Resumen de la Ponencia:
Neste trabalho, procuro refletir sobre jogos eletrônicos e suas transmissões ao vivo - chamadas de streaming - como expressão maior do momento contemporâneo do capitalismo digital. De maneira geral, analisamos que estas transmissões são realizadas por pessoas - em menor e/ou maior grau - prejudicadas pela crise econômica, que encontram nesta atividade uma “saída” ao desemprego. Julgo que esta atividade é permeada por um forte sentido de empreendedorismo pessoal, pré-requisito básico do neoliberalismo para justificar o sucesso financeiro. Com a ajuda de teóricos/as da Sociologia do Trabalho e com pesquisadores/as das novas plataformas digitais que vêem surgindo, especialmente a Twitch.tv, procuro explorar a plataforma da Twitch.tv como caso, sendo esta plataforma em que streamers transmitem seus jogos com a possibilidade de monetização. Visando traçar traçar as condições sociais, a precariedade da profissão e os fatores que ambicionam estas pessoas a escolherem esta carreira, entendo que a prática do streaming reflete mudanças já em curso na sociedade, não só oferecendo uma concorrida oportunidade de emprego, mas também de identidade social. Presumo, então, que o bordão de “fazer aquilo que se ama” - constantemente ressaltado pelos jogadores/as de vídeo game e streamers da Twitch.tv - propaga aspirações neo-liberais através de condutas morais de auto empreendedorismo em um cenário altamente competitivo e com poucas chances de sucesso, mas com a presença de um grande senso de pertencimento à comunidade global dos jogos eletrônicos.
Introducción:
Nenhuma história pode ser tão excitante quanto a de um herói esmagando um crânio de algum monstro alienígena, de um determinado demônio que foi libertado após algum ritual mágico de invocação ou de qualquer outro ser animalesco visto como maléfico ou até mesmoperigoso. Estas histórias, comumente presentes em livros, contos, mitos e principalmente em vídeo games não têm somente ação, elas geralmente são permeadas pela figura de algum herói que mata, liberta e/ou elimina o suposto mal da face da galáxia, do planeta terra, de algum país, de uma cidade, vizinhança ou mesmo de nossa casa.
Todos nós já ouvimos uma história como essa, sobre espadas, lanças, armas que matam, armas que libertam, armas que aprisionam. A nossa cultura por muito tempo foi explicada através destas imagens fantásticas, mitos com humanos, deuses, semideuses, demônios,animais. Entretanto, esta não é a história que pretendemos contar, pois de uma forma ou de outra, todos nós já a conhecemos. Diante disso, preferimos nos debruçar em outro tipo de história, no tema e nas palavras que ainda são pouco conhecidas, a história de quem ainda vivedestas narrativas fantásticas. Ao invés de focarmos no herói destes mitos, vamos buscar conhecer melhor os seus porta-vozes, isto é, os seus jogadores/as, que serão questão central desta narrativa não tão fantástica assim, já que visamos buscar observar como o fenômeno dotrabalho acontece dentro desse universo do jogo-trabalho - ou trabalho-jogo - que permeado por narrativas fantásticas, enxergamos, talvez, uma visão mais pessimista do cotidiano de uma vida comum.
Se os jogos precisam de uma estratégia para podermos vencer, acreditamos que a vida também. Conflitos, competição, estresse, frustração e desigualdade fazem parte do cotidiano capitalista, mas não podemos resumir estes fatos como explicação para o fenômeno do trabalho,já que crise é a característica mais constante do capitalismo e respondermos questões baseadas nas incertezas desse sistema nos parece repetitivo. Nosso objetivo aqui não é traçar uma resposta definitiva, mas sim buscar entender um fluxo contínuo de relações e pertencimentos. É por isso que depois de começarmos a pensar tanto nesta temática envolvendo jogos, contos,fábulas e trabalho laboral, no final de tudo, estamos falando sobre pessoas e suas relações. Pensamos que é sobre isso que a sociologia busca tratar, as fraquezas e franquezas, as redes sociais que se articulam neste circuito de quem joga diariamente, talvez com mais ilusões doque triunfos. Enxergando esta área como uma rede de culturas, sociabilidades e ofício laboral, procuramos escrever sobre esta temática de uma forma menos mitológica e mais realista, porém, sem perder a sensibilidade de enxergar a subjetividade de nosso objeto.
O nosso argumento aqui é que as transmissões ao vivo de jogos eletrônicos, principalmente as transmissões realizadas por sujeitos que já são estabelecidos na prática e por aqueles que ainda aspiram a se estabelecer, podem ser vistas como expressão de uma moralneoliberal do capitalismo digital, que por sua vez precisa ser entendida como parte de uma transformação de longo prazo no mercado de trabalho e no capitalismo contemporâneo. Estas mudanças têm se intensificado nos últimos anos, com uma imposição generalizada de uma ética de trabalho bem definida, junto de uma deflação dos salários, relacionado a uma menor participação do Estado como forma de restaurar a competitividade no mercado.
Neste cenário, é difícil explicar o motivo central de tantos jovens procurarem no streaming um meio de vida. Porém, acreditamos que a diminuição de oportunidades e empregos e a contração da segurança futura através de trabalhos tradicionais retroalimenta as mudançasque estamos passando, sendo esta atividade um retrato das formas de empreendedorismo e auto mercantilização nos trabalhos de plataforma. Nosso argumento aqui, então, é que este tipo de trabalho em particular nutre e promove pessoas que demonstrem capacidade de ganhar atenção através da transmissão de jogos e de suas longas jornadas de trabalho. Em tempos incertos, a competição por uma carreira é dada por um número cada vez maior de pessoas. Esta realidade se intensifica em um mundo do trabalho que tem como regra principal o destaque pessoal em meio a uma multidão de pessoas igualmente orientadas que buscam o mesmo objetivo, tornandoesta pretensão um grande desafio. É neste contexto que abordamos a transmissão de jogos eletrônicos e a aspiração de se tornar um streamer famoso como fuga das condições de trabalho contemporâneas, buscando também pertencimento e reconhecimento numa comunidade global de jogos eletrônicos que afirma um novo tipo de identidade e estilo de vida entre aqueles que dela participam.
Desarrollo:
A Twitch.tv é um site que permite jogadores/as ao redor do mundo transmitirem ao vivo suas partidas para um número ilimitado de pessoas. Diferente do Youtube – que raramente é usado em transmissões ao vivo -, a Twitch.tv é focada no upload de novos vídeos das transmissões recorrentes. Recentemente comprada pela Amazon.com por um bilhão de dólares, nos últimos cinco anos se tornou o trigésimo site mais visitado do mundo, com mais de 500.000 vídeos produzidos por ano, feitos por cerca de dois milhões de streamers (TAYLOR, 2018). NaTwitch, qualquer um que queira transmitir seus jogos cria um “canal” ao qual é possível fazer transmissões dos jogos que quiser, com uma audiência que pode mudar de um canal para outro quando bem desejar. Em suma, a Twitch é conectada de maneira diversa e abrangente com o consumo e a produção de jogos, temáticas que vão muito além de nossa discussão aqui. Em um primeiro olhar, a Twitch aparece como plataforma que viabiliza aqueles que desejam ter uma carreira “fazendo aquilo que ama”, no caso, jogando vídeo games. É com esselema que se constrói o apelo para milhares ou até milhões de pessoas e telespectadores. E enxergamos neste apelo algumas problemáticas, por exemplo, a difícil e extraordinária condição competitiva a ser encontrada nos jogos eletrônicos deve nos sensibilizar para osdiferentes tipos de desigualdades que rugem nesta área sob diferentes perspectivas, desde a de gênero, a de sexualidade, raça, classe, entre outras (TAYLOR, 2018). Os espaços de streaming são locais que recompensam fortemente aqueles que defendem uma masculinidadehegemônica, branca e heterossexual, tornando difícil para aqueles que não se enquadrem nesse perfil. Por sua vez, é fácil a metrificação do “sucesso” em termos de contagem dos seguidores, inscrições e doações. Isso é um exemplo dos princípios de popularidade: a arquitetura daplataforma incita os participantes a se tornarem “mais bem sucedidos” conforme seja operacionalizada essa métrica de dados. Obviamente, tal tentação não exige que todos os participantes abordem o streaming dessa maneira, mas podem ver o incentivo como uma propriedade emergente de design que incita os participantes a se disporem aos prazeres da plataforma em uma gama específica de formas. O que é impressionante sobre o caso do streaming é como os critérios pelos quais podemos realizar avaliações de competência ou habilidade em relação a nós ou dos outros se naturalizam dentro da arquitetura da própria Twitch.
Ao pensarmos nesses critérios, nos quais o “sucesso” e a “popularidade” da plataforma tendem a ser confundidos, podemos começar a fazer perguntas mais amplas sobre as condições sociais e econômicas sob as quais uma busca tão intensamente metrificada passa a ser percebidacomo valiosa para os sujeitos e como um potencial contribuinte ao seu bem-estar. A contratação de “parceiros” da Twitch segue o lema neoliberal de pessoas “automotivadas”, “independentes” e que “amam o que fazem”, especialmente entre os mais jovens. Há uma promessa incipiente da economia moral emergente do capitalismo digital que repousa na contradição entre aspiração normalizada e a impossibilidade de atingir certos patamares, exceto para um pequeno número de pessoas. Podemos afirmar que, pelo menos, alguns milhares de indivíduos no mundo são capazes de ganhar todos os seus rendimentos econômicos através da atividade de streamer na Twitch, apesar de um número muito maior consiga apenas um rendimento adicional aos seus ganhos ou sequer consegue algum lucro monetário (JOHNSON; WOODCOCK, 2017). O número de streamers está crescendo à medida que o serviço aumenta, enquanto a Twitch continua a adicionar novas maneiras para que as transmissões possam gerar ainda mais receitas. A princípio, todos os streamers começam do mesmo ponto, desconhecidos e com pouca (ou quase nenhuma) audiência, embora vários streamers de sucesso tenham carreiras de êxito em outros lugares (como em competições de jogos profissionais ou no Youtube de maneira anterior a plataforma da Twitch). Outros grandes nomes não tinham fama antes da carreira na Twitch, informação que contribui muito para encorajar novos aspirantes na transmissão de jogos. Todos enfrentam desafios mundanos em termos de investimento temporal para terem alguma chance de alcançar visibilidade (WACJMAN, 2015), privilegiando aqueles que podem contar com os recursos familiares de forma homóloga aos estagiários. Uma coisa é fazer streaming nas horas vagas, outra é ter a segurança existente para priorizar o streaming por semanas, meses e talvez anos sem ainda se tornar lucrativo, mas com a esperança de fazer seu “mérito” se sobressair.
É um pouco óbvio pensar como as relações entre meritocracia, vídeo game e neoliberalismo podem se misturar. A imagem de um streamer é uma excelente metáfora do trabalhador/a comum e pode ilustrar bem estes termos. São exigidas habilidades para a realização de atividades repetitivas, muitas vezes em curto prazo, com a intenção de maximizar sua produtividade para “ganhar” – ou seja, ser mais eficiente – dentro do ambiente competitivo dos jogos. Ser um streamer de sucesso é basicamente baseada nestes preceitos: disputar contra o relógio para coletar o maior número de recursos, itens, pontos de experiências, avatares, armas e moedas digitais – com valor dentro e fora do jogo – para se tornar o mais forte, mais rico, com o nível mais elevado possível e, assim, conquistar mais respeito, também dentro e fora dosjogos eletrônicos. Dessa maneira, existe um mercado de competição destes jogos que oferece um vislumbre de esperança dentro de um setor excessivamente competitivo e financeiramente inseguro (TAYLOR, 2012).
Esta é a realidade, basicamente, de trabalhadores/as que são conduzidos a uma maior sujeição às condições (in)suportáveis do trabalho. É diante destas metas da flexibilidade e de um ritmo acelerado que são usadas manobras para aumentar a produtividade que frequentemente fragiliza a saúde do trabalhador/a (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010). Alcançar o ápice do sucesso requer diferenciação da multidão de outros jogadores/as de alguma forma, e ao estudar esses métodos de diferenciação podemos observar a precariedade deste trabalho em um mundo que oferece uma chance em mil2 para alcançar carreira por estes meios. Um exemplo que pode ilustrar bem esta realidade é o termo “Speedrunner”, comum nos jogos eletrônicos. “Speedrunner” (correndo em velocidade, em tradução livre realizada pelo autor) é a prática de competir em um determinado jogo o mais rápido possível para maximizar o lucro (SCULLY-BLAKER, 2014), no sentido quase literal de correr contra o relógio. Muitos streamers de Speedrun atraem audiência de forma consistente como demonstração do alto nível da prática dos jogos, ao qual a audiência mostra um claro interesse nestes streamers a partir de seus sucessos nesta modalidade em um determinado jogo. Conforme um ou outro jogador/a se sobressai na disputa por mais resultados positivos – no menor intervalo de tempo possível -, também mudam suas audiências, tendendo a aumentar e assim gerar renda, empurrando estes jogadores/as para o trabalho necessário – altamente competitivo e repetitivo – para adquirir visibilidade através de seus resultados. É dessa maneira que o streaming proporciona a possibilidade atraente de sucesso instantâneo para qualquer pessoa, podendo ser catapultado para o escalão mais alto da visibilidade virtual e financeiramente sustentável. Na teoria, para ter sucesso, é só vencer no menor intervalo de tempo possível e fazer publicidade de seus resultados. Acompanhar esses rankings de qualificação representa, neste sentido, a metrificação do sucesso.
Ao conseguir chegar no topo dessas métricas, mesmo streamers desconhecidos podem rapidamente se tornar celebridades que cresceram “do nada” para uma forma substancial devido ao sucesso repentino e sua consequente notoriedade. Existem centenas de comunidades destetipo na Twitch, todas com sua cota de aspirantes a estrelas entre uma multidão de pessoas, permitindo que streamers busquem visibilidade por diversos caminhos, ainda que estejam todos inseridos no cenário competitivo. Basicamente, este é o caso da transmissão de jogos que se alinha com o empreendedorismo neoliberal. O jogador/a deve encontrar maneiras de explorar as oportunidades econômicas emergentes que o jogo profissional oferece, incluindo conectar-se individualmente com patrocinadores e investidores. Nos parece, portanto, que a passagem para o jogo profissional é uma extensão de circunstâncias instáveis que alimenta a contração das oportunidades de emprego, assim como nas formas tradicionais de empregabilidade. Jogar na economia digital nem sempre é libertador, ao contrário, pode ser um reflexo do capitalismoneoliberal orientando sujeitos para a produção. Apresentado como um campo em que qualquer um possa jogar, transmitir e obter sucesso, a realidade é bem diferente.
A intensidade, o ritmo e o regime dos turnos de horas trabalhadas não raramente encontram-se em contradição com os biorritmos dos indivíduos, tudo para incrementar as métricas e visibilidade do canal de alguém na Twitch. É muito comum streamers realizaremdesafios específicos, como o streaming por longos períodos temporais, como método de obter interesse e visibilidade por parte do público. Uma transmissão de 24h para comemorar um evento especial – comemorar um certo número de doações, inscrições e/ou seguidores – não éraro. Alguns já foram além e realizaram transmissões de 48h. Estas práticas “extremas” – talvez sem aspas, já que estamos falando sobre trabalhos sucessivos durante dois dias seguidos – minam os pressupostos básicos de um dia normal de trabalho, sendo algo relativamente comum na plataforma da Twitch para somar audiência e visualizações. Estas práticas são realizadas por streamers para mostrar aos espectadores a confiabilidade de seu trabalho, o interesse do seu canal em crescer e, portanto, o motivo para que pessoas assistam o seu conteúdo, e não o dos outros. Esta contradição entre o biorritmo individual é o que gera acidentes e adoecimentos e o crescimento de patologias associadas ao trabalho precarizado (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010), dispensando a necessidade de explicarmos o quão prejudicial pode ser o trabalho incessante por um longo período de tempo.
Neste sentido, a competição da Twitch é tão forte que pode ser potencialmente desafiadora para a saúde mental e física (JOHNSON, 2018), mas para vários streamers, tais riscos são parte da competição por audiência. A Twitch é muito clara em não endossar esta prática, mas não impede explicitamente a existência de streamings com longos fluxos de duração. Mais uma vez, vemos a tensão dentro da economia moral do capitalismo digital, que é a celebração do “sucesso” individual andando de mãos dadas com a competição e auto exploração subordinada por muitos como prática vista de maneira valiosa para o sucesso no trabalho.
De alguma forma, o trabalho de streaming é disseminado como emprego dos sonhos através da velha ideia de “receber dinheiro para jogar vídeo games”. A transmissão de jogos é vista, então, como ponto de partida para inserir-se em um potencial mercado dos jogos e doentretenimento, especialmente para aqueles que não têm habilidades ou credencias educacionais necessárias para os setores mais altos da indústria da programação e criação dos jogos eletrônicos (BULUT, 2020). De forma oposta, em relação às posições mais privilegiadas,os streamers são mais jovens e trabalham sob condições mais alegres, entretanto, mais precárias.
Nesta hierarquia em que os jogadores são a base da pirâmide – com os desenvolvedores no topo e os jogadores no base (CERÓN, 2020) – os streamers usam suas habilidades de maneira instrumental nas transmissões, mas que em geral, gostam de ser recompensados em obter um tipo de capital simbólico por possuírem um emprego encarado socialmente como divertido e legal, respeitados/as por uma grande omunidade virtual que o streaming oferece. São estes fatores que parecem aliviar as desigualdades da profissão, pois é um trabalho cansativo, mas que seria recompensado por muitas risadas, brincadeiras e reconhecimento durante seu ofício. As demandas formais e os típicos lugares de trabalho são substituídos por estúdios improvisados em suas casas, geralmente nos seus respectivos quartos de dormir. No background das transmissões, podemos ver quadros e diversos pôsteres nas paredes, sendo bastante comum assistirmos transmissões com os interlocutores bem à vontade em suas casas (TAYLOR, 2018), menos quando estão em algum momento decisivo de seus jogos. Tão à vontade que não param de transmitir nem para comer. As refeições quase sempre são realizadas durante às transmissões.
De toda forma, precário, divertido, legal, desigual ou não, ainda é um emprego. Deixando de lado estas “vantagens” (entre aspas, pois, consideramos que não ter hora de almoço não é um benefício), os streamers precisam de muita atenção no jogo, entreter a audiência e adquirir bons resultados para aumentar a metrificação da plataforma, ampliando a quantificação de seus ganhos. Muitos streamers definem metas específicas para tornar este trabalho quantificável e responsável para atingir seus objetivos em um determinado tempo, tornando este trabalho quase incessante, pois sempre há uma nova meta a ser batida.
Além disso, a Twitch possui uma tecnologia de vigilância que registra o ritmo de trabalho, sua produtividade e audiência, sendo os usuários reportados por estes dados, os horários a serem cumpridos, os dias de maior sucesso e insucesso. É desta maneira que os streamers da Twitch estão entre um grande número de trabalhadores que se encontram num ambiente muito competitivo, com o monitoramento do tempo, ritmo, êxito e adversidade de seu trabalho. Enquanto o processo de transmissão envolve momentos de risada e descontração, oofício inclui também tarefas repetitivas que além de exaustivas podem ser bastante estressantes, reforçando acidentes, adoecimentos e o crescimento de patologias associadas ao trabalho precarizado, questões a serem problematizadas com maior intensidade a seguir.
A precariedade como condição não é algo novo na história do capitalismo. O capitalismo, na verdade, é um sistema que produz e que precisa da precariedade para disciplinar sua força de trabalho. A precariedade é o novo normal, já que pessoas costumavam viver vidasrelativamente estáveis, mas que agora estão se encontrando cada vez mais dentro de carreiras imprevisíveis. Julgamos que o termo conceitual cunhado por Ursula Huws (2003), chamado de “cibertariado”, pode nos ser útil para iluminar a experiência do streaming, no que diz respeito sobre a precariedade desta ocupação. O termo chama atenção para os trabalhos que envolvem o processo laboral intermediado por tecnologias digitais, comumente repetitivos, que geram rotinas, frequentemente taylorizados, exibindo muitas características da alienação tradicional dos próprios trabalhos manuais.
Os streamers, caracterizados por auto impulsão, apaixonados pelo que fazem, comprometidos com o trabalho, as vezes trabalhando de graça, com grande insegurança material, com comportamentos obsessivos e agindo como empreendedores ousados, podem ser ilustrativos do que o cibertariado enxerga como ajuste pragmático para uma exploração instrumentalizada da mente e do corpo do trabalhador/a. A estrutura teórica do termo cibertariado é precisa e conceitualmente importante para nosso estudo porque os profissionais das transmissões de streaming operam justamente nestas características que, entre o jogar e o trabalho duro, individualmente opera-se para conseguir uma parceria “definitiva” ou “formal” com a Twitch. Como trabalhadores/as auto orientados, os streamers também experienciam adesmistificação do jogo. Apesar de desfrutarem de um ambiente descontraído de trabalho e da compensação financeira – no caso daqueles/as que conseguem atingir a parceria com a Twitch ou individualmente com outras empresas -, o futuro ainda é muito incerto e inseguro sobre as suas vidas e seus rendimentos. Estes profissionais podem ser facilmente vistos como proletariados – ou cibertariado,no caso – pois formam uma classe de pessoas que estão trilhando uma carreira insegura, sem segurança para o futuro, inseridos/as em um ofício que implica flexibilidade e acordos não permanentes com os funcionários em empresas privadas que evitam estas relações paramaximizar os seus lucros, como é o caso da Twitch. Esse também é o caso da carreira dos atletas de jogos virtuais (E-Sports ou simplesmente esportes eletrônicos), onde os jogadores são precariamente empregados enquanto a indústria destes jogos continua a crescer em valoreconômico. Muitos destes profissionais revelam características de ansiedade apesar da empolgação e da auto-orientação para ganhar a vida com a transmissão de jogos (TAYLOR, 2012).
Com histórias de trabalho instáveis, streamers resumem uma narrativa de trabalho vulnerável na indústria dos jogos e do entretenimento. Um fator importante na precariedade é sua idade relativamente jovem. Com os jogadores e profissionais do streaming que pude conversar – de maneira informal através do chat da própria Twitch ou por Whatsapp com os mais próximos –, a grande maioria tem menos de 30 anos e possuem histórias irregulares quanto ao trabalho, com diferentes experiências laborais, iniciando as transmissões de jogos quandoestavam desempregados. Alguns sustentam suas vidas convivendo com suas famílias enquanto reduzem o estresse do desemprego enquanto tentam fazer algum dinheiro jogando e transmitindo. Com a cultura material e a experiência da juventude, streamers mantêm um certoorgulho sobre o que fazem, enfrentando dessa forma as diversas inseguranças da vida. Embora inúmeras destas inseguranças sejam cada vez mais comuns em muitas profissões da contemporaneidade, a degradação do trabalho neste ramo é específica por ainda haver a paixãopor seus trabalhos, mesmo quando estes não aguentam mais jogar.
Os streamers são os trabalhadores mais animados que já vimos, que além de trabalharem durante longas jornadas transmitindo um determinado jogo, discutem, escrevem artigos, conversam, editam vídeos e criam estratégias de maneira assídua para melhorar não só o seudesempenho, mas o da sua comunidade também. Enquanto este cenário pode ser lido de maneira muito positiva – a união, o contato, os debates e as interações entre grupos -, ao mesmo tempo, essa sobrecarga de trabalho também é sentida no corpo, já que ficar horas sem parar na frente do computador também provoca consequências físicas. Neste aspecto, o trabalho de streaming é também um trabalho físico, pois todos os trabalhadores/as possuem um corpo que nele é submetido um determinado tipo de estresse, pela repetição e pressão de trabalhar rápido. Assim como acontece com os trabalhadores/as de plataforma, como a Uber, embora não sejamfuncionários formais da empresa, estão sujeitos à disciplina capitalista, da pressão temporal, da produtividade e de outras formas de supervisão.
Desta maneira, a linha entre jogar e trabalhar é muito tênue, e os sintomas da precariedade ocorrem quando o jogo é submetido à noção da disciplina temporal, regulado pelas noções de metrificação do sucesso. A precariedade, então, se conecta com a tradução do jogoem objetivos quantificáveis, longas horas de trabalho, tarefas repetitivas e, talvez, na incapacidade de jogar vídeo games sem a pressão laboral. A natureza repetitiva do trabalho em realizar transmissões, jogar o mesmo jogo, a mesma missão, os mesmos personagens, podesugar a diversão do trabalho, invadindo o jogo nas horas de lazer. Quando o jogo é regulado através da disciplina do tempo, a paixão é inibida (BULUT, 2020). Além disso, quando se joga para pagar contas, o nível de estresse aumenta consideravelmente enquanto a diversão cai, poisuma jogada errada pode implicar no aumento da jornada de trabalho do dia seguinte, para suprir o rendimento que não se alcançou no dia anterior. O jogar se torna puramente instrumental.
É evidente, então, que o significado do jogo é radicalmente transformado no que diz respeito ao streaming e aos jogadores/as do cenário competitivo/profissional. Enquanto os jogadores/as desenvolvem táticas e formas criativas de aliviar o estresse enquanto tenta-semelhorar o desempenho esportivo, a instrumentalidade do trabalho reduz o jogo em tarefas quantificáveis. Pelo fato de muitos jovens aspirarem um emprego neste ramo – e pelo mantra que o trabalho de streaming e que jogar vídeo game é a profissão dos sonhos – a carreira nesta área os faz se sentirem sortudos/as, realidade que enfraquece o poder de barganha do trabalhador/a que acaba se disciplinando com maior intensidade, habituando-se a trabalhar cada vez mais. Assim, a paixão, o amor ao trabalho e a vontade de trabalhar horas sem parar estãointegrados na dinâmica de extração do valor excedente.
Por consequência, a precariedade por si só é produtiva: produz sujeitos com um ethos de trabalho bem definido e com auto vigilância para assegurar algum tipo de benefício no trabalho do streaming no presente, mas com o desejo de maior estabilidade no futuro. Apesardisso, as políticas sobre precariedade nesta área precisam ser repensadas. Indubitavelmente, esta profissão envolve maior escolha que outros tipos mais precários, como aqueles experenciados por imigrantes, por exemplo, sendo talvez a experiência que seria a ponta maisprejudicada na hierarquia laboral. Sabendo que se trabalha longas jornadas, quando menciono este fato nas conversas informais com os jogadores/as, os entrevistados/as reproduzem a linguagem capitalista do “mas eu amo o que eu faço” e que “este trabalho faz sentido para mim e para a minha comunidade”. Me parece que os streamers em geral – ainda é cedo para afirmar por falta de uma maior coleta de dados – experienciam a precariedade do ofício como problema individual, baseado em suas próprias escolhas. Assim como ganhar seria mérito deles, perder também. São empreendedores da mesma maneira que são proletários de si.
É neste ponto que a dinâmica do “capitalismo legal” (MCGUIGAN, 2012, apud BULUT, 2020) opera para fazer com que streamers se submetam à precarização e iniba a sindicalização ou outras formas de auto organização para a criação de direitos a serempleiteados na profissão. O valor do trabalho, dessa maneira, bem como o valor do trabalhador, são cada vez mais concebidos em termos de identidade e estilo de vida. É assim que streamers se enxergam diferentes de outros trabalhadores precarizados, sendo vistos e auto avaliados com mais respeito do que em outros setores, pois, afinal, eles escolheram fazer aquilo que amam. E mesmo com esta realidade precarizada, o streaming apresenta altos níveis aparentes de satisfação. A precariedade, neste sentido, não necessariamente resulta em transgressão e resistência ao capital, em vez disso, a precariedade leva ao seu oposto (BULUT, 2020), a sujeição das relações de poder desigual.
Conclusiones:
Este artigo tentou mostrar como, através da atividade do streaming, existe na era do capitalismo digital contemporâneo uma conceitualização moral operada para criar relações de trabalho precarizadas através do já conhecido empreendedorismo neoliberal e sua aspiraçãopara ascensão através do trabalho duro. O que vemos é a contração e a diminuição de trabalho nos setores tradicionais de serviço e empregabilidade ilustrando a mudança para a economia digital, um campo que se apresenta como igualitário, mas que na verdade obscurece as relações de poder que prejudicam estruturalmente os que chegam por último, bem como aqueles que não apresentam os recursos e características necessárias para se adequar nesta modalidade. É difícil politizar as relações de poder na economia política digital, já que todos os modos de expressão dos streamers contemporâneos é baseada em termos morais. Há uma afinidade eletiva entre o projeto de vida do aspirante a profissional e uma indefinição cultural entre as fronteiras do “jogar” e “trabalhar”. O primeiro é um processo facilitado peladigitalização incitada pelo capitalismo digital, enquanto o último é uma mudança de longo prazo que se manifesta em uma série de níveis, não menos importante que as mudanças na cultura do trabalho e suas relações com o trabalho não tradicional. As questões estruturais sobre as oportunidades ocupacionais são cada vez mais obscurecidas por questões culturais que dizem respeito a conduta moral individual,especificamente no que diz respeito ao nível de trabalho e esforço que se espera dos indivíduos para chegarem ao sucesso laboral. Consideramos que a educação e a formação passam a ser importantes marcadores morais, pois o desejo de auto aperfeiçoamento como método para a fama e sucesso financeiro encontra uma forte identificação no mundo dos jogos e do streaming, onde o “mérito” individual parece prevalecer. São esses elementos que combinados soam muito apelativos que levam jovens ao fenômeno do streaming, reforçados ainda pelas plataformas que oferecem esta possibilidade. Aparentemente, a alta taxa de desemprego entre os mais jovens encontra na atividade do streaming um local de grande apelo emocional, ocasionando uma dinâmica bastante particular. O esforço investido na tentativa de estabelecer-se como streamer profissional poderia ser comprometido em outras carreiras e treinamentos para tornar estes indivíduos mais empregáveis em outras áreas, havendo a possibilidade desta experiência laboral integrar-se como parte central do capitalismo contemporâneo, em que os indivíduos se veem como os próprios responsáveis por seus trajetos e sucessos profissionais. O caso do streaming, portanto, se torna um local exemplar para pensarmos sobre ofícios laborais e empregabilidade nas condições socioculturais entre jovens no clima econômico atual, onde a busca por sucesso individual cruza qualquer tipo de desafio para alcançar segurança em outros tipos de carreira profissional não tradicionais. Para além das dinâmicas de mercado, presumimos que muitos enxergam no streamingnão apenas a chance de monetizar a atividade, mas também para encontrar um significado de vida e de se reconhecer naquilo que fazem, assim como na procura por afetividade em participar de uma comunidade global dos jogos eletrônicos, fato que merece mais estudos paraaprofundarmos diferentes olhares sobre a temática.
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Palabras clave:
Streaming; Vídeo Game; Twitch; Sociologia do Trabalho.