Resumen de la Ponencia:
Desde 2001, quando foram criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), os cursos de graduação em medicina no Brasil passam por um processo de adaptação dos seus currículos à nova legislação. Para além das questões técnicas subjacentes, as mudanças curriculares envolvem uma série de crenças sobre como deve ser a formação médica. As políticas públicas em torno desta questão mobilizam associações médicas, universidades, pesquisadores/as, entre outros, além de agentes e órgãos das várias esferas do governo. Estes, por sua vez, para terem suas demandas atendidas, se unem através de grupos mais ou menos coesos ligados por crenças.O presente trabalho aborda as disputas em torno do subsistema de políticas públicas de formação médica sob o referencial teórico do modelo de coalizões de defesa, de Sabatier e Weible (2007). Ele mapeia e analisa a formação de coalizões de defesa entre os grupos que procuram pautar as políticas públicas em torno da formação médica no Brasil. As coalizões reúnem pessoas e organizações em torno de uma política pública e possuem níveis variados de coesão e de engajamento. O principal elo entre os membros de uma coalizão é o compartilhamento de determinadas crenças e valores que guiam as suas ações. Os dados analisados foram coletados durante minha pesquisa de doutorado em políticas públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre 2017 e 2021. Eles provieram majoritariamente da pesquisa bibliográfica em teses, dissertações, livros, artigos, relatórios especializados e documentos oficiais, além de observações e entrevistas com professores e gestores de cursos de medicina. O trabalho está organizando visando compreender a evolução histórica das diferentes perspectivas de formação médica e os grupos que a elas se vinculam, tanto internacionalmente quanto no Brasil, quais seus pressupostos teóricos e quais as crenças que fundamentam suas posições, para compreender quais concepções de saúde, doença e do papel de médicos e de médicas as permeiam. Isso permitiu interpretar como está estruturado o campo da formação médica no Brasil, demonstrando a dicotomia existente entre uma perspectiva ‘tradicional’, calcada no flexnerianismo e no modelo biomédico, e a perspectiva ‘inovadora’, crítica à tradicional, com foco na atenção básica e baseada nas concepções da saúde coletiva, e suas respectivas implicações.
Introducción:
Desde a década de 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem incentivado a discussão sobre a implementação de novos modelos de formação em medicina. Isto está diretamente relacionado a uma preocupação particular com os limites da formação calcada no modelo biomédico tradicional, considerado o grande responsável pela fragmentação do saber e das atividades profissionais. Produto da união entre a biologia e a medicina há cerca de dois séculos, ele é ancorado na ideia do corpo como uma máquina, da doença como um problema no seu funcionamento e da tarefa do/a médico/a como de realizar o conserto dessa máquina (GIDDENS, 2005).
Nesta perspectiva, emergiu nos Estados Unidos da América (EUA), no início do século XX, o modelo flexneriano de formação médica, que se tornará o “padrão-ouro” nas escolas médicas em todo o mundo. A partir de então, os currículos dos cursos de graduação de medicina foram divididos em dois ciclos: um com disciplinas das ciências básicas (fisiologia, anatomia etc.) com duração de dois anos; e um ciclo clínico nos anos restantes do curso, centrados no hospital e nas especialidades médicas. Como consequência, a formação médica adquiriu um caráter fragmentado (em função da divisão disciplinar e em especialidades), voltada para a formação de especialistas e majoritariamente hospitalocêntrica (ALMEIDA FILHO, 2010).
A Medicina Preventiva, a Medicina Integral e a Medicina Comunitária forneceram as bases teóricas para uma nova concepção da relação entre saúde e doença, que passa a ser vista como um processo. O foco das intervenções não é mais a cura, mas um ciclo de ações que perpassa a prevenção de doenças, a promoção da saúde, a assistência às pessoas com doenças e a reabilitação, quando se trata de doenças crônicas ou de sequelas de maior duração. Sob esta perspectiva emergiu uma concepção ecológica de saúde, em que os corpos passam a ser vistos como moldados pela inserção social das pessoas e suas experiências, e não somente como produtos de uma relação mecânica com seu meio. Ao mesmo tempo, o lócus de atuação médica saiu do hospital para as intervenções coletivas, nas comunidades locais e nos serviços de saúde de atenção primária. É a partir dessas mudanças que se começa a pensar novos modelos de formação médica ao redor do mundo. Surgiram diversos formatos de currículos estabelecidos nessa perspectiva, visando a formação de profissionais de medicina generalistas, centrados em metodologias ativas que colocam discentes para aprender em atividades práticas na resolução de problemas em comunidades, organizados de maneira não-disciplinar e com os conteúdos organizados em conjunto para oferecer uma visão integral do ser humano (LAMPERT, 2002).
No Brasil, na esteira da discussão internacional acerca do tema, a questão da formação de profissionais de saúde adquiriu maior importância nos debates públicos apenas nos últimos anos, em um processo que tem origens na chamada Reforma Sanitária, ocorrida entre o final da década de 1970 e início de 1980. Foi objeto de intensos debates, juntamente com as lutas pelos direitos humanos e pela redemocratização. Especialmente a partir da Constituição de 1988, ocorreram mudanças estruturais no sistema de saúde público – sobretudo a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) – e nas relações entre atores sociais na área da saúde (LEORATO & DALLACOSTA, 2016).
No entanto, apesar de toda a discussão e das mudanças que ocorreram em algumas instituições desde a década de 1980, é apenas em 2001 que o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Educação (MEC), em conjunto, introduziram uma nova visão sobre a formação de profissionais no país, com a recomendação de adoção da formação médica generalista e para a atuação na atenção básica, através das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN). Desde a criação do SUS no início dos anos 1990, a formação de recursos humanos para a área é uma das responsabilidades do Ministério da Saúde, o que inclui a formação continuada de profissionais de saúde e as graduações na área da saúde. No entanto, é o Ministério da Educação (MEC) que possui a competência sobre a política nacional de educação, exercendo a primazia na formação de profissionais de saúde. Neste sentido, apesar das fortes pressões dos movimentos sociais nos anos 1980, o modelo flexneriano de educação médica continuou predominante nos cursos superiores e nas políticas de educação da área da saúde, pelo menos até os anos 2000 (AMARAL, 2016).
No entanto, em 2001 ocorreu, através do Conselho Nacional de Educação (CNE), da Câmara de Educação Superior (CES), a homologação de Diretrizes Curriculares Nacionais em diversas áreas da saúde, que prevê formação mais voltada para os princípios da saúde coletiva, acarretando a necessidade de reformulação dos currículos de medicina no país (BRASIL, 2001; AMARAL, 2016). As DCN são fundamentais porque orientam a elaboração dos currículos dos cursos de graduação na saúde e auxiliam na elaboração de seus Projetos Político-Pedagógicos de Cursos (PPC), devendo ser implantadas em todas as Instituições de Ensino Superior (IES) no território nacional.
A análise dos modelos de formação médica foi realizada através de pesquisa bibliográfica em livros, artigos e relatórios especializados. Neste sentido, além da pesquisa em plataformas digitais, como o portal da Capes, a SciELO (Scientific Electronic Library Online) e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), entre outros, também foram consultadas as bibliotecas da UFRGS e da Universidade de Passo Fundo (UPF), além das indicações dos professores na banca de qualificação da tese.
Do ponto de vista teórico, este estudo se enquadra como uma análise de políticas públicas. Outra ferramenta utilizada para o entendimento de um subsistema de políticas públicas – que aqui usamos para o entendimento de um campo de ação estratégica – é oriunda do modelo de coalizões de defesa (advocacy coalition framework), de Paul Sabatier e Cristopher Weible (2007). A principal contribuição do modelo de coalizão de defesas é a constatação da tendência à formação de coalizões nas disputas em torno de políticas públicas, havendo ênfase nas polarizações ideológicas entre os/as agentes. Nessa teoria, as disputas envolvem tanto interesses materiais, quanto crenças e valores. No entanto, são as crenças que mantêm as coalizões unidas. Ela é particularmente apropriada para análise de políticas públicas em que o conhecimento técnico possui um papel importante e que tem um grau de conflito grande com relação à consecução de seus objetivos, como no caso das políticas que envolvem a educação médica.
Para Sabatier e Weible (2007) o sistema de crenças envolve: a) convicções normativas e pressupostos ontológicos sobre temas como a natureza humana, valores fundamentais como liberdade, igualdade e visão do estado contra mercado e a tradicional escala direita/esquerda (crenças de núcleo profundo); b) valores relacionados às políticas públicas, como a relativa autoridade dos governos e mercados, o papel do público em geral nas decisões, os eleitos, os civis, os especialistas e a seriedade e as causas dos problemas como um todo (crenças de núcleo político); c) aspectos instrumentais das políticas, de escopo relativamente limitado, como as formas de implementação e ferramentas mais acionadas (crenças secundárias). No caso, ocorre a polarização dos modelos de educação médica, calcados em diferentes crenças e que envolvem questões epistemológicas divergentes sobre o que é saúde e doença e como devem ser formados/as profissionais de medicina.
Desarrollo:
A educação médica moderna, por sua vez, emerge a partir da fusão da concepção de saúde do modelo biomédico com o modelo de ensino de Abraham Flexner (1866-1959). Flexner foi um educador americano, responsável por um relatório (conhecido como Relatório Flexner) que desencadeou uma profunda reforma nos métodos de ensino médico nos EUA, tendo influenciado faculdades de medicina de todo o mundo e atingindo até mesmo a formação em outros campos do conhecimento. O relatório produzido por ele, financiado pela Carnegie Foundation e com o apoio da American Medical Association, através do Council on Medical Education (CME), introduziu critérios de cientificidade da ciência ocidental moderna e institucionalidade até hoje aceitos como basilares na estrutura curricular considerada “tradicional” do ensino universitário nos países industrializados (ALMEIDA FILHO, 2010).
Com relação ao formato, basicamente os cursos passaram se organizar em ciclos de disciplinas básicas e clínicas. Nos primeiros dois anos do currículo são concentradas as aulas de ciências básicas, incluindo disciplinas de fisiologia, anatomia, entre outras. O laboratório era componente fundamental neste primeiro ciclo, além da sala de aula onde eram desenvolvidas as perspectivas teóricas. Nos terceiro e quarto anos, eles passam por uma série de experiências clínicas em diversas especialidades. Esse segundo ciclo é centrado no hospital. Ainda, é comum haver um ano de internato, com atividades eminentemente práticas. O objetivo desse sistema é fornecer uma formação generalista. O modelo flexneriano padronizou a formação médica nos EUA, com praticamente todas as escolas possuindo um mesmo eixo estrutural até pelo menos a década de 1960.
O modelo flexneriano foi introduzido como política pública nacional apenas tardiamente, a partir da Reforma Universitária de 1968, estabelecida através da lei nº 5.540, no período da Ditadura Militar. Ele estimulou a criação dos hospitais universitários e o ensino em especialidades, além de estabelecer um primeiro ciclo básico de estudo dos órgãos e das funções individuais do corpo e um período profissionalizante, de internato. O modelo de cátedras foi extinto e substituído pela criação de departamentos, institutos e centros.
Em contraposição a essa visão tradicional do que deve ser a formação médica, formou-se uma perspectiva crítica, que buscava mudar a forma de ensino de modo que o/a médico/a passasse a ver o ser humano como um todo, inserido dentro de um contexto social, quebrando a hierarquia de determinações existente dos processos biológicos sobre os processos sociais com relação à saúde e à doença e integrando a formação profissional aos serviços de saúde para além do hospital, que aqui chamamos de formação inovadora ou currículo inovador.
Saúde e doença passaram a ser diretamente relacionadas com a sociedade e o meio social que o indivíduo estava inserido, sua classe social, os grupos que pertencem, seu trabalho e até mesmo seus sistemas de crenças. Além disso, os corpos passaram a ser vistos como moldados pela inserção social dos indivíduos e suas experiências, e não somente como produto de uma relação mecânica com seu meio. Assim, aos poucos, a saúde passa a ser vista sob uma perspectiva holística, inserida em uma base social e pensada de maneira multicausal, influenciada por fatores sociais, econômicos, ambientais e culturais (GIDDENS, 2005).
A mudança na concepção de saúde e de doença também vai levar ao questionamento sobre a formação dos recursos humanos na área da saúde. O modelo flexneriano passa a ser criticado pela sua ênfase nos processos curativos, pela centralidade de ações hospitalares (altamente custosas) e individualizadas, pela disciplinarização dos currículos e pela superespecialização e fragmentação do conhecimento e do homem (ALMEIDA FILHO, 2010). É a partir daí que ganharam espaço diversas propostas de reforma. Entre elas, a medicina preventiva, a medicina integral e a medicina comunitária, além de uma abordagem que surgiu no Brasil, a chamada saúde coletiva (DONNANGELO & PEREIRA, 1976).
O desenvolvimento da medicina preventiva foi o grande motor das transformações na formação médica no século XX no mundo, através da incorporação de departamentos de medicina preventiva e da inserção de disciplinas de epidemiologia e estatística nos currículos das faculdades de medicina. É a partir dela que se deu a criação da noção de determinação social da saúde, contrapondo-se com a lógica biologicista do modelo biomédico. Essa mudança na concepção das origens do adoecimento foi fundamental para as transformações da formação médica durante o século XX.
Além da medicina preventiva, outras correntes se desenvolveram ao redor do mundo, na tentativa de incorporar elementos do social nas enfermidades. O conceito de medicina integral deu centralidade ao caráter fragmentário e atomístico da prática médica tecnológica e especializada, reforçando o caráter biopsicossocial das doenças e dos organismos que são objetos de intervenção, pensando eles numa perspectiva holística. Essa concepção deslocou o enfoque nos aspectos biológicos e orientou médicos e médicas a compreenderem a complexidade de pacientes, considerando-os dentro de suas redes de relações sociais, nas quais a família ocupa um lugar central. Do mesmo modo que a medicina preventiva, a medicina integral orienta-se para o processo saúde-doença como um processo, tendo um caráter que antecipa e não que está focado nas ações curativas (DONNANGELO & PEREIRA, 1976).
Sobre a definição corporativa da medicina preventiva, na década de 1940 haverá a adoção da ideia de promoção de saúde, primeiramente empregada pelo sanitarista Henry Ernest Sigerist (1891-1957). A definição estava incluída nas quatro tarefas primordiais da medicina, na qual a promoção seria a primeira, seguida da prevenção de doenças, do tratamento e da reabilitação (PUTTINI, PEREIRA JUNIOR & OLIVEIRA, 2010). Essa definição vai ampliar o escopo da medicina para além do tradicional ato de cura. Além disso, a própria medicina preventiva passa a ter um alcance maior a partir desta definição e inclusão da promoção de saúde nas suas atribuições. Na década de 1960, o conceito de promoção de saúde vai ser aplicado ao modelo da história natural da doença, de Leavell e Clark.
Já na década de 1960, surge um movimento em prol da saúde comunitária ou medicina comunitária nos EUA, articulado com os movimentos sociais e políticas sociais que combatiam a pobreza (MOTA et al, 2004). Em um período de preocupação com os grupos minoritários e excluídos da sociedade, houve uma crescente interferência estatal para garantia de direitos mínimos à população. Dentro das propostas de ação comunitária que se constituirão os programas sociais a partir de 1964, a destinação de serviços de saúde está inclusa como um de seus elementos (DONNANGELO & PEREIRA, 1976).
Ao final da década de 1960 surgiram os primeiros cursos com currículos inovadores na medicina, sob a crescente influência da medicina preventiva, mas também incorporando os pressupostos da medicina integral e da medicina comunitária. Rapidamente, as escolas de medicina absorveram esses pressupostos, especialmente as americanas. Em 1979, já havia 18 escolas médicas nos EUA com um modelo de ensino baseado em comunidade, como a Universidade do Novo México, em que o currículo estava voltado para formar profissionais para trabalhar em zonas rurais ou em prática não-hospitalares. Desde o primeiro ano, o/a estudante tem contato com experiências clínicas, tendo somente no terceiro ano um período de estágio hospitalar (MORTIMER, SMITH e TAKEUCHI, 1983).
No Brasil, o modelo flexneriano substituiu o modelo de cátedras tardiamente, somente ao final da década de 1960, no mesmo momento em que a Medicina Preventiva ganhava força no país. O movimento de contestação do modelo flexneriano só ocorreu ao final da década de 1970, junto à Reforma Sanitária. O conceito de saúde adotado e depois incorporado pelo SUS na década de 1990 refletiu saberes distintos, que formulam um entendimento interdisciplinar crítico da razão biomédica e uma construção científica brasileira conhecida como Saúde Coletiva. Esta trouxe elementos da Medicina Preventiva, da Medicina Comunitária e da Medicina Social (FAVIEIRO, 2007). Contudo, apesar de algumas iniciativas isoladas, o modelo flexneriano de formação pouco mudou até os anos 2000.
Desde a criação do SUS, a formação de recursos humanos para a área é uma das responsabilidades do Ministério da Saúde, o que inclui a formação continuada dos profissionais de saúde e as graduações na área. No entanto, o Ministério da Educação ficou responsável pela Política Nacional de Educação, exercendo a primazia na formação superior de profissionais de saúde. Apesar das mudanças no cenário internacional e das fortes pressões dos movimentos sociais nos anos 1980, pelo menos até os anos 2000 pouca coisa mudou nas políticas de educação superior da área da saúde e o modelo flexneriano, com seu caráter biomédico, continuou a ser predominante nos cursos superiores de medicina brasileiros.
A centralidade da preocupação com a mudança da educação superior tem como marco a aprovação do Plano Nacional de Educação, em 9 de janeiro de 2001, através da Lei nº. 10.172, que estabeleceu a criação de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação. Seu objetivo era flexibilizar e assegurar a diversidade de programas de estudos pelas instituições de ensino superior no Brasil (COSTA et al, 2018). As primeiras DCN foram instituídas pela Resolução nº. 4, de 7 de novembro de 2001, do Conselho Nacional de Educação (CNE) / Câmara de Educação Superior (CES).
Ainda que as DCN não instituíssem a obrigatoriedade de metodologias, como a ABP, elas direcionavam a criação de currículo para a construção de projetos pedagógicos que fosse “centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem” (BRASIL, 2001, p. 4). Ainda, em seu artigo 12°, as DCN afirmam que os cursos devem “utilizar metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos, além de estimular a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência” (BRASIL, 2001, p. 5). No entanto, a estrutura dos currículos deve ser definida pelos Colegiados dos Cursos de Medicina, dando autonomia com relação à escolha de um modelo mais tradicional ou inovador. Foi através de programas e projetos desenvolvidos posteriormente que o governo induziu políticas para a inclusão do ABP nos currículos de medicina.
O processo de criação das DCN da área da saúde demandou esforços de uma série de grupos. Entre eles a Rede Unida - fruto da união entre o projeto Integração Docente-assistencial (IDA) e o projeto UNI - e a CINAEM. Houve a convocação de representantes das IES e consultas e audiências públicas. Além disso, outros atores institucionais participaram do processo, como associações de ensino médico e de enfermagem e a diretoria executiva nacional de estudantes também pressionaram órgãos como o Conselho Nacional de Saúde e a Coordenação de Recursos Humanos do MS (MOREIRA & DIAS, 2015).
Um dos marcos das políticas que induzem a transformação da educação médica no Brasil foi o encontro do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde com as escolas médicas brasileiras, em 18 de dezembro de 2001, na Universidade Federal de São Paulo, que tinha como objetivo discutir as DCN e o lançamento do Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Graduação em Medicina (Promed) (LAMPERT, 2002). No ano seguinte, lançou-se o Programa através de uma portaria interministerial, entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação (Portaria Interministerial nº 610, de 26 de março de 2002), oferecendo recursos para as instituições interessadas em se adequar às Diretrizes. Em sua proposta, o Promed objetivava valorizar a promoção da saúde e a atenção básica (em contraposição com o modelo curativo ortodoxo, centrado no hospital). Além disso, o Promed incentivava a adoção de metodologias ativas de aprendizagem, centradas no/a estudante e na resolução de problemas (MOREIRA & DIAS, 2015).
O Promed, apesar da adesão facultativa, foi a primeira política pública de grande porte, pelo menos desde a Reforma Universitária de 1968, que demonstrou um desenho de qual modelo de formação médica o Brasil estabeleceria para suas escolas médicas, na busca de romper com o modelo flexneriano. Do ponto de vista pedagógico e curricular, as instruções do modelo ideal se aproximam da ABP. Do ponto de vista dos cenários do processo de ensino, o foco na atenção primária e nos serviços do SUS aproximou o modelo à Educação Baseada em Comunidade.
Um programa que teve influência na formação médica no Brasil é Programa Mais Médicos (PMM). Lançado em julho de 2013, ele também envolveu ações em conjunto entre o MS e o MEC. Além do provimento emergencial de médicos e da centralização de investimentos na atenção básica, o PMM provocou a abertura de novas vagas de graduação e residência médica para qualificar a formação de profissionais de saúde para trabalharem na atenção integral à saúde e para a interiorização dos médicos com a criação de escolas fora das zonas urbanas, onde se situavam a maior parte dos cursos. Com ele, houve a abertura de muitas universidades e cursos da área da saúde, através especialmente do REUNI, segundo estas novas orientações, como a Universidade do Sul da Bahia, a Faculdade de Ciências Médicas de Juiz de Fora e a UNIFESP da baixada santista (AMARAL, 2016).
Ao contrário do Promed e das DCN, que contaram com a participação ampla da sociedade civil na sua criação, o PMM enfrentou muitas resistências, em especial de entidades médicas brasileiras, que utilizaram de vias políticas, jurídicas e da mídia para tentar inviabilizá-lo. O principal ponto em disputa não era necessariamente o ensino médico, mas a questão do número de médicos no Brasil, com a vinda de médicos estrangeiros para ocupar vagas sobressalentes e a abertura de novas vagas e cursos de medicina. As organizações que mais se destacaram nesse processo foram o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Federação Nacional dos Médicos (FENAM). Estas entidades, que atuaram conjuntamente em outras políticas públicas (como a Lei do Ato Médico), criaram um Comitê Nacional de Mobilização quando da criação do Programa, com reuniões sistemáticas para tratar do tema, encontros com parlamentares e a publicação de notas e outros materiais para a categoria (GOMES & MERHY, 2017).
Já em 2013 ocorrem diversas manifestações, tanto em nível nacional quanto estadual, de médicos contra o Programa. Em um primeiro momento, o foco destas manifestações e da cobertura da mídia foi sobre a vinda de médicos estrangeiros (especialmente os cubanos, no caso) para o Brasil. Somente depois de frustradas as tentativas de barrar a vinda destes médicos é que as críticas destas organizações se voltaram para a expansão das escolas médicas do país (GOMES & MERHY, 2017).
Entre as estratégias utilizadas, houve a recusa da participação das entidades médicas na revisão das diretrizes curriculares nacionais para o curso de medicina, lançadas em 2014. A versão apresentada foi rejeitada pelas entidades, especialmente no que tange às modificações nos internatos (cujas DCN de 2014 colocavam a obrigatoriedade de que pelo menos 30% fossem em atenção primária e em serviços de urgência e emergência do SUS a partir de 2018) e a ampliação do foco do ensino para a atenção básica.
No entanto, após divergências entre o CFM e a AMB, a coalizão foi perdendo força ao longo dos anos (GOMES & MERHY, 2017). As DCN de 2014 trouxeram alguns elementos novos, mas seguiram com o intuito de incentivar a transformação dos cursos de medicina na direção dos currículos inovadores e na substituição do modelo flexneriano e da formação tradicional. De destaque, temos a instituição da duração mínima de 7.200 horas distribuídas em 6 anos de curso, além da inclusão uma subseção denominada Da Atenção às Necessidades de Saúde Coletiva.
Conclusiones:
No Brasil, a trajetória de nossa formação, bem como o impacto da criação das DCN e das políticas públicas para o ensino superior de medicina, trouxeram particularidades à formação médica. Isso resultou em currículos basicamente divididos em dois tipos.
Um deles é o modelo tradicional, que é baseado nos pressupostos biomédicos e tem como modelo o currículo flexneriano, ainda que com algumas modificações. A estrutura do currículo é decomposta em disciplinas com conteúdos e abordagens independentes, distribuídas ao longo dos semestres. Ao contrário do modelo original de Flexner, que possui apenas dois ciclos, no Brasil o currículo considerado tradicional é dividido em 3 ciclos: um básico, um clínico e um de internato. No ciclo básico, o/a estudante possui contato com disciplinas de fisiologia, anatomia, histologia, entre outras. No ciclo profissionalizante, com as especialidades médicas, como clínica médica, pediatria, ginecologia, etc. Ao final, há o internato, em que ele/a terá contato com diversos cenários de prática, também divididos em especialidades médicas (MEIRELES, FERNANDES & SILVA, 2019).
Alguns cursos oferecem disciplinas integradoras entre os ciclos básicos e profissionais, sendo comum o/a aluno/a ter contato com os serviços de saúde do SUS nos primeiros semestres da faculdade. Eles também possuem projetos de extensão, pesquisa, disciplinas e departamentos nas especialidades médicas e ligados à saúde coletiva e às medicinas integral, preventiva e/ou comunitária, como uma maneira de cumprir os requisitos legais exigidos pelas DCN. A tendência é que discentes de medicina tenham aula apenas com colegas de seus próprios cursos, podendo ser oferecidas disciplinas compartilhadas com alunos e alunas de outros cursos de maneira residual. Essas disciplinas podem ser tanto obrigatórias como eletivas.
O mesmo ocorre com a metodologia das aulas, seguindo um modelo tradicional, em grandes grupos, com aulas expositivas nas salas e práticas em laboratórios, além de visitas orientadas em hospitais e unidades de saúde. Ainda assim, a grande maioria das atividades é realizada em ambiente hospitalar. Algumas poucas disciplinas utilizam metodologias ativas, em disciplinas e projetos designadas especificamente para isso ou por iniciativa própria de docentes.
O modelo de educação médica que chamamos de “inovador” passou a ser incentivado pelas políticas públicas a partir dos anos 2000. Ele é baseado nos pressupostos da saúde coletiva. Visa à substituição da prática médica hegemônica (flexneriana, hospitalar, curativa, etc.), através da multiprofissionalidade na formação, e da inclusão de conteúdos voltados à prevenção de doenças e à promoção da saúde, na formação médica.
Além da formação técnica, este modelo implica uma forte ênfase no desenvolvimento de habilidades, tanto profissionais quanto humanísticas, incluindo a comunicação, as relações interpessoais e interprofissionais, o compromisso social, entre outros. O foco é a perspectiva integral do ser humano e não meramente os aspectos biológicos do adoecimento. Nesse sentido, o currículo deve estar diretamente ligado às atividades clínicas na atenção primária, com a aplicação de suas respectivas tecnologias, buscando a dissociação entre o estudo e a prática, com a inserção de discentes nos serviços de saúde do SUS de atenção primária desde o início da formação.
Nessa perspectiva, os currículos não são mais organizados pela tradicional divisão por ciclos e disciplinas, mas por uma estrutura modular, utilizando unidades interdisciplinares, eixos, módulos ou outras formas de organização, em que o conteúdo é passado de maneira integrada por diferentes áreas de conhecimento não-fragmentadas, com foco na resolução de problemas em pequenos grupos de trabalho. Ainda, preconiza que as experiências do/a estudante ocorram em atividades multiprofissionais. Compartilha com o modelo tradicional os internatos rotatórios ao final do curso, porém com ênfase nos serviços da atenção primária.
Em torno destas duas concepções de formação estarão organizadas duas grandes coalizões, cujas valores e crenças estarão representados dentro dos cursos de medicina do Brasil. Em favor de um modelo de formação tradicional, teremos grupos mais ligados a uma concepção liberal de medicina e cujas concepções de saúde são calcadas nos pressupostos do modelo biomédico, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Federação Nacional dos Médicos (FENAM). Do lado da formação médica inovadora, grupos ligados à reforma sanitária e aos ideais da saúde coletiva, como a Rede Unida, a CINAEM e a ABEM.
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Palabras clave:
políticas comparadas; educação médica; Diretrizes Curriculares Nacionais.