidades Federativas (26 e o Distrito Federal) –, mensuradas por métodos quantitativos, como forma de definir e delinear dinâmica e movimento do mercado eleitoral, bem como quantificar a produtividade dos partidos competidores e os níveis de renovação parlamentar. A constituição de uma democracia liberal-representativa de massas, mesmo que restrita e limitada, necessitou da articulação complexa de arenas de competição e mercados eleitorais, viáveis a partir da proliferação de diversas siglas partidárias, com clara e nítida ideologia, todavia, vinculadas a programas de partidos com capacidade de articulação e capilaridade nacional. Assim, as pequenas e médias siglas seriam funcionais à ordem do capital, visto que estariam disponíveis a submeterem-se ao “Programa” representado pelas grandes siglas. Forja-se uma disfunção aparente entre eleições presidenciais e municipais. Aparente, porque as pequenas e médias siglas dominam as eleições locais e criam uma travagem estrutural à participação e representação da classe trabalhadora, impedindo-a de se projetar na arena de competição eleitoral nos níveis local e regional. A disfunção aparente revela-se no Parlamento brasileiro, controlado em sua ampla maioria pelo espectro (neo)conservador. A partir de tal dinâmica e movimento revela-se uma questão parlamentar, como parte intrínseca e determinante da democracia à brasileira.
Desarrollo:
Nesse sentido, seria impreciso comparar a estrutura e o sistema político-partidário da Terceira República, equivocadamente definida como República Populista, com o da Quarta República. Assim sendo, não se poderia apontar nenhum tipo de relação causal, tampouco mediativa, entre a lógica e a modelagem político-partidária de governança estruturada nas tríades: 1. Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – União Democrática Nacional (UDN) – Partido Social Democrático (PSD) e 2. Partido dos Trabalhadores (PT) – Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), muito menos atribuir a denominação de “Centrão” a siglas médias e pequenas, caracterizando-as como despidas de ideologia e “Programa” presentes em ambos os processos históricos.
A partir da questão parlamentar forjou-se o fenômeno denominado Centrão, que poderia ser definido como forças satélites, funcionais e necessárias à governança de um país de dimensões continentais, a partir das quais poder-se-iam articular processos de construção de “pactos de conservação” de forma dinâmica, entre as esferas locais-regionais-nacional, visto que as siglas em questão encontram-se no espectro político (neo)conservador. Deve-se destacar que a constituição e a manutenção de máquinas político-partidárias nacionais permanentes exigiriam o empenho de grande volume de recursos financeiros; e, ao mesmo tempo, assim como as demais instituições políticas brasileiras, os partidos políticos não podem se autonomizar da autocracia burguesa a ponto de confrontá-la, antes o contrário, precisam estar sob controle e submetidos à sua dinâmica e ao seu movimento. Nesse sentido, forja-se um fenômeno particular próprio da democracia à brasileira: a questão parlamentar, a partir da qual instituem-se partidos políticos fragmentados e débeis, em contraposição a um parlamento unificado e sólido. Ora, não se estruturou o método parlamentar próprio das revoluções burguesas clássicas, mas um tipo particular de corporação que controla o tipo e a forma de mercado, da competição eleitoral e das próprias elites políticas.
Quando os partidos políticos se fortalecem e ameaçam a se autonomizar, aciona-se o instrumento de oposição consentida, como na Terceira República, com a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1947; ou abrem-se processos de contrarrevolução preventiva, como: i. em 1964, quando o Partido Trabalhista Brasileiro apontava tendências de crescimento progressivo e ameaçava tornar-se hegemônico, como demonstram os números de crescimento eleitoral, traduzidos em aumento de força política; ii. em 2016, quando o Partido dos Trabalhadores, após quatro vitórias presidenciais consecutivas, também apontava tendências progressivas de crescimento e ameaçava constituir-se como hegemônico. No primeiro caso, o Partido Comunista Brasileiro foi bloqueado pelas instituições jurídico-políticas e posto na clandestinidade pela nascente institucionalização da democracia liberal-representativa de massas; no segundo, o Partido Trabalhista Brasileiro foi extinto, pelo bonapartismo militar; no terceiro, o Partido dos Trabalhadores foi pressionado a passar por um processo de “agiornamento” profundo para continuar existindo formalmente – variável que explica, em parte, a postura passiva do Partido dos Trabalhadores frente ao Coup d’État. Logo, ao contrário do que se difunde no e pelo senso comum, as pequenas e médias siglas que constituem o chamado “Centrão” são ideológicas e programáticas e, portanto, funcionais à autocracia burguesa e ao controle da forma e do conteúdo da democracia liberal-representativa de massas à brasileira, uma vez que assumem papel de grande relevância nos momentos de crise social, refletindo a questão parlamentar no Brasil.
Pode-se destacar que o bonapartismo militar extinguiu os partidos e os unificou na forma de um bipartidarismo controlado, ao forjar a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e, ao mesmo tempo, os termos de funcionamento e existência do Movimento Brasileiro Democrático (MDB), de tal forma a manter as eleições legislativas e municipais a partir dos instrumentos de oposição consentida e expansão controlada. A Reforma Política de 1979 forjou e instituiu processos de controle do sistema político partidário brasileiro, mantendo ambos os instrumentos. Na Quarta República, as siglas pequenas e médias foram funcionais ao Coup d’État e a constituição e legitimação de um novo pacto conservador regressivo, como forma de manter a aparência de normalidade, ritos e procedimentos institucionais, porque os partidos nacionais que estruturaram a Quarta República foram deslegitimados e passaram por crises orgânicas profundas. Portanto, Tempos de Incertezas abre um processo de recomposição do sistema político-partidário, bem como dos tipos e formas de representação.
Ao longo da primeira década do século XXI, evidenciou-se a questão do Judiciário, devido ao papel e à função social que passou a desempenhar na Quarta República com o aumento significativo de autonomia e poder. O Judiciário brasileiro ensaiou a usurpação da soberania popular, a partir de tentativas de legislar sobre assuntos considerados omissos pelo Legislativo. Assim, ensaiava-se o remodelamento do sistema judiciário e órgãos de controle, que, rapidamente, converteram-se em órgãos de repressão. Deve-se destacar que o Judiciário e os órgãos de controle caracterizam-se por serem essencialmente instâncias e representações do Estado-força, de tal forma que, ao predominarem sob a lógica do fenômeno ideológico da judicialização da política, significa e representa a sobreposição ao método parlamentar – representação e simbologia do Estado-consenso. A mais emblemática e exitosa intervenção do Judiciário encontra-se no âmbito da Ação Penal 470, a partir da instrumentalização da teoria do domínio do fato, bem como seus desdobramentos na Operação Lava Jato e no Coup d’État soft de 2016. Houve uma escalada do processo de judicialização da política, tolerada quando dizia respeito a questões progressistas, tais como decisões acerca de: i. aborto; ii. pesquisas com células tronco; iii. direitos homoafetivos. Entretanto, deram legitimidade a decisões de outras ordens, a partir das quais fizeram intervenções tanto na dinâmica do Executivo quanto do Legislativo.
No pós-Coup d’État, a partir das eleições presidenciais de 2018 e seus desdobramentos com o governo de Jair Messias Bolsonaro (1955 – ), os militares também passaram a reivindicar a usurpação da soberania popular, uma vez que se colocaram como tutores e guardiões da República, de tal forma a revelar os fundamentos da questão militar, na e a partir da qual forjou-se um tipo particular de Forças Armadas – particularmente o Exército, devido à maior estrutura e capilaridade social –, entendida como poder político moderador que, assim como os demais poderes, estrutura-se, movimenta-se e dinamiza-se pela lógica da corporação. Ora, no plano das relações imediatas, o processo em questão emergiria enquanto crise de governabilidade, advinda de um tipo particular de sistema político eleitoral fragmentado e estruturado em suposto multipartidarismo polarizado, de tal forma que o aumento de legendas dificultaria a formação de maioria no Congresso Nacional e teria que ser modelado a partir da adoção de um tipo particular de presidencialismo de coalizão de segurança máxima ou mínima, a depender da matéria, dosando-se o instrumento coação a partir do nível e grau de lealdade dos parlamentares. Assim, o remédio à enfermidade seria a adoção de uma reforma política que alterasse o tipo de sistema eleitoral, redesenhasse os tipos de coligações, com adoção de determinadas cláusulas de barreira e do tipo e da forma de financiamento de campanha. Trata-se de redesenhar o tipo e a forma do mercado, da arena e dos competidores eleitorais.
O Estado e a anatomia da Sociedade Civil-burguesa – Bürgerliche Gesellschaft – transformaram-se profundamente ao longo do processo histórico que caracteriza a revolução passiva à brasileira (1928-1978). O conceito de revolução passiva designa a forma e o conteúdo de um tipo particular de transição para a sociedade capitalista. Trata-se fundamentalmente de um processo de revolução sem revolução ou, se quisermos, uma revolução restauração, a partir da qual recompõe-se o poder das frações de classe dominante, como forma de bloquear toda e qualquer possibilidade de organização e representação autônoma da classe trabalhadora e demais classes subalternas, de tal forma a constituir-se um novo bloco histórico, estruturado em uma aliança débil entre as frações de classe dominante em ascensão (forças burguesas) e as frações de classe dominante decadentes (forças oligárquicas agrárias). Deve-se salientar que revolução passiva não tem similaridade com pacifismo ou passividade, antes o contrário, trata-se de um processo marcado pela violência da conservação, na e a partir da qual se impõe o monopólio da violência – Gewaltmonopol des Staates –, enquanto representação dos fundamentos primígenos do Estado-força (Weber, 1992), como forma de manter o poder “dos de cima”, em contraposição à possibilidade de ascensão e avanço da violência revolucionária advinda das organizações autônomas da classe trabalhadora e demais classes subalternas, enquanto força disruptiva capaz de impor uma revolução democrática vinda “dos de baixo”. Assim, toda revolução passiva fundamenta-se na violência da conservação, particularmente aquela sob o monopólio do Estado. Trata-se de um processo histórico, no qual a universalização do capitalismo pressionava as periferias a se recomporem, ao mesmo tempo que a recomposição implicaria em bloqueio de toda e qualquer força disruptiva jacobina com capacidade de alteração da correlação de forças e transição para uma revolução democrática. A revolução passiva à brasileira foi um efeito reflexo da crise mundial capitalista, entendido como processo histórico de longa duração e de mudanças estruturais e transformações orgânicas, tanto na dinâmica da sociabilidade burguesa quanto no processo de reprodução ampliada do capital. Assim, a revolução passiva à brasileira caracterizou-se por ser o processo de dominância e difusão do modo de vida capitalista, no qual predominaram e generalizaram-se o modo de produção capitalista e a burguesia como classe dominante – forjados a partir de relações umbilicais com as oligarquias agrárias. Nesse sentido, a revolução passiva só poderia produzir uma hegemonia burguesa débil, com capacidade de introdução de uma democracia liberal representativa de massas, restrita e limitada, constantemente tutelada pelas Forças Armadas e/ou por tipos particulares de bonapartismos. Trata-se de um tipo particular de ideologia híbrida que fundiu liberalismo e corporativismo, na e a partir da qual admite-se a ideologia fascista, mas recusa, ao menos a princípio, o regime fascista.
Nesses termos, compreende-se que, ao longo dos 50 anos que demarcam a revolução passiva à brasileira, forjou-se, desenvolveu-se e enraizou-se um tipo particular de capitalismo periférico, dependente e associado ao capital-imperialismo, ao mesmo tempo que as classes sociais tornaram-se mais complexas, tanto no âmbito das relações internas – entre as frações de classes e as franjas de classes – quanto em suas relações externas de luta de classes. Trata-se, portanto, de um tipo particular de capitalismo, Estado e classes sociais, plenamente desenvolvidos, porém com forma e conteúdo forjados a partir de particularidades advindas da formação social brasileira. Assim, os altos índices de miserabilidade e pobreza não seriam uma travagem ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro, antes o contrário, seriam funcionais, visto que ofereceriam as condições adequadas à espoliação extremada, acelerada e desmedida de grandes contingentes populacionais, como forma de viabilizar processos de aceleração da extração de mais valia, tanto em sua forma relativa quanto absoluta.
O Brasil colonial-escravagista, organicamente integrado e submetido ao processo de acumulação originária do capital, legou ao contemporâneo um tipo particular de superpopulação excedente estrutural, uma vez que o passado forjado no e pelo processo colonial-escravagista, somado ao tipo particular de revolução passiva e ao presente neoliberal, operaram a conversão de enormes contingentes populacionais em exército industrial de reserva, inorgânico e sem lugar definido nos diferentes tipos de ciclos de acumulação. Fernando Henrique Cardoso (1931 – ), durante seu governo, denominou tal fenômeno de “inempregáveis” (GIELOW, 1977). Aquilo que aparentemente seria uma travagem ao desenvolvimento do país constituiu-se historicamente em dinâmica estrutural e lógica secular funcional à reprodução ampliada do capital, cujo resultado imediato foi a pressão permanente sobre o valor do trabalho, mantendo-o baixo, até mesmo em momentos de elevadas taxas de crescimento econômico, forjando, portanto, processos de superacumulação, capazes de remunerar o capital-imperialismo e as frações de classe dominante interna, em uma complexa relação de dependência e associação; e, de maneira mediativa, a difusão de uma ideologia complexa de dominação, na e a partir da qual tipos e formas de bonapartismo soft e/ou clássico emergiram como solução salvacionista das massas pauperizadas. Destarte, seria demasiado idealista supor que a crise brasileira adviria de incompletudes e/ou insuficiências, tanto da forma quanto do conteúdo do capitalismo, do Estado e/ou das classes sociais.
Nesse sentido, conflitos e lutas de classes constituem uma unidade de contrários, a partir da qual a crise brasileira apresenta-se em sua forma imediata enquanto representação dos conflitos de classes, contudo em sua forma mediatizada como luta de classes nua e crua. Por conseguinte, a crise brasileira não seria resultado, única e exclusivamente, da disputa pela redistribuição da riqueza produzida, mas do conjunto das relações contraditórias intra e entre classes, aprofundadas pelo novo ciclo de acumulação do capital e da nova divisão do trabalho, impostos a partir da crise do capital do triênio 2007-2009, sendo o conflito pela redistribuição da riqueza uma das variáveis.
O período petista (2003-2016) foi forjado por um tipo particular de bloco no poder, estruturado na e pela hegemonia do grande capital financeiro internacional e seu tentáculo integrado internamente – grande burguesia compradora –, na medida em que conduziu a política econômica a partir da santíssima trindade neoliberal: juros altos, superávit primário e câmbio flutuante. Trata-se, aparentemente, de um tipo particular de política econômica dual, uma vez que operava, por um lado, garantindo os fundamentos neoliberais a partir da chamada autonomia do Banco Central e, por outro, ensaiando lampejos de desenvolvimentismo conduzidos pelo Ministério da Fazenda. Assim, pode-se observar continuidades-descontínuas quando comparado ao Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A principal descontinuidade encontra-se no processo gradual de tentativa de alteração da composição do bloco no poder, em que o período petista buscou fortalecer a grande burguesia interna, tanto industrial quanto do agronegócio, marcada historicamente por manter relações de dependência, associação e conflito com o grande capital financeiro internacional. O fortalecimento da grande burguesia interna aprofundou as contradições intraburguesas no bloco do poder, tendo como resultado imediato a abertura de uma crise de hegemonia, que se desdobrou em crise econômica, política e social. Deve-se destacar que o Programa do Partido dos Trabalhadores consolidou um tipo particular de análise acerca do capitalismo brasileiro, fundamentado na tese da incompletude do capitalismo e, portanto, na necessidade de forjar relações com a grande burguesia interna, como forma de desenvolvê-lo e completá-lo, de tal forma a criar as condições para racionalizar as políticas de Estado, instituir um capitalismo humanista e constituir certo espírito republicano – o princípio de ética na política, difundido historicamente pelo partido. Assim, o Partido dos Trabalhadores iniciou sua trajetória como germe de organização autônoma da classe trabalhadora e terminou como partido de massas, com características policlassistas. Em sua trajetória, descontruiu sua germinal identidade de classes e construiu uma relação de identidade imediata e afetiva com a massa inorgânica. A tal dinâmica e movimento denominou-se “lulismo”. Tal aspecto pode ser observado em suas supostas “duas almas”, tanto na de “Sion” quanto na do “Anhembi”, aparentemente contraditórias (SINGER, 2012). Assim, não existiria uma contradição entre as almas e as formas, mas uma complementariedade de momentos distintos de um partido que transitou da condição de germinal organização autônoma da classe trabalhadora à condição de partido da ordem. Para operacionalizar um tipo particular de pacto conservador, ao qual denominar-se-á conciliação de classes – operação político-ideológica de sustentação dos 13 anos de governos petistas –, foram necessárias duas ideologias vigorosas, complexas e articuladas, que deram sustentação e unidade à política interna e externa do período petista. Trata-se da constituição de um tipo particular de unidade de contrários, entre política e economia:
1. Lulismo: entendido como fenômeno social de massas, em que a liderança política personificou a figura do Estado protetor e forjou um tipo particular de relação com as massas – dispersas, amorfas e fragmentadas –, a partir da qual, objetiva e subjetivamente, travou quaisquer possibilidades de auto-organização e salto qualitativo da condição de massa (classe em-si) para organização autônoma da classe trabalhadora (classe para-si). Assim, cultivou-se e enraizou-se uma relação contraditória de dependência afetiva e de subordinação política; não ao acaso, o lulismo operou pela via de adoção de uma política de transferência e não de distribuição de renda, como pode ser observado na estrutura e modelagem de seus principais programas sociais: Bolsa Família, em substituição ao Projeto Renda Mínima; tímida Valorização do Salário Mínimo, se comparada à métrica do Dieese; facilitação do crédito (consignado), a partir do fortalecimento dos bancos públicos, acompanhado do endividamento das famílias e pequenas e médias empresas; 4. Minha Casa, Minha Vida, enquanto representação de uma política privatista de habitação; aprovação da Lei Complementar nº 128/2008[1] que alterou a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar nº 123/2006) e instituiu a figura do Micro Empreendedor Individual (MEI), estimulando, por um lado, os processos de “pejotização” e de trabalho intermitente e, por outro, a ideologia do empreendedorismo, da qual o fenômeno do “empreendedorismo por necessidade” é a principal representação. Deve-se destacar que, em 2014, 56 milhões de brasileiros dependiam do Bolsa Família. Ou seja, mais de um quarto da população brasileira vivia na ou abaixo da linha da pobreza, de tal forma a necessitar de um programa social para garantir as condições mínimas de reprodução da força de trabalho. Como demonstrou o IPEA[2], na primeira década do século XXI foram criados 21 milhões de postos de trabalho, no entanto 94,8% encontravam-se na faixa de rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal. Ora, pode-se constatar que o lulismo, ao manter a política econômica neoliberal e sua base de desindustrialização, incentivou a expansão do emprego de baixa remuneração, particularmente no setor de serviços. Trata-se de setor – devido à concepção e à dinâmica do tipo e da forma de organização e administração das relações de trabalho, bem como de sua natureza imediata de fragmentação e individualização – incapaz de produzir vínculos e laços de solidariedade e identidade de classes, de tal modo que os indivíduos tendem a se vincular ideologicamente, se deixadas suas relações imediatas, a concepções pequeno-burguesas (PINTO, 2016), assimilando inconscientemente os princípios que norteiam e estruturam as chamadas atividades liberais, como: individualismo, meritocracia, empreendedorismo e repulsa a cobranças de impostos pelo Estado, e, consequentemente, ao próprio Estado. Tais princípios se fundem e alimentam o crescimento progressivo da teologia da prosperidade. O fenômeno em questão, talvez, explique a relação, aparentemente contraditória de eleitores de Lula que optaram por Bolsonaro: uma espécie de simbologia da letra “L” em sinais trocados. Nesse sentido, pode-se dizer que o lulismo se consolidou pela via da política interna de expansão do mercado interno e difusão da ideologia da sociedade de classe média, mercado e ideologia estes acompanhados e estruturados na e pela integração de grandes contingentes populacionais superempobrecidos ao mercado de trabalho informal e precarizado.
2. Neodesenvolvimentismo: entendido como política econômica de atração e cooptação da grande burguesia interna, oferecendo-lhe em contrapartida posição privilegiada no interior do bloco no poder e a possibilidade de se tornar fração de classe burguesa conquistadora, a partir da articulação entre política interna e externa, materializadas nos seguintes projetos: G20; Campeãs Nacionais; Estratégia Sul-Sul; BRICS; fortalecimento e capitalização do BNDES, com capacidade de articulação e indução, tanto da política externa quanto interna; fortalecimento e competitividade dos bancos públicos, como forma de pressionar e modelar de forma indireta a política dos bancos privados. Tratam-se de pontos de tensão e conflito permanente no interior do bloco no poder. No plano da representação política significou cooptar lideranças políticas de outros partidos, direta e/ou indiretamente, para o projeto de conciliação de classes petista e, ao mesmo tempo, esvaziar o programa tanto de opositores quanto de aliados na arena política. No campo da oposição, esse processo se deu, como pode ser observado principalmente com relação ao PSDB e setores do PMDB e do próprio PFL/DEM, de tal forma a enfraquecer suas relações de representação com suas bases sociais tradicionais, empurrando-os para a extrema direita, na tentativa de recomposição; e no campo dos aliados, impôs o pacto conservador e os imobilizou, tornando-os forças-satélites dependentes e subordinadas, como nos casos do PCdoB, PSB, PDT e PSOL. Portanto, não se tratou de mero realinhamento eleitoral (SINGER, 2012), mas de recomposição das frações de classe, suas representações políticas imediatas e do próprio bloco no poder. Nesse sentido, o binômio “lulismo-neodesenvolvimentismo” se constituiu em unidade de contrários entre política e economia, ao se articularem umbilicalmente e forjarem os fundamentos do pacto conservador operado pelo período petista, ao qual se denominou conciliação de classes. Assim, a conciliação de classes petista, ao mesmo tempo que interveio na formação e na estrutura do bloco no poder, o fez a partir de uma relação disfuncional entre força hegemônica e força principal.
Conclusiones:
O bloco no poder modelado pela conciliação de classes petista apresentou fissuras profundas no decorrer dos governos Dilma Rousseff (2011-2016). A operação política realizada pelo Partido dos Trabalhadores exigiu que ele transitasse de germinal organização autônoma da classe trabalhadora à partido da ordem – processo iniciado com a vitória do campo majoritário, quando se unificou o Partido e o Programa, e concluído com os governos Lula. A vitória de Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 representou o fechamento de um ciclo de derrotas conjunturais (2013-2018) para a classe trabalhadora brasileira e latino-americana, visto que a posição estratégica do Brasil altera a correlação de forças na região. Pode-se dizer que o processo eleitoral de 2018 caracterizou-se pela atipicidade e, portanto, só poderia ser entendido se observado à luz do ciclo de derrotas conjunturais iniciado em 2013. Entretanto, mesmo se olhado isoladamente, o processo eleitoral de 2018 apresenta particularidades de Estado de Exceção, tanto em sua dinâmica quanto em seus ritos e procedimentos institucionais. Nesse sentido, pode-se levantar algumas considerações parciais e possíveis tendências acerca das eleições de 2018: 1. A eleição de Jair Messias Bolsonaro representou o encerramento de um ciclo de derrotas conjunturais da classe trabalhadora (2013-2018), a partir do qual o Coup d’Etat soft se impôs e foi legitimado pela via das urnas; 2. As eleições apresentaram como principal característica e tendência a interdição parcial dos direitos civis, políticos e sociais; 3. A eleição de Jair Bolsonaro abriu caminho para a difusão do fenômeno do bolsonarismo e possível abertura de uma via bonapartista; 4. Com essas eleições, abriu-se o Tempo de Incertezas, no e a partir do qual a via do bonapartismo bolsonarista pode se concretizar, em caso de efetividade de autogolpe, e fechar drasticamente o regime; 5. O novo bloco no poder exigirá a recomposição dos partidos da ordem, que devem tendencialmente movimentar-se à direita, inclusive o próprio Partido dos Trabalhadores, como forma de estruturar e dar legitimidade ao novo pacto conservador regressivo, seja a partir da constituição de uma Quinta República ou de uma nova via Bonapartista; 6. As organizações autônomas da classe trabalhadora ficaram em uma encruzilhada: i. manterem-se como força satélite de um Partido dos Trabalhadores, profissionalizado e burocratizado (MICHELS, 1971), em todas as suas instâncias, incapaz de se refundar e, portanto, cindido com a pauta da classe trabalhadora; ii. apostar em uma “nova esquerda pós-moderna”, fragmentada, policlassista e incapaz de forjar um Programa; iii. apostar na construção do moderno príncipe, capaz de articular Políticas de Frentes, a intelectualidade orgânica coletiva e individual da classe trabalhadora, no sentido da construção de uma revolução social.
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WEBER, M. ([1905] 1992), The Protestant work ethic and the spirit of capitalism Londres, Routledge.
Palabras clave:
Coup d’Etat soft –Contrarrevolução Preventiva – Bolsonarismo como fascismo.