Resumen de la Ponencia:
O Ocidente a partir da conquista ibérica do continente americano teceu uma articulação altamente favorável e consistente para o capitalismo emergente, configurada entre os saberes modernos e a organização do poder especialmente nas relações coloniais. A modernidade e o neoextrativismo ameaçam os modos de vida das populações tradicionais. As Reservas Extrativistas constituíssem em uma conquista dessas populações pelo seu direito básico de Re-existir. Este ensaio analisa as relações assimétricas entre o conhecimento tradicional e cientifico, em especial entre os técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e os usuários da Reserva Extrativista Marinha Caeté- Taperaçu, Bragança/PA, destacando o neoextrativismo como catalizador de conflitos socioambientais que são atravessados pelas diferenças de saber e de poder. As ações construídas no Conselho Deliberativo e os debates para a elaboração das regras de apropriação dos recursos naturais evidenciam a diferença do saber. A pesquisa constituiu-se de entrevistas semiestruturadas; acompanhamento de reuniões do CD e análise de documentos da Resex. A Resex é um local privilegiado para a observação das estratégias de participação, refletindo os interesses e as lutas que mobilizam os agentes sociais na cogestão do território. Palavras-chave: Modernidade; Neoextrativismo; Populações Tradicionais; Conhecimento Tradicional; Conhecimento Científico; Reserva Extrativista.
Introducción:
O Ocidente a partir da conquista ibérica do continente americano teceu uma articulação altamente favorável e consistente para o capitalismo emergente, configurada entre os saberes modernos e a organização do poder especialmente nas relações coloniais (LANDER, 2005). Esse processo histórico de organização colonial do mundo marca simultaneamente a subalternização dos saberes, das linguagens e da memória das populações residentes na América (MIGNOLO, 2005). Essa colonização eurocêntrica conduz a uma homogeneidade que nos séculos XVIII e XIX culminaria com uma organização e totalidade do espaço e do tempo, reunindo a um só tempo todas as culturas, povos e territórios numa grande narrativa universal projetada pela Europa (LANDER, 2005). A colonização foi um processo arrebatador, que se alargou para muito além das dimensões econômicas e políticas preconizadas por muitos intelectuais europeus. A imposição do Europeu na conquista e/ou submissão de outros continentes e territórios foram acontecimentos marcados por inúmeros massacres, escravização e expulsão das populações nativas que sofreram com a ruptura dos seus modos de vida, padecendo sem entender a lógica da invasão e destruição de suas vidas e territórios, conforme relatam vários cronistas. Nesse sentido, a discussão e formulação de estratégias de alternativas ao desenvolvimento e ao neoextrativismo é tema recorrente nos debates políticos e no âmbito das ciências sociais. Porém o desafio de implementação de projetos alternativos à primazia do mercado, se coloca como um obstáculo, em muitos casos intransponíveis. Posto que o capitalismo é um discurso hegemônico, sustentáculo do modelo civilizatório no qual estamos inseridos, esse modelo nortea os pressupostos dos valores básicos referentes a humanidade, à riqueza, à natureza, à história, ao progresso, ao conhecimento e à boa vida (LANDER, 2005). Esse reconhecimento hegemônico atribuído ao capitalismo legitima as várias narrativas criadas e alimentadas por este, para justificar através do conhecimento objetivo, científico e universal a cosmovisão da sociedade moderna, que justifica a lógica colonial. Esse modelo civilizatório excludente e desigual exige a desconstrução de metanarrativas que permeiam o caráter universal e natural do capitalismo, “isso requer o questionamento das pretensões de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalização e legitimação dessa ordem social” (LANDER, 2005, p. 11). O lócus do ensaio em questão, é a Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu, localizada no município de Bragança, nordeste paraense. A Unidade de Conservação (UC) congrega 69 comunidades usuárias, sendo que 03 encontram-se dentro dos seus limites (Castelo, Bonifácio e Vila dos Pescadores). Neste ensaio nos detemos a crítica realizada por Maristela Svampa (2019) ao neoextrativismo que acaba por mercantilizar a humanidade fomentando conflitos em torno das diferenças de saber e de poder. A pesquisa qualitativa constituiu-se de entrevistas semiestruturadas e informais com atores institucionais, como técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, moradores (a) e lideranças da Resex Caeté-Taperaçu. Realizou-se pesquisa participante acompanhando reuniões do Conselho Deliberativo, bem como analisamos documentos oficiais da reserva e dados em sites oficiais (Ministério do Meio Ambiente – MMA; ICMBio; Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA). Tal problemática é um campo fecundo para uma reflexão no âmbito dos estudos pós-coloniais que se concentram nas discussões sobre as relações de poder verticalizadas criadas pela colonização, como as formas desiguais de saber, a ocupação da terra e a exploração da natureza. As contribuições de tais estudos são acepções teóricas importantes na elaboração de alternativas frente aos binarismos postos pela Ciência Moderna (LANDER, 2005).
Desarrollo:
Da Modernização Capitalista ao Neoextrativismo: Conflitos socioambientais em tela
No artigo Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina (2005) Quijano vincula a colonialidade do poder ao processo de globalização ocorrido na América, que legitima o "capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial" (p.117). Neste sentido, Mignolo (2005) observa que às configurações históricas implantadas na cosmovisão dos povos ditos subalternos são introduzidas com o sistema colonial/moderno, estruturado na colonialidade do poder e na diferença colonial que historicamente originou uma geopolítica do conhecimento que inferioriza saberes, povos e culturas, tipificando-os como saberes subalternos.
Dussel (2005) comenta que a superioridade do saber, atrela-se a uma obrigação de civilidade que se centra em desenvolver os povos considerados mais primitivos, bárbaros, sem civilidade, como exigência moral. Eliminando dessa forma saberes ditos subalternos, com a justificativa ideal de desenvolvimento moderno. Para tanto, são criados vários órgãos para fomentar essa modernidade atrelada há uma ideia distorcida de humanidade, que visa instaurar o desenvolvimento corporificado em muitos casos, por meio dos direitos humanos, as populações ditas primitivas e/ou atrasadas.
Em confluência com as acepções dos autores supracitados, Neide Godim (2007) enfatiza a exclusão das populações indígenas da formação do pensamento social amazônico, relegando a essas populações não somente a invisibilidade como também a negação dos direitos de ocupação da terra. Godim nos apresenta uma complexa analise histórica da invenção da Amazônia e seus reflexos permanentes de marginalidade que atravessam séculos. Assim, a ilusão desenvolvimentista é alimentada por todo esse contexto histórico, recebendo alguns condicionantes novos do neoextravismo, como a alta dos preços das matérias primas e a demanda crescente vinda majoritariamente da China. Os governos acreditavam que essa combinação econômica seria suficiente para alcançar aquele desenvolvimento sempre prometido e nunca realizado de nossas sociedades, o que não ocorreu (SVAMPA, 2019, p. 61). Nesse sentido, é perceptível a configuração no cenário latino – americano de uma relação entre neoextrativismo, assimetrias de saberes, ilusão desenvolvimentista e governos progressistas, refletindo em consequências catastróficas do ponto de vista das demandas e dos direitos dos movimentos indígenas, tradicionais e socioambientais, como pode ser depreender nos governos da Bolívia e do Equador, em especial. Uma marca latente do neoextrativismo é a explosão de conflitos socioambientais, consubstanciado na luta ancestral pela terra, reivindicada por movimentos indígenas, populações tradicionais e camponeses, que agem no sentido de desenhar formas inéditas de mobilização e participação cidadã, em defesa não somente dos seus territórios, mais, sobretudo, dos seus modos de vida. Assim, Svampa (2019) nos apresenta uma definição dos conflitos socioambientais, que pode ser entendido através do acesso e do controle dos bens naturais e do território, configurando interesses e valores assimétricos entre os agentes envolvidos, em uma disputa de poder e de saber. Os conflitos externam diferentes concepções do território, da natureza, do ambiente e principalmente da compreensão acerca do que se entende por desenvolvimento e participação politica (SVAMPA, 2019, p.86). Nessa direção, as economias latino-americanas a partir dos anos 2000 são impactadas por um crescimento econômico expressivo atribuído aos altos preços internacionais das commodities. Esse arranjo econômico favorável foi acompanhado por intensas mobilizações sociais direcionadas ao questionamento do neoliberalismo e das representações políticas tradicionais. Esse período é denominado de ciclo progressista latino-americano, que declinou a partir de 2015-2016. A autora analisa os ciclos dos governos progressistas no Brasil a partir do protagonismo assumido por esses, em face do crescimento expressivo da devastação ambiental acarretadas pelas políticas neoextrativistas. Nessa acepção, todos os governos latino-americanos, sejam de esquerda ou direita, fomentaram politicas desenvolvimentistas, sem, contudo, problematizar os impactos socioambientais dessas, marginalizando ou mesmo criminalizando as mobilizações e os projetos socioambientais emergentes (SVAMPA, 2019, p.17-36). A configuração sociopolítica dos últimos dez anos no Brasil tem repercussões avassaladoras nos territórios e na marginalização dos conhecimentos tradicionais, como demostram vários autores (KRENAK, 2019; KOPENAWA, 2015). Em uma rápida cronologia, é possível verificar o desmonte das politicas socioambientais mais fortemente desde 2013, com a interrupção dos créditos do Programa Nacional de Reforma Agraria, em 2017 com a paralisação do Programa Bolsa Verde, em 2018 com a criação da última Reserva Extrativista (Resex) e atualmente com vários decretos que permitem a ocupação e exploração predatória em terras indígenas e Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Nesse sentido, Svampa (2019) discuti o posicionamento neoliberal dos governos latinos americanos tanto no fomento ao neoextrativismo, quanto nos avanços progressistas em políticas públicas socioambientais. A autora pontua alguns conflitos socioambientais, recorrendo há vários exemplos factíveis para evidenciar como as populações locais constroem suas estratégias de enfrentamento, gerando saberes alternativos, como o bem viver e a justiça ambiental para engendrar a defesa e proteção dos bens comuns. Com isso desenham o giro ecoterritorial, vislumbrado através das lutas socioambientais e de linguagens de valoração. Como podemos observar em projetos desenvolvidos pelas populações tradicionais do nordeste paraense, destacando-se os projetos paneiro do mangal na Resex Caeté-Taperaçu e o projeto encurtando elos da Resex de Curuçá, ambos proporcionam autonomia alimentar e financeira a essas populações para se reproduzirem social e economicamente através dos recursos disponíveis no território. Assim, o neoextrativismo como fenômeno emergente tem suas origens na conquista e na colonização latino-americana pela Europa, é analisado pela autora em tela, a partir de duas dimensões, objetiva e subjetiva. Objetivamente o neoextrativismo é representado pela quantidade e pela escala dos projetos, pela diversidade das atividades e dos atores envolvidos. No âmbito subjetivo, é marcado pelo surgimento de grandes resistências sociais que desenvolvem outras linguagens e narrativas em defesa de valores, como a terra, o território, os bens comuns, a natureza etc., ameaçados pela expansão da fronteira das commodities (SVAMPA, 2019, p.18).
O neoextrativismo é uma categoria analítica elaborada na América Latina, é permeado de um grande poder descritivo e explicativo, que lhe reveste de um caráter denunciativo e mobilizador, além de destaca-se como o centro da acumulação contemporânea do capital. Nesse sentido, Svampa (2019) realiza uma caracterização da dimensão histórico-estrutural do extrativismo que nasce associado à conquista e ao genocídio nos territórios latino-americanos. A geografia da América Latina desenhou seus rumos geopolíticos marcados por uma acumulação primitiva do capital, evidenciado por um paradoxo entre lucro extraordinário e extrema pobreza. Nesse sentido, a autora cita o caso de Potosí, na Bolívia, que representa a dinâmica avassaladora capitalista dos países desenvolvidos, de apropriação da natureza em grande escala e da exportação de matérias-primas. Essa configuração de especialização interna e dependência externa caracteriza as sociedades “exportadoras da natureza” assim denominadas pelo venezuelano Fernando Coronil (SVAMPA, 2019, p.36). Assim, o projeto de modernização capitalista ocidental destrói o meio ambiente em escalas galopantes e contínuas e com isso desapropria populações que dependiam dessas terras e seus recursos, obrigando essas, a viverem em condições desumanas nas favelas e periferias das grandes cidades. Segundo Krenak (2018, p.9), para essas populações, a perda da terra está para além da sobrevivência, tem ligação direta com “vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade”, quando esse sentido se esvai, toda uma cultural está fadada a desaparecer. Portanto, o neoextrativismo estimula a problemática sobre a crise do projeto de modernidade em suas diferentes dimensões: democrática (regime político e respeito aos direitos humanos), econômica (neoliberalismo 1990 e a crise de 2008) e geopolítica (declínio relativo dos EUA e ascensão da China). Além da crise ecológica que está eminentemente associada à crise da modernidade. Para tanto, a autora enfatiza a importância de pensar alternativas ao projeto de modernidade desenvolvimentista capazes de priorizar a reprodução da vida e da pluralidade de saberes como bem salientou o antropólogo colombiano Arturo Escobar (SVAMPA, 2019, p.53). A autora argentina em tela, nos apresenta uma definição interessante sobre o neoextrativismo contemporâneo que tem seu acento temporal no século XXI. Para ela, podemos identificá-lo como um modelo de desenvolvimento baseado na superexploração de bens naturais, cada vez mais escassos, na maioria não renováveis, na ampliação das fronteiras de exploração para territórios antes improdutivos. Concentra-se na exportação de bens primários em grande escala, como hidrocarbonetos, metais e minerais e produtos agrícolas como soja, dendê, cana-de-açúcar, esses últimos representam as principais commodities brasileiras. Nesse sentido, o neoextrativismo está para além das atividades tradicionalmente extrativistas, atravessa os mais diferentes projetos desenvolvimentistas, que perpassam pela megamineração a céu aberto a monoculturas florestais. O neoextrativismo também pode ser compreendido como um modelo sociopolítico e territorial que atravessa as escalas local, nacional ou regional configurando conflitos socioambientais entre as populações pobres locais e grandes agentes econômicos (SVAMPA, 2019, p.63). Svampa (2019) desenvolve um importante conceito para caracterizar a dinâmica do neoextrativismo na América latina. Denominado de consenso das commodities que marca interrupções e continuidades com o tão conhecido consenso de Washington que redefiniu o Estado como um agente metarregulador. O consenso das commodities pode ser caracterizado como uma nova tendência a reprimarização da economia, tendo como principal receptor a China. Esse consenso enseja aos governos progressistas latino-americanos que se prologuem em uma “esquizofrenia” visível entre o questionamento do consenso neoliberal e a atribuição e proteção de direitos das populações vulneráveis, em especial as populações originarias e tradicionais. Esse contexto geopolítico favoreceu a marginalização ou mesmo o não reconhecimento dos conflitos territoriais e socioambientais ligados à dinâmica extrativista (SVAMPA, 2019, p. 76). O neoextrativismo tem agido como catalizador para atualizar os imaginários sociais ligados à infinidade de recursos naturais, reconstruindo o mito do continente como um eldorado, nesse aspecto Neide Godim (2007) em seu livro A invenção da Amazônia, nos mostra duas visões acerca da Amazônia, a primeira retratada pelo imaginário europeu e a outra é oposta a esse imaginário, representa a forma como viviam os nativos. Essas visões se reproduzem e se atualizam com o neoextravismo. Muitos dos viajantes citados por Godim deixaram registros de fantasia, utopia e preconceito, tem como ponto central a marginalização dos saberes locais, embasando a instalação de uma perene colonização na América Latina. Portanto, os governos latino – americanos em face da eclosão dos conflitos socioambientais se posicionaram através de um discurso desenvolvimentista beligerante em defesa do neoextrativismo, reavivando o imaginário eldoralista, como também, estigmatizando e criminalizando as lutas, como podemos visualizar através das reivindicações do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil e o caso dos Tipins na Bolívia (SVAMPA, 2019, p.91). Conflitos estes que expressam as diferentes percepções e linguagens de articulações dos atores em torno do território e da territorialidade, que é reivindicado não somente pelas organizações indígenas e os movimentos socioambientais, como também pelo Estado e por corporações. Assim, é possível compreender a noção de território como uma espécie de conceito social total, que externaliza as estratégias dos diferentes atores em conflito em um duplo aspecto, material e simbólico. E também como um lugar de ressignificação e criação de relações sociais (SVAMPA, 2019, p.96). Nesse sentido, a autora coloca que há pelo menos quatro matrizes político-ideológicas que permeiam as transformações do campo contestatório latino-americano: a camponesa-indígena comunitária, a populista – movimentista, a classista tradicional e a narrativa autonomista (SVAMPA, 2019, p.99). As reivindicações dessas matrizes juntamente com as ideias ecofeministas configuram a partir de 2003 uma linguagem comum de valoração da territorialidade, denominada pela autora de giro ecoterritorial, visível a partir da representação das atuais lutas socioambientais, direcionadas para a defesa da terra e do território. Como também age no sentido da criação de marcos da ação coletiva, como os bens comuns e os direitos da natureza. Conformando estruturas de significação e esquemas de interpretação contestatórios ou alternativos, desenhando dessa forma, um quadro de inteligibilidade geral (SVAMPA, 2019, p.93-106). Assim, o giro ecoterritorial aponta vários conceitos horizontes, dentre os quais, o bem viver que compreende uma pluralidade de cosmovisões indígenas, rompe com o pragmatismo e binarismos já estabelecidos pelo discurso colonial. Suas preposições dizem respeito a novas formas de relação do ser humano com a natureza e com outros seres humanos, destacando a urgência da criação de um paradigma antropocêntrico outro, de caráter racional (SVAMPA, 2019, p.108). Nessa direção, Svampa (2019) comenta que o Antropoceno, aponta para os limites que são ultrapassados pela humanidade, nos colocando em uma posição vulnerável em face das imprevisibilidades não lineares e em grande escala por parte da natureza. Isto posto, não é somente os humanos que estão em risco com os impactos acarretados pelos modelos de desenvolvimento insustentáveis, mais também outras espécies e o planeta Terra em toda sua dimensão. Assim, o Antropoceno converge suas criticas para as lógicas atuais de desenvolvimento (SVAMPA, p.152). Portanto, uma gnose liminar se faz urgente, e já está em curso através de alguns conceitos-horizontes como o pós-extrativismo e decrescimento elaborados pelos autores Alberto Acosta e Ulrich Brand. Esses conceitos realizam uma leitura crítica do capitalismo atual, enfatizando a crise socioecológica de âmbito civilizatório que desafia os limites ecológicos do planeta. Propondo a partir de outras racionalidades ambientais a Re-existência para a região mais desigual do mundo, a América latina (SVAMPA, 2019, p.163). Assim, Krenak (2018) enfatiza que a modernidade criou uma humanidade zumbi intolerante a qualquer tipo de fruição de vida, chamando atenção para construirmos paraquedas coloridos, metáfora que dentre outras coisas, significa criar alternativas para escapar da opressão da dinâmica da sociedade capitalista, podendo se constituir em uma gnose liminar, haja vista que aponta para a criação de novos lugares de enunciação, expressando uma razão subalterna dos saberes historicamente negados (MIGNOLO, 2005). No Brasil as populações tradicionais e indígenas tem um amplo histórico de resistência, demostrada pela afirmação de suas subjetividades e diferenças. Nos últimos anos em especial desde 2018, as tensões vêm sendo agravadas entre o Estado brasileiro e as sociedades tradicionais e indígenas. Fato decorrente da expansão do neoextrativismo que recebe apoio direto do Estado para implementar suas políticas desenvolvimentistas de desmatamento e desapropriação das populações locais (SVAMPA, 2019).
Pluralidade dos Saberes: As Populações Tradicionais na Busca pela Re-existência ao uso dos seus Territórios
Com a implantação das Unidades de Conservação partiu-se para a criação de dispositivos jurídicos de regulamentação de uso de tais territórios, os ditames legais resultaram no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que foi resultado de um amplo processo de discussão e revisão das categorias de Unidades de Conservação já existentes, fornecendo os subsídios legais para a estruturação das Unidades e estabelecendo critérios jurídicos para a conservação do Meio Ambiente (SANT’ANNA, 2003). No entanto, essas regulamentações, de modo geral, são essencialistas, e quem elabora, controla o conhecimento científico hegemônico conforme argumenta Mignolo (2005). A implantação de tais mecanismos jurídicos ocasiona conflitos inerentes à diferença do saber e do poder de representação da fala, decorrente da legitimidade atribuída pelo lugar de enunciação do conhecimento. Isto é factível nos espaços de debate na Resex Caeté-Taperaçu, os técnicos protagonizam discursos de sustentabilidade, na tentativa de impor regras de conduta aos usuários quanto ao uso da natureza. Essas regras diferem significativamente da cotidianidade e do conhecimento geracional repassado para essa população. Nesse contexto, observamos novamente a tentativa de arraigar através do conhecimento técnico – cientifico o mito da sustentabilidade conforme salientando por Krenak (2018). Para Cunha (2007) os saberes tradicionais diferem em larga medida do saber científico. Posto que este último é entendido como verdade absoluta, enquanto o saber tradicional é flexível. No entanto, há convergências entre essas duas formas de saberes, pois “ambos são formas de procurar entender e agir sobre o mundo. E ambas são também obras abertas, inacabadas, sempre se fazendo” (CUNHA, 2007, p.78). Entretanto, vale ressaltar que o conhecimento científico é hegemônico, sendo um instrumento fundamental para a implantação de projetos neoextrativistas, que em sua essência, subjuga os conhecimentos locais usurpando das populações tradicionais, o que há de mais importante em suas vidas, o território. Nesse sentido, em entrevista realizada com o ex-presidente da associação dos usuários da Resex Caeté-Taperaçu, foi possível observar a partir da perspectiva de Quijano (2007) que o poder se estrutura nas relações de exploração/dominação/conflito que se caracteriza pela disputa do controle da autoridade, dentre outras coisas. Pois, esse entrevistado enfatizou que a atuação do ICMbio no território da Resex ocasiona vários conflitos entre os técnicos e a população tradicional, no que tange a elaboração e operacionalização das políticas públicas previstas no SNUC, estas relações tendem a ser hierárquicas (SILVA, 2018).
É importante enfatizar que apesar dos conflitos atravessados pelas diferenças de saberes apontados pelo entrevistado, há na sua fala um aprendizado político resultante dos embates em torno da conquista dos direitos sociais a que as políticas públicas são representativas, por atribuírem certa independência e dignidade as populações tradicionais. Pois, essas foram conseguidas pelos usuários da Resex, por serem moradores de uma Unidade de Conservação. Essa hegemonia do conhecimento científico deriva da colonialidade do saber (DUSSEL, 2005). Pois os conhecimentos tradicionais obedecem a lógicas, há regras, há formas de dedução e verificação, condicionantes que não os torna menos válido frente ao conhecimento científico. Conforme evidenciaram os antropólogos Evans-Pritchard e Claude Lévi-Strauss em suas pesquisas. Evans-Pritchard ao estudar a bruxaria e oráculos entre os azandes do Sudão, afirmou que as diferenças entre essas duas formas de conhecimento reside nas formas distintas de compreensão das premissas sobre o que existe no mundo. Enquanto Lévi-Strauss observa que “saber tradicional e conhecimento científico repousam ambos sobre as mesmas operações lógicas e, mais, respondem ao mesmo apetite de saber” (CUNHA, 2007, p.79). Portanto, o conhecimento tradicional se estrutura por meio de percepções e a ciência moderna usa conceitos. As populações tradicionais que habitam as Resex muitas vezes têm seus saberes marginalizados pelos experts que, acabam por perpetuar, a imposição de alguns grupos sobre os demais, como pode ser observado localmente na Resex Caeté-Taperaçu. Posto isto, nesse caso em especial, é claramente perceptível à imposição do conhecimento científico/estatal sobre os povos, o território, a natureza e as culturas, configurando propriamente a tripla dimensão da colonialidade: do poder, do saber e do ser (MIGNOLO, 2005). Apesar de haver espaços deliberativos para a elaboração de tais regras, muitas delas são impostas pelo ICMbio, como uma necessidade a preservação ambiental, porém não contemplam a questão social ligada a subsistência dos usuários da Resex. O Estado proíbe de retirar o recurso natural e não fornece subsídios econômicos para a manutenção da vida destas populações. Um exemplo recorrente na fala dos entrevistados refere-se ao extrativismo do caranguejo, os tiradores de caranguejo não recebem auxilio financeiro no período de proibição da retirada desses crustáceos, o que compromete a subsistência de grande parte dos usuários da Resex Caeté-Taperaçu (SILVA, 2018). Diante do exposto, Cunha (2007) observa que há iniciativas de parcerias entre o conhecimento científico e o conhecimento tradicional. Mais que, no entanto, tais arranjos não significam que devam ser considerados idênticos. Posto que o valor de ambos está propriamente na diferença. A alternativa para esse binarismo seria encontrar “meios institucionais adequados para, a um só tempo, preservar a vitalidade da produção do conhecimento tradicional, reconhecer e valorizar suas contribuições para o conhecimento científico” (CUNHA, 2007, p. 84). Mostrando as populações os benefícios que podem obter a partir da aplicabilidade de seus conhecimentos. Porém observamos localmente uma disputa de poder e do saber, principalmente no Conselho Deliberativo (CD) da Resex, que é presidido pelo ICMbio, e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na Resex. Nas reuniões que são convocadas pelo CD, para a deliberação de assuntos relacionados à gestão e manutenção do território, os comunitários muitas das vezes têm seus saberes silenciados pelos conhecimentos técnicos, apesar dessa prática hierárquica de imposição do conhecimento, essas populações desenvolvem várias estratégias para fazerem valer seu conhecimento do território, como por exemplo a delimitação dos locais de pesca (SILVA, 2018).
As articulações entre os atores para compor uma reivindicação coletiva são analisadas por Escobar (2005) na forma de uma rede de relações entre os agentes sociais constituinte da representação do território como espaço vivido, estruturante da vida cotidiana. Essas populações, ao lutarem pelo acesso as políticas públicas e pelo uso dos recursos naturais, aproximam-se dos discursos de igualdade e preservação ambiental propagado por movimentos ambientalistas. No entanto, não partem de uma concepção abstrata sobre a natureza, mas resultante do uso dos recursos naturais como fator de produção e meio de vida.
É certo que há muitos obstáculos nessa parceria entre saberes distintos e assimétricos, porém se não houver construção de novas instituições e relações horizontais com as populações tradicionais e sua pluralidade de saberes, a ciência dita moderna tende a perder oportunidades de criar novos horizontes de ressignificações de saberes (CUNHA, 2007).
Conclusiones:
Considerações Finais
A crítica ao totalitarismo da ciência moderna vem ganhando destaque nos debates acadêmicos, com contribuições fundamentais em diferentes ramos das ciências sociais, como os estudos feministas (LUGONES, 2014) e as contribuições dos estudos subalternos na América Latina (CORONIL, 2005; CASTRO-GÓMEZ, 2007; GUDYNAS, 2019). Essa ampla e diversificada perspectiva teórica compõem o que conhecemos como os estudos pós-colonial que muito vigor encontra em diversos campos, transpondo os muros das Universidades, refletindo as experiências das populações subalternas com o lugar (ESCOBAR, 2005).
Neste sentido, torna-se interessante as propostas de reflexão que os estudos pós-coloniais nos convidam a realizar. Dentre as quais, o exercício permanente de questionar o lugar privilegiado da fala dos agentes sociais que acabam por produzir relações assimétricas de saber. Para assim, obter o esclarecimento que, existe uma memória oficial hegemônica representada e legitimada pelo conhecimento científico e uma memória subalternizada daqueles que estão situados abaixo do modelo típico-ideal de modernidade, que fazem parte as populações tradicionais. Sendo assim, é pertinente verificar a vinculação dos discursos que constroem as políticas públicas para as Unidades de Conservação, pois tais discursos podem estar atrelados a uma memória a partir dos centros de poder.
Há ainda que se considerar um contexto mais amplo marcado por assimetrias entre o projeto desenvolvimentista e a preservação da natureza, que refleti diretamente nas formas de vida das populações tradicionais (PROSTI, 2018). Confluindo para a manutenção de estratégias desenvolvimentistas direcionadas a oprimi e subjugar essas populações. Para o rompimento dessa lógica perversa, é necessário o giro ecoterritorial (SVAMPA, 2019), assim como a crença em utopias para encontrar alternativas factíveis para “soluções ambientalmente duradouras, social e politicamente mais justas” (PROSTI, 2018, p. 340).
No caso da cogestão nas Reservas Extrativistas, frequentemente existem conflitos entre os atores locais e estatais, o que aponta para um embate de saber e reconhecimento. Tais políticas que balizam as regras de uso do território nas UCs não reconhecem, na prática, as relações de simbiose construídas pelas populações tradicionais com o território, tolhendo a autonomia destas, para pensar a organização do seu território com base nas suas experiências com o lugar (ESCOBAR, 2005).
Bibliografía:
Referências Bibliográficas
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). 2000. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Disponível em: <www.mma.gov.br/port/sbf/dap/doc/snuc.pdf>. Acesso em: 10/10/2015.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber cientifico. Conferencia realizada na reunião da SBPC, em Belém, 12/07/2007. REVISTA USP, São Paulo, n.75, p. 76-84, setembro/novembro 2007.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prologo: Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 9-23.
CORONIL, Fernando. Natureza do pós-colonialismo: do eurocentrismo ao globocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: CLACSO, 2005. pp. 50-62.
DUSSEL, E. 2005. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: E. LANDER (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, CLACSO, p. 55-70.
ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento. IN: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americana. CLACSO, 2005.
GUDYNAS, Eduardo. Las narrativas que construyen un sentido comun extractivista. In: CASTRO, Edna (Org.). Pensamento crítico latino-americano. São Paulo: Annablume: 2019. pp. 109-129.
GONDIM, N. A invenção da Amazônia. Manaus:Ed. Valer, 2007, 2ª.ed.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Cia. Da Letras: São Paulo, 2018.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 729 p. (Palavras dadas, A fumaça do metal, A queda do Céu).
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 935-952, setembro-dezembro/2014.
LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. IN: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.
MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: CLACSO, 2005. pp. 33-49.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Em: Lander, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, CLACSO. 2005.
PROST, C. Reservas extrativistas marinhas: avanço ou retrocesso?. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 48, Edição especial: 30 Anos do Legado de Chico Mendes, p. 321-342, novembro 2018.
SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina. São Paulo: Elefante, 2019.
SANT’ANNA, Renata de. Sistema Nacional de Unidades de Conservação: reflexões antropológicas sobre a elaboração de uma lei ambiental. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2003.
SILVA, T. I. Conflitos sociais e partilha de políticas públicas: a atuação da Associação dos Usuários da Resex Marinha Caeté-Taperaçu. Dissertação (Mestrado) –Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.
Palabras clave:
Modernidade; Neoextrativismo; Populações Tradicionais; Conhecimento Tradicional; Conhecimento Científico; Reserva Extrativista.