Resumen de la Ponencia:
Considerando o descompasso gerado pela não compreensão das diversidades culturais nos processos políticos e jurídicos estatais e partindo do pressuposto que as contribuições dos laudos antropológicos nos processos judiciais apontam novas possibilidades no sentido de superação dos obstáculos impostos pelo direito moderno à garantia dos direitos fundamentados nas diversidades, o presente trabalho propõe-se refletir de que forma os laudos antropológicos contribuem para a legitimação dos direitos desses sujeitos a partir da inserção de subsídios para que decisões jurídicas sobre as vidas desses grupos humanos respeitem ao máximo suas dinâmicas socioculturais.
Introducción:
Considerando o descompasso entre os direitos garantidos formalmente aos povos e comunidades tradicionais e a materialização dos mesmos por meio de ações estatais que demandem a garantia das identidades e territorialidades, os conflitos pela terra se revelam enquanto estratégia constante de ataque à reprodução social e cultural desses sujeitos por parte de setores da sociedade que atuam na defesa dos interesses econômicos baseados na apropriação e exploração das terras e da natureza e que, com o apoio do Estado, visam a imposição de um modelo conservador de desenvolvimento, sem espaço para as diversidades, assentado nos limites da noção de propriedade privada atribuída segundo os elementos coloniais e mercantis da modernidade.
Tamanha desproporção entre os direitos formalmente assegurados e sua aplicação no plano prático se dá em razão de dificuldades de diversas ordens, das quais se destaca a incapacidade do Estado, e do Direito enquanto seu instrumento normatizador, em compreender as identidades específicas dos povos e comunidades tradicionais e, consequentemente, em admitir e reconhecer as relações sociojurídicas provenientes do modelo identitário desses grupos, já que, tanto Estado quanto Direito são fundados na lógica da modernidade para garantir dois pilares: a propriedade privada, individual, exploradora da terra e da natureza com finalidade mercantil e os direitos do sujeito capaz sob os primados da Revolução Francesa.
Essa incompreensão estatal resulta, de um lado, numa dinâmica de inconstância na implementação e desenvolvimento de políticas públicas eficazes para assegurar os direitos culturais e os espaços territoriais desses grupos, como, por exemplo, é caso das demarcações das terras indígenas que enfrentam um processo de morosidade decorrente da análise de conveniência de sua conclusão por parte do Poder Executivo, ficando os mesmos engavetados aguardando uma última assinatura por anos e anos ou, no caso das titulações territoriais quilombolas, o fato de terem passado mais de dez anos sem regulamentação, tendo sido em seguida regulamentadas por um Decreto que não possuía instrumentos adequados para realizar as titulações, depois por um outro Decreto que estabelecia de forma adequada os procedimentos reconhecendo as identidades e territorialidades quilombolas mas que, todavia, logo após sua entrada em vigor foi constitucionalmente questionado permanecendo mais de dez anos sem uma decisão definitiva e portanto com seus efeitos submetidos a uma situação de insegurança jurídica.
Do outro lado, a referida leitura do Estado impacta no universo dos processos judiciais, nos quais o Poder Judiciário é provocado a solucionar controvérsias envolvendo de um lado esses sujeitos coletivos e do outro grandes corporações, latifundiários e grileiros que tratam a terra enquanto propriedade individual com função exclusivamente mercantil e a natureza enquanto recurso explorável para fins lucrativos o que, a partir sua perspectiva de incompreensão das identidades coletivas e das inadmissão da relações sociais e jurídicas decorrentes delas, resultam em decisões judiciais que não correspondem aos direitos culturais e identitários assegurados no texto constitucional, especialmente no tocante aos modos de apropriação da terra e da natureza no contexto das diversidades socioculturais que tais sujeitos apresentam.
O judiciário, nesse sentido, é instância essencial para compreender a real aplicação dos direitos culturais e territoriais tradicionais uma vez que são nos processos judiciais que se apresentam os argumentos jurídicos do conflito entre o modelo de apropriação da terra e da natureza segundo as identidades e territorialidades tradicionais e o modelo conservador de desenvolvimento mercantil consolidado, que não proporciona espaço para os povos e comunidades tradicionais manifestarem os seus modos próprios de fazer, viver e criar. O Judiciário, portanto, acaba por funcionar enquanto instância definidora dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, atuando entre as concepções de propriedade baseada nos direitos culturais, expressa por esses sujeitos e àquela fundada na concepção civil patrimonialista.
Pois bem. Levando em consideração os desafios elencados para a afirmação dos direitos culturais dos povos e comunidades tradicionais, em especial aqueles relacionados à proteção das territorialidades e, partindo do pressuposto que as contribuições da antropologia, sobretudo desde as categorias identidade, etnicidade, cultura e territorialidade, apontam perspectivas no sentido de superação dos obstáculos impostos à garantia dos direitos desses sujeitos quando são inseridas nas razões de decidir dos juízes por meio de provas periciais na forma de laudos antropológicos, o presente trabalho busca compreender de que forma os laudos antropológicos orientam a tomada de decisão nos processos judiciais relacionados aos direitos dos povos e comunidades tradicionais.
Desarrollo:
Buscando decisões e processos que tratassem diretamente da questão dos laudos antropológicos realizamos novas buscas, aberta e fechada, utilizando como parâmetro de pesquisa as expressões “laudo antropológico” e “perícia antropológica”, que retornaram um universo de ações mais reduzido e já direcionado ao problema da pesquisa.
Considerando os resultados que obtivemos na pesquisa fechada, alcançamos o universo total das ações a partir do qual se iniciou a análise: 228 ações/decisões referentes à categoria de busca “laudo antropológico” e 140 ações/decisões referentes à categoria de busca “perícia antropológica”, totalizando 368 processos/decisões diferentes analisados.
Após análise temática, o total de ações/decisões que analisamos, considerando apenas aquelas que tratassem do objeto da pesquisa, os conflitos territoriais judicializados envolvendo povos e comunidades tradicionais e nos quais se fizesse referência aos laudos antropológicos, consiste em 253 ações/decisões.
Em relação ao povo ou comunidade tradicional envolvidos nos conflitos que fazem referência cada ação/decisão analisada, das 253 totais, 220 tem como sujeitos povos indígenas; 17 tem como sujeitos comunidades quilombolas e em 16 casos não foi possível identificar no análise da decisão qual povo ou comunidade se tratava.
Para além dessas classificações mais técnicas, estabelecemos como estratégia de classificação das ações decisões a partir de cinco tópicos[1], dos quais se destacam dois: quanto à existencia ou menção da existencia de laudo antropológico na decisão/processo judicial e quanto à prevalência do direito de propriedade privada ou da tutela das territorialidades dos povos e tradicionais como resultados das decisões
Quanto à existência ou menção da existência de laudo antropológico na decisão/processo judicial, entre as 253 decisões analisadas identificamos que 164 decisões indicaram possuir laudo antropológico no processo ou entre o conjunto probatório mobilizado para a confecção da decisão; 66 decisões indicaram não possuir laudo antropológico no processo e 23 decisões apontaram não ter laudo antropológico reconhecendo a necessidade de produção para julgamento mais adequado da demanda apresentada.
Nesse sentido, as decisões/ações analisadas em grande maioria reconhece a essencialidade dos laudos na garantia dos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. É o caso das decisões referentes ao Povo Indígena Pataxó (TI Coroa Vermelha) e aos Povos Pataxó e Tupinambá do Municipio de Pau Brasil.
Destacam-se dois elementos nas duas decisões supra que exemplificam o universo daquelas decisões/ações que possuem laudo antropológico no processo ou que reconhecem a necessidade deles para o adequado processo decisório: A primeira decisão, referente ao Povo Pataxó[2] estabelece o laudo antropológico como evidência suficiente para afastar as pretensões possessórias de terceiros e, portanto, nega o recurso que visava a Reintegração de Posse em desfavor dos indígenas. Por sua vez, a decisão referente aos Povos Pataxó e Tupinambá[3], ao anular a sentença reitengratória em desfavor dos indígenas, consigna a necessidade de produção de laudo uma vez que as territorialidades indígenas não podem ser definidas com base nos conceitos tradicionais de posse e propriedade do Direito Civil brasileiro.
No mesmo sentido, o trecho da decisão nos Embargos de Declaração citado na decisão em sede de Agravo em Recurso Especial no STJ, referente ao Povo Indígena Tremembé[4], aponta a essencialidade do laudo antropológico enquanto instrumento de garantia do direito fundamental de ampla defesa dos indígenas. A decisão estabelece a nulidade da sentença em função da não realização de laudo antropológico que ensejou o cerceamento do direito de defesa dos indígenas em questão.
No entanto, em sentido contrário, em caso envolvendo a Comunidade Indígena Xucuru/Kariri no Estado de Alagoas[5], o STJ reconhece as razões do tribunal de origem abaixo citado, para descartar cerceamento de defesa dos indígenas em função da não elaboração de laudo antropológico em Ação de Interdito Proibitório.
Destaca-se na decisão do STJ supracitada o reconhecimento da existência de estudo antropológico realizado pela FUNAI concluindo que a área em disputa se tratava de terra indígena e, mesmo assim, a prevalência da proteção do direito de propriedade individual em desfavor dos indígenas com fundamento no título cartorial que a autora da ação possuía até que o processo demarcatório fosse concluído. Apesar dos elementos fundantes dos direitos territoriais dos indígenas serem amplamente reconhecidos na decisão, conflitos dessa natureza acabam se perpetuando por anos expondo os povos e comunidades tradicionais às consequências de viver em zonas de conflito direto com aqueles que vislumbram expropriar suas terras.
Ademais, é interessante destacar a situação retrata nas duas decisões seguintes, que representam uma tendência que percebemos na análise dos processos: enquanto as decisões proferidas por juízos de instâncias inferiores demonstram uma tendência à negação da essencialidade dos laudos antropológicos, os julgados nas instâncias superiores resguardam o a necessidade dos laudos para a compreensão das dinâmicas territoriais dos povos e comunidades tradicionais.
Por sua vez, quanto à prevalência do direito de propriedade privada ou da tutela das territorialidades dos povos e tradicionais como resultados das decisões, entre as 253 decisões analisadas identificamos que em 116 decisões prevaleceram a tutela das territorialidades tradicionais enquanto em 81 decisões prevaleceram os direitos de propriedade privada das partes contrárias aos povos e comunidades tradicionais. Ainda, 56 decisões não atribuíam prevalência à propriedade privada e individual nem às territorialidades tradicionais e coletivas, mas se trataram de decisões interlocutórias com diversos temas, entre eles a necessidade de produção de laudo antropológico, o conflito de competência para julgar tal ação ou a necessidade de juntada de outras provas para que se fosse possível decidir.
Apesar de um número maior de decisões considerarem a tutela das territorialidade tradicionais frente aos direitos de propriedade individual, é necessário destacar que o universo das ações pesquisadas, em decorrência da metodologia de busca aplicada, só considerou as decisões judiciais referentes aos conflitos territoriais envolvendo povos e comunidades tradicionais que fizeram menção aos termos laudo antropológico ou perícia antropológica, categorias comumente invisibilizadas das decisões judiciais que visam assegurar prefencialmente a propriedade fundada no direito civil em detrimento das territorialidades dos povos e comunidades tradicionais.
De modo a exemplificar o universo das distintas fundamentações nas decisões em processos judiciais envolvendo povos e comunidades tradicionais em conflitos pela terra que ora asseguram os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais ora os negam, destacamos quatro decisões, duas onde percebemos a prevalência da territorialidade coletiva de povos indígenas e quilombolas e outras duas onde os direitos territoriais desses grupos são preteridos em função de outros sujeitos que reivindicam a propriedade sobre terras tradicionalmente ocupadas.
Assegurando as territorialidades coletivas, as decisões referentes ao Povo Indígena Tupinambá de Belmonte[6] e à Terra Indígena Tupinambá de Olivença[7] se fundamentam no caráter originário dos direitos territoriais e às garantias constitucionais decorrentes do art. 231 da CF, merecendo destaque a motivação estrutural para garantia dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais que pondera que as terras indígenas e territórios quilombolas não podem ser compreendidas a partir das noções de posse e propriedade do direito civil moderno.
Por sua vez, as decisões que resultam na proteção da propriedade individual em detrimento das territorialidades tradicionais se assentam na necessidade de garantia dos títulos cartoriais mesmo nos casos de território tradicionalmente ocupado e ainda não demarcado ou sob o argumento de restrição da proteção das terras tradicionais em função da tese do marco temporal, com se aprofundará adiante. É o caso das decisões referentes ao Interdito proibitório em desfavor da Aldeia Pataxó Boca da Mata[8] e da Reintegração de posse contra o Povo Guarani[9].
A mobilização e sistematização dos arquivos contendo as ações e decisões judiciais enquanto campo de pesquisa, que consideramos à luz dos desafios à prática antropológica, avaliando, ainda, as implicações que o tratamento jurídico dos povos e comunidades tradicionais, o contexto da luta pela terra envolvendo esses sujeitos e as categorias em disputa, resultou na categorização das decisões e ações a partir de seis grandes áreas temáticas[10], que representam distintos e relevantes campos desde os quais é possível aprofundar a dinâmica e usos e aplicações dos laudos antropológicos nas decisões judiciais.
Nesse sentido, apresentamos e dialogamos a seguir com julgados que representam o universo das questões enfrentadas a partir das três áreas principais dentre as seis aprofundadas na tese, quais sejam: a utilização da tese do marco temporal para restringir a garantia das territorialidade tradicionais; a instabilidade nas áreas de conflitos agrários, com implicações à segurança e integridade dos povos e comunidades tradicionais; e as reflexões acerca do trabalho do antropólogo enquanto sujeito no processo de elaboração dos laudos e perícias.
A respeito da tese do marco temporal, que se encontra em discussão atualmente pelo STF em sede do Recurso Extraordinário n. 1017365, que trata sobre a concessão de parte da Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ (ocupada tradicionalmente pelos povos indígenas Guarani, Guarani Mbya, Guarani Ñandeva, Kaingang e Xokleng), destacamos a mobilização da tese do marco temporal em três casos do universo dos processos/decisões analisados, referente a conflitos envolvendo o povo Kaigang (TI Sêgu e a TI Boa Vista (Sul)) e o povo Guarani-Kaiowá (TI Dourados-Amambaipeguá I).
O caso referente à disputa da Terra Indígena Sêgu (povo Kaigang), trata de Ação de Reintegração de Posse[11] contra os indígenas, fundamentada na tese do marco temporal, apesar da defesa do povo indígena destacar tanto a incoerência da referida tese com as garantias constitucionais, da Convenção 169 da OIT e do Estatuto do Índio, quanto a necessidade de compreensão das territorialidades tradicionais para além do sentido de posse e propriedade dado pelo direito civil moderno.
Merece destaque o fato da decisão em desfavor dos indígenas, utilizando o critério do marco temporal, assinalar que não existem elementos suficientes para caracterizar a posse imemorial indígena.
Em igual sentido, a decisão referente a Ação de Demarcação[12] referente à TI Indígena Boa Vista (Sul), do mesmo povo Kaingang, se embasa na tese do marco temporal, aqui, particularmente, desconsiderando o processo histórico de conflito e expropriação das terras os quais passaram e passam os povos e comunidades tradicionais, não cabendo falar em esbulho do território tradicionalmente ocupado no caso de ocupação não efetiva quando da promulgação da constituição.
No caso do Mandado de Segurança preventivo em desfavor do iminente ato demarcatório da TI Dourados-Amambaipeguá I, dos mesmos povos Guarani e Guarani-Kaiowá, para além da fundamentação de descumprimento do marco temporal, tese amplamente utilizada em desfavor dos indígenas e retratada no julgado: “Portanto, é de clareza solar que a pretensa demarcação vai contra uma das condicionantes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Petição n. 3.388/RR, qual seja, o marco referencial da promulgação da Constituição Federal em 05-10-1988, ou seja, que deveria haver nessa data aldeamento ativo para que pudesse ocorrer a demarcação”[13], merece destaque que o próprio ato decisório reconhece, baseado nas informações do laudo antropológico, o processo de expropriação pelo qual passaram os povos indígenas na região no início da década de 1980.
A decisão, todavia, desconsidera esse contexto de conflitos pelos quais esses povos passaram em defesa de seus territórios e identidades que resultou na retirada forçada de suas terras, salvaguardando apenas o direito de propriedade dos não-indígenas com base na formalidade da não presença no espaço em disputa da data mágica da promulgação da Constituição: “No presente caso, o laudo antropológico apresentado pelo GTI, mais especificamente em suas fls. 347, afirma que as comunidades incluídas neste relatório estão fora das terras reivindicadas há mais de duas décadas, pois o processo de expropriação ocorreu até o início da década de 1980, o qual peço vênia para transcrever: 'Cabe esclarecer que as comunidades incluídas no presente relatório estão fora das terras reivindicadas há mais de duas décadas, pois o processo de expropriação ocorreu até o início da década de 1980.' Como se vê, no próprio laudo antropológico é reconhecido que os últimos indígenas saíram das terras que se pretende demarcar com o presente processo, no início dos anos 80”[14].
Outro tema central que destacamos a partir da análise dos documentos (processos e decisões) é a situação de instabilidade nas áreas de conflitos agrários, com implicações à segurança e integridade dos povos e comunidades tradicionais, como retratado envolvendo o povo indígena Pataxós em conflito com não indígenas na Ação de Reintegração de Posse referente à área reconhecida pelos índios como parte da TI Comexatibá.
No caso concreto, de um lado a decisão reconhece o justo título dos proprietários que reivindicam a Reintegração de posse. Outrossim, resta demonstrado e reconhecido pelo juízo, também, por meio de RCID realizado no âmbito do processo administrativo de demarcação, a ocupação tradicional do território em questão, não tendo sido, no entanto, concluído o processo administrativo demarcatório e homologada a TI em questão. A mobilização das categorias do laudo antropológico e, principalmente, a percepção do contexto conflituoso ocasiona, no caso concreto, a não garantia da reintegração de posse contra os indígenas, vislumbrando a insegurança e a desordem que resultaria da implementação da ordem reintegratória[15].
Outros casos semelhantes utilizados na decisão enquanto precedentes também relatam a existência dos conflitos e a tentativa, por meio das decisões judiciais, de consideração de estratégias para equacionar/não acirrar a conflituosidade entre indígenas e não-indígenas: “[...] O cumprimento da decisão, expulsando os indígenas de área que, segundo a Funai, tem estudo conclusivo no sentido de que se trata de terra tradicionalmente ocupada pelos índios, pode ter desfecho grave, ante a possibilidade de confronto violento entre os policiais e os indígenas, representando grave risco à segurança da comunidade indígena Tupinambá e para os agentes policiais”[16].
Por sua vez, os desafios e questionamentos acerca do trabalho do antropólogo no processo de elaboração dos laudos e perícias no âmbito do judiciário realizadas ao longo capítulo 3 se materializam, ganhando contornos práticos em três decisões, relacionadas ao povo Ikpeng da TI Roro Walu, ao Povo Kaingang do Morro do Osso e Comunidade Quilombola Santa Maria dos Pinheiros.
No caso envolvendo o povo indígena Ikpeng, o Sindicato representante dos interesses dos não-indígenas requer ao judiciário a suspensão dos trabalhos relacionados à produção de laudo antropológico no processo administrativo que tem como objeto a demarcação da terra indígena, alegando falta de isenção dos antropólogos designados, argumentando que os mesmos atuariam em defesa dos povos indígenas, requerendo “[...] a) informação sobre os nomes dos antropólogos que participam do processo administrativo, tendo em vista convênio firmado com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) com o Ministério Público Federal (MPF) para atuar em defesa dos interesses dos indígenas, tendo em vista a manifesta falta de isenção destes profissionais para atuar no processo administrativo”[17]. Os não-indígenas solicitavam, ainda, o direito de acompanhar toda e qualquer diligência realizada pelos antropológos com o intuito de supervisionar o trabalho e “não permitir” que fossem adotadas estratégias ou posicionamentos que supostamente favoreceriam o povo indígena.
Outra dimensão desses desafios quanto ao trabalho do antropólogo é perceptível na decisão que julgava a necessidade de realização de perícia antropológica para instruir a disputa territorial envolvendo o povo indígena Kaingang do Morro do Osso. Aqui o juiz tece uma série de ponderações sobre o papel das provas periciais, defendendo a dispensabilidade da elaboração do laudo antropológico, revelando um posicionamento de que o conhecimento e instrumentos do campo jurídico estariam num status superior daqueles que possuem natureza antropológica[18].
Fechando os desafios relacionados a como o do trabalho do antropólogo é percebido nas ações judiciais, temos o caso da Comunidade Quilombola Santa Maria dos Pinheiros[19], que trata da nomeação de profissional de campo do conhecimento diverso da antropologia, distante até da área das ciências sociais como um todo, para a elaboração de uma perícia de natureza antropológica. O julgado, que relata a nomeação de engenheiro agrônomo para elaboração de laudo antropológico assevera que cabe a juiz a valoração quanto à qualificação, num flagrante contrassenso com as estratégias estabelecidas desde a redemocratização a partir da parceria entre o MPF e a ABA, registradas, inclusive na Carta de Ponta das Canas e no Protocolo de Brasília sobre Laudos Antropológicos
[1] Na tese se aprofunda o estudo dos processos analisados quanto: a) à existência ou menção da existência de laudo antropológico na decisão/processo judicial; b) quanto à abordagem da categoria identidade no texto/subtexto da decisão analisada; c) quanto à abordagem da categoria territorialidade no texto/subtexto da decisão analisada; d) quanto à abordagem da categoria propriedade no texto/subtexto da decisão analisada e; e) quanto à prevalência do direito de propriedade privada ou da tutela das territorialidades dos povos e tradicionais como resultados das decisões.
[2] TRF1, Sexta Turma, Apelação Cível n. 0004614-83.2000.4.01.0000, Desembargadora Federal Maria Isabel Gallotti Rodrigues, Data da publicação 13/10/2009.
[3] TRF1, 4ª Turma suplementar, Apelação Cível n. 0001592-71.2001.4.01.3301, Juiz Federal Rodrigo Navarro De Oliveira, Data da publicação 18/07/2013.
[4]STJ, Agravo em Recurso Especial n. 453.294 – CE, Ministro Mauro Campbell Marques, Data de publicação 17/02/2014
[5]STJ, Recurso Especial n. 1.469.125 – AL, Ministra Assusete Magalhães, Data da publicação 24/04/2018.
[6]TRF1, Agravo De Instrumento n. 0064822-71.2016.4.01.0000, Relatora Desembargadora Federal Daniele Maranhão Costa, Data de Publicação 13/04/2018
[7] TRF1, Quinta Turma, Apelação Cível n. 0000932-04.2006.4.01.3301, Relatora Desembargadora Federal Selene Maria De Almeida, Data da publicação 27/02/2014
[8] TRF 1, Sexta Turma, Apelação Cível n. 0003540-45.2006.4.01.3310, Relator Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, Data de publicação 01/08/2011
[9] STJ, Recurso Especial n. 1.546.139 – PR, Relator Ministro Og Fernandes, Data da publicação 06/08/2019
[10] As seis grandes áreas temáticas se referem: a) ao uso textual de conteúdo dos laudos no texto das decisões judiciais; b) à utilização da tese do marco temporal para restringir a garantia das territorialidade tradicionais; c) à instabilidade nas áreas de conflitos agrários, com implicações à segurança e integridade dos povos e comunidades tradicionais; d) à exploração comercial em territórios tradicionalmente ocupados; e) às reflexões acerca do trabalho do antropólogo enquanto sujeito no processo de elaboração dos laudos e perícias; f) aos impactos que a morosidade dos órgãos públicos no processo de elaboração dos laudos antropológicos ocasiona na manutenção dos conflitos pela terra
[11] STJ, Recurso Especial n. 1559142, Relator Ministro Herman Benjamin, Data de Publicação 02/09/2016
[12]STJ, Recurso Especial n. 1.565.338/RS, Ministro Humberto Martins, Data da Publicação 21/03/2016
[13] STJ, AgInt no Mandado de Segurança N 22.918 – DF, Relatora Ministra Assusete Magalhães, Data de publicação 17/04/2020.
[14] Idem, ibidem
[15] TRF1, Pedido de Concessão de Efeito Suspensivo à Apelação n. 1000080-78.2020.4.01.0000, Relator Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, Data de publicação 30/01/2020
[16] Idem, ibidem
[17] TRF 1, Agravo de Instrumento n. 0013691-91.2015.4.01.0000, Relator Desembargador Federal Souza Prudente, Data de publicação 06/06/2018
[19] (STF, Recurso Extraordinário com Agravo n. 926168/RS, Relator Ministro Dias Toffoli, Data da Publicação 09/11/2016)
[20]TRF 1, Quarta Turma, Embargos de Declaração em Agravo de Instrumento n. 0037298-51.2006.4.01.0000, Relator Desembargador Federal Ítalo Fioravanti Sabo Mendes, Data da publicação 03/08/2007.
Conclusiones:
A atuação do judiciário para a resolução dos conflitos pela terra envolvendo povos e comunidades tradicionais – sobretudo a partir do uso e da mobilização dos laudos e perícias antropológicos – evidenciou-se enquanto tema de grande complexidade considerando que as identidades e territorialidades desses sujeitos coletivos não são abarcadas pela racionalidade predominantes no tratamento da terra, desafiando o Estado e o campo jurídico, sobretudo a partir da Constituição Federal de 1988, a compreender categorias como terras tradicionalmente ocupadas, direitos culturais, direitos territoriais originários e a colocá-las em prática, por meio de instrumentos que não são capazes de alcançar todas as dimensões desses direitos porque forjados numa outra lógica, a de garantir propriedade individual e para poucos sujeitos considerados “capazes”.
A assimilação dos direitos emergidos no processo de redemocratização, ao passo que garante avanço na pauta dos povos e comunidades tradicionais pois altera o paradigma de tratamento jurídico desses sujeitos, mesmo que numa perspectiva formal, esbarra na já mencionada falta de instrumentos jurídicos adequados para concretizá-los e, especialmente, tem como obstáculo os setores da sociedade que possuem outro projeto para o espaço agrário brasileiro que não contempla apropriação de terras para manifestação de identidade, culturas, tradições ou qualquer outra manifestação que não seja o lucro e que, até então, nunca se deparou com limitações do Estado e do direito para implementá-lo.
Essa nova dinâmica inaugurada em 1988 intensifica os conflitos pela terra que representam, em última análise, o conflito em torno de duas perspectivas distintas de apropriação da terra e de sociabilidade no espaço agrário: de um lado estão aqueles que historicamente tiveram seus interesses contemplados pelo direito representando o projeto de desenvolvimento nacional contextualizado no modo de produção e acumulação capitalista sob os quais a apropriação da terra e da mão de obra necessária para o trabalho nela são consideradas exclusivamente para fins de exploração e obtenção de ganho financeiro, como é o caso da dinâmica de atuação dos latifúndios destinados à pecuário e agricultura no contexto do agronegócio, das mineradoras e dos empreendimentos hidrelétricos. Do outro lado estão os “novos” sujeitos que identificam a terra como espaço potencial de construção de sociabilidades que superam a exploração de mão de obra: identidades são estabelecidas e manifestam na relação simbiótica que as coletividades mantém com o território, no sentido de territorialidades.
Essa relação pressupõe que a terra é mais que um espaço de chão, mas o local onde se materializam as relações humanas e com a natureza: corresponde a um território, o chão mais gentes que constrói identidades coletivas e pertencimento.
A simbologia que a noção de a noção de território carrega para os povos e comunidades tradicionais desafia as formas de propriedade estabelecidas pelo direito moderno e fundadas na perspectiva civil-individual-patrimonialista, impondo ao Estado a necessidade de, no mínimo, relativizar a estrutura jurídica desse instituto de modo a garantir os direitos decorrentes do art. 231 da CF e dos arts. 67 e 68 do ADCT.
Os desafios de prática antropológica na produção de laudos e perícias relatados pelos antropólogos desde a Constituição de 1988, sobretudo aqueles sistematizados nos documentos de diretrizes como a Carta de Ponta das Canas (2000) e o Protocolo de Brasília (2015) foram percebidos no universo das ações e decisões analisadas, sobretudo aqueles relacionados à importância do laudo enquanto instrumento apresentação às decisões judiciais das categorias necessárias para compreensão das sociabilidades dos povos e comunidades tradicionais a partir de suas identidades e territorialidades próprias.
Do universo dos conflitos pela terra analisados a partir das ações judiciais é possível considerar: a) quando o laudo antropológico é utilizado enquanto prova no processo judicial os direitos dos povos e comunidades tradicionais são, na maioria das vezes garantidos, substituindo alguns casos que, em decorrência de questões de ordem formal e processual eles são reconhecidos e ainda assim não são assegurados; b) os direitos territoriais são mais facilmente compreendidos nas decisões judiciais enquanto dimensão do direito de propriedade, mesmo que coletiva, não havendo uma leitura ou compreensão diretamente ligando territorialidades às categorias identidade, etnicidade, direitos culturais; c) uma estratégia dos grupos não-indígenas perceptível nas decisões (mesmo que na maioria das vezes não tenha sido reconhecida pelos julgadores) é a desacreditação do trabalho do antropólogo enquanto forma de atacar o produto do trabalho e, assim, ter garantidas as suas pretensões em prejuízo aos povos indígenas; d) a tese do marco temporal é o maior empecilho para a garantia das territorialidades tradicionais percebido no universo das ações e decisões analisadas, sendo o argumento de quase a totalidade das decisões contra os interesses territoriais indígenas e quilombolas.
Ademais, a partir das reflexões realizadas acerca da interface entre o direito e a antropologia e, principalmente, da consideração da antropologia jurídica enquanto um campo essencial de formação para os operadores do direito, é importante destacar a importância da renovação das diretrizes da educação jurídica para que cada vez mais, seja contemplada na formação dos estudantes de direito os olhares interdisciplinares desde as ciências humanas e sociais para a compreensão do fenômeno jurídico numa perspectiva mais adequada, resultando numa gênese de operadores do direito mais preparados para compreender as especificidades dos povos e comunidades tradicionais a partir de suas identidades e territorialidades, promovendo, organicamente, que os instrumentais desde esses campos do conhecimento como é o caso da antropologia com os laudos antropológicos sejam incorporados enquanto institutos e instrumentos do direito tão valiosos e respeitados como aqueles mais clássicos.
Bibliografía:
LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira. Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira. Revista Tempo Social. São Paulo: USP, 1997.
MIGNOLO, Walter. La Idea de América Latina: La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa editorial, 2005.
MINAYO; Maria Cecilia de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2012.
OLIVEIRA, Oswaldo Martins de. O trabalho e papel do antropólogo nos processos de identificação étnica e territorial. In: LEITE, Ilka Boaventura (org.). Laudos Periciais Antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA, 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/racionalidad. Perú Indígena, vol. 13, n. 29, Lima, 1992, p. 11-20.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico SOUZA FILHO de. Antropologia ou Direito? Crítica à autossuficiência do direito. Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. Ano 7-9, n. 13-14, 2010b.
TÁRREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco; MAIA, Cláudio Lopes; FERREIRA, Adegmar José. Observatório da atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011). Relatório Final de Pesquisa. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2012.
Palabras clave:
Conflitos pela terra; Laudos antropológicos; Poder Judiciário; Indígenas e Quilombolas.