Resumen de la Ponencia:
Desde a implantação da República, final do século XIX, o Brasil, enquanto ideia de nação, tem se proposto a “entrar na modernidade”. Muitas vezes confundindo e se debatendo com vertentes do que seria ser moderno. A higienização e reformas urbanas, a ideia eugenista de um branqueamento da população pós-escravagismo e a industrialização baseada na imigração europeia conviviam com a permanência de um país tradicional, alicerçado numa cultura rural e popular. Para efeito de análise de conjuntura, podemos ter o recorte temporal de 1952 a 1980. Nessa temporalidade há no Brasil uma intensa urbanização e consequentemente incentivos à migração rural-urbana para as médias e grandes cidades. Alia-se a esse processo o desenvolvimentismo, política econômica que visava acelerar a industrialização nas cidades em detrimento das atividades rurais. Inicialmente com o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), com o lema “50 anos em 5”, o qual prometia fazer 50 anos de progresso em 5 de gestão e posteriormente com os governos militares e os PNDs I e II (Plano Nacional de Desenvolvimento), respectivamente lançados em 1972 e 1975. Passadas décadas, a modernização ganhou forças com esses desenvolvimentismos, mas as características rurais continuaram sendo parte da configuração da identidade e cultura brasileira. Ou seja, esperava-se a europeização do brasileiro, mas, de certo modo, ocorreu a “caipirização do europeu”. As artes, a literatura e o cinema contribuíram muito para a demonstração dessa cultura no imaginário social, desde o Caipira picando fumo da imagem de Almeida Junior (1893), passando por Cornélio Pires (1921) e Monteiro Lobato (1923), pelos estudos de Antonio Candido (1957) até a filmografia de Mazzaropi. Essas mídias se debruçaram em representações e estereótipos do rural, do caipira e do popular. E a esse imaginário acompanhou uma certa preservação da cultura, a qual coexiste com o dito moderno, e muitas vezes até soa como resistência à modernização. Esse texto tem como objetivo analisar como a modernidade urbano-industrial brasileira se manifestou de forma entrelaçada por muitos elementos da ruralidade tradicional. Tenta-se demonstrar tal efeito a partir dos filmes de Amácio Mazzaropi. O cinema mazzaropiano, com o gênero da comédia e o estereótipo do caipira/popular, contribui para refletirmos sobre essas culturas híbridas. Em seus filmes, na segunda metade do século XX, aparece, constantemente, uma relação antagônica entre o código de comportamento do urbano com a astúcia do popular. Em pleno Brasil desenvolvimentista, temos o moderno convivendo com o tradicional, isso porque a dinâmica do espaço não é a mesma dinâmica do tempo. Para tanto, o procedimento será a análise fílmica das narrativas e das representações sociais. O amparo é o método demonstrado por Vanoye e Goliot Lété (1994): desconstrução, isto é, a descrição fílmica, e reconstrução, esta sendo a interpretação. Isso feito sob a luz das representações sociais.
Introducción:
Mazzaropi interpretava um caipira. Essa afirmação não refere ao termo “caipira” de maneira ortodoxa, o qual seria válido apenas para a Paulistânea[1], e sim podendo ser pensando de maneira associativa como sinônimos jocosos a jeca, jacu, jacu do mato, jacu rabudo, caapora, capial, capial do mato, caboclo, matuto, entre outros.
Uma premissa hipotética é se os filmes de Mazzaropi[2] expressam uma representação, um imaginário do rural/popular. O Jeca de Mazzaropi pode ser o arquétipo de um simulacro de várias personagens cotidianas. Por isso mesmo, o popular associado ao rural. Isso se deve ao fato da pressuposição de que, ao procurar esse tipo, com características similares, encontra-o na contemporaneidade. Mazzaropi buscou interpretar “[...] um simples caboclo entre os milhões que vivem em todo interior brasileiro” (Matos, 2010, p. 92).
Partindo da premissa, hipoteticamente descrita acima, há a presunção que esse imaginário, despertado pelos filmes, fora acompanhado por uma certa preservação dessa cultura, a qual coexiste com o dito moderno, e muitas vezes até soa como resistência à modernização.
Segundo o próprio Mazzaropi (Matos, 2010), seu “Jeca” foi criado utilizando-se dos adereços cômicos em seu corpo (jeito de se vestir, de andar e de falar) para garantir uma identidade ao personagem que fosse similar a sujeitos na vida cotidiana, causando assim um contraste entre costumes e comportamentos da cultura etiquetal urbana e elitizada com a astúcia e deboche da cultura popular e rural.
Denota de forma crítica o embate entre a cultura popular e a cultura dominante, entre os códigos de etiqueta que regem o comportamento da elite e os desajustes de comportamento dos mais pobres urbanos e dos moradores rurais. E são exatamente essas diferenças de costumes no cotidiano que provocam o riso.
Em seus filmes, representou o cotidiano popular, quer fosse rural, urbano ou às vezes hibridados[3]. Somente em um, dos trinta e dois filmes, Mazzaropi representa um burguês de classe média. Trata-se do filme O puritano da Rua Augusta. Nos demais, seus personagens são sempre pobres, morador de vilas rurais, de bairros urbanos, de cortiços, morador de rua ou andarilho; os quais eram: barbeiro, camponês, operário, soldado raso, chofer, jardineiro, feirante, zelador, vendedor ambulante, coletor de lixo etc.
E, nesses filmes, por meio da astúcia, os personagens driblam a hierarquia e se impõem sobre o domínio dos mais fortes. Os enredos e argumentos, salvo algumas variações, giram em torno de uma opressão destinada ao mais fraco, quer seja advinda de latifundiários, capitalistas, colonialistas, burocratas, patrão, polícia, bandido, ou mesmo do Estado. Esse mais fraco consegue vencer o mais forte. Como se a justiça, no final das contas, fosse feita.
Quisera fosse a vitória do oprimido, já que no fim “o bem vence o mal”. Desse modo, os personagens mazzaropianos podem ser vistos como heróis. Não o herói mítico dotado de poderes e/ou literalmente associado à guerra. Mas, ainda assim, um herói, pois, no dizer de Joseph Campbell, “o herói tem mil faces”. Assim sendo,
[...] o guerreiro é apenas uma das faces do herói, que pode ser pacifista, materno, peregrino, louco, andarilho, eremita, inventor, enfermeiro, libertador, artista, lunático, amante, palhaço, rei, vítima, escravo, operário, rebelde, aventureiro, um fracasso trágico, covarde, santo, monstro etc. As muitas possibilidades criativas da forma ultrapassam seu potencial de excesso (Vogler, 1998, p. 15).
Aqui, uma proposição. Talvez por isso os filmes de Mazzaropi foram e ainda são tão assistidos. Mazzaropi encena aquilo que o espectador quer fazer, mas não pode. Nos anos 1960-70, seus filmes eram populares no cinema, alguns deles chegaram a ter plateia de 8 milhões espalhados pelo Brasil, e, nos anos 1980 emplacaram sucessos na TV aberta[4]. Atualmente são vistos pelo YouTube (plataforma de compartilhamento de vídeos na internet). Lá, dezenas de seus filmes estão disponíveis por completo. Ao fazer um balanço disso, é perceptível que ainda são populares. Em dois canais principais, Canal Museu Mazzaropi e Canal Tela Nacional, respectivamente com 435 e 189 mil inscritos, alguns dos filmes ali dispostos têm mais de 6 milhões de visualizações, médias de 26, 25 mil curtidas e 706 comentários por filme.
Este texto analisa a obra fílmica do ator, diretor e produtor Amácio Mazzaropi, tendo como pano de fundo a encenação astuciosa do cotidiano, com o intuito de observar se o cinema, nesse caso, serviu para criar representações sociais da cultura rural/popular e ao mesmo tempo legitimar essa cultura no Brasil.
Para isso, o amparo é o método demonstrado por Vanoye e Goliot Lété (1994): desconstrução, isto é, a descrição fílmica, e reconstrução, esta sendo a interpretação. Isso feito sob a luz das representações sociais. A partir de Moscovici, portanto, é possível encontrar as representações, as quais, mesmo sendo individuais nos personagens fílmicos, se fazem sociais, porque carregam consigo elementos psicossociológicos manifestados na alteridade. Moscovici (1978 como citado em Almeida, 2019, p. 29)
[...] propõe a análise dos processos através dos quais os indivíduos, em interação social, constroem teorias sobre os objetos sociais que tornam viáveis a comunicação e a organização dos comportamentos. Num sentido mais amplo, as representações sociais alimentam-se de [...] grandes eixos culturais, [...] de experiências coletivas e das comunicações cotidianas.
É concebido que os filmes permitem vivenciar a capacidade de evocar sentimentos e representações sociais, pois potencializam questões em torno da vida, do cotidiano, remetem a ideias de como estar e se relacionar com os outros, as alteridades, e, desse modo, expõem e elucubram os sentidos, as representações sociais, as memórias e as experiências individuais e coletivas (Triana & Gomes, 2016).
[1] Para o historiador Alfredo Ellis Junior, esse território compreendia os Estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás (Ellis Junior, 1950 como citado em Candido, 1964).
[2] Embora Amácio Mazzaropi não seja o diretor de todos os filmes em que participa, popularmente todos eles são chamados de “Filmes do Mazzaropi”, confundindo até mesmo os “Jecas personagens” com sua pessoa, assim como acontecia com “Filmes do Chaplin”, em que, para além do personagem Carlitos, Charles Chaplin representou tantos outros, e “Filmes do Zé do Caixão”, quando este era um dos personagens de José Mojica Marins.
[3] O conceito de hibridismo é sugerido para dar conta de todos os outros termos que sugerem misturas, tais como criolagem, mestiçagem, sincretismo, fusão, entre outros, entendendo que essas misturas culturais ocorrem com conflitos e contradições, porque, como já dito anteriormente, a dinâmica do espaço nem sempre é a mesma dinâmica do tempo. Daí advém a ideia de obliquidade, e por isso a superação da disputa binária maniqueísta entre dois termos: rural-urbano, por exemplo. Canclini (2019, p. XIX) definiu hibridismo como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.
[4] Essas informações de público, renda e audiência dos filmes estão nos Extras de alguns DVDs.
Desarrollo:
A coexistência de diferentes dinâmicas do espaço-tempo
A intenção aqui é compreender o contexto histórico que leva ao período de produção das obras em que Mazzaropi participa (1952-1980), ressaltando que há nesse contexto a busca por uma ideia de modernidade. Modernidade essa pautada na industrialização via programas desenvolvimentistas, que eram majoritariamente urbanos. Mas, ainda assim, os filmes de Mazzaropi passaram a ilustrar um país tradicional calcado na agricultura familiar e na vida rural, entrelaçada com elementos citadinos.
Pensando na relação rural/urbana, José de Souza Martins aponta que
[...] por sua vez, cada qual contém outras tantas diferenciações, não raro imbricando-se: o urbano em sociedades lentas, como a nossa, ainda impregnado de modos de ser, de pensar e de relacionar-se que uma análise típico-ideal confinaria no rural; o rural, impregnado de antecipações do que é propriamente urbano. O rural e a ruralidade como antecipações críticas do mutiladamente urbano que nele apontam o possível e a terceira dimensão do tempo histórico (Martins, 2011, p. 5).
Fato é que desde a implantação da República, no final do século XIX, o Brasil, enquanto ideia de nação, tem se proposto a “entrar na modernidade”. Muitas vezes, inclusive, confundindo e se debatendo com diferentes vertentes do que seria ser moderno (Ribeiro & Pechman, 2015).
Factualmente é sabido que, nas primeiras décadas do século XX, a higienização e reformas urbanas, a ideia eugenista de um possível branqueamento da população pós-escravagismo e a industrialização incipientemente baseada na imigração europeia conviviam com a permanência de um país camponês tradicional, alicerçado numa cultura rural e popular.
Canclini (2019, p. 205) aponta que “o popular é nessa história o excluído. Aqueles que não tem patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido ou conservado. [...] o popular costuma ser associado ao pré-moderno e ao subsidiário”, e, assim sendo, mesmo os imigrantes que chegavam ao Brasil e permaneciam no espaço urbano, ficavam nessa condição. José Murilo de Carvalho demonstra que, nas duas primeiras décadas do século XX, entraram no Brasil cerca de 3 milhões de europeus.
Muitos imigrantes dirigiam-se inicialmente para as fazendas de café [...] Mas um grande número acabava se fixando na capital, empregados na indústria ou no comércio. [...] Em 1920 havia no Brasil todo 275.512 operários industriais urbanos. Era uma classe operário ainda pequena e de formação recente. Mesmo assim, já apresentava alguma diversidade social [...] (Carvalho, 2003, p. 58).
Nos anos 1930, o governo de Getúlio Vargas e suas políticas de consolidação de leis trabalhistas, exclusivamente urbanas, de acesso a moradias populares na cidade e um tímido início de infraestrutura para a industrialização fizeram com que milhares de pessoas saíssem do campo rumo às cidades[1] (Goldfarb, 2011).
Há, portanto, nessa temporalidade, no Brasil uma intensa onda de urbanização e consequentemente incentivos à migração rural-urbana para as médias e grandes cidades. Acelera-se esse processo com os desenvolvimentismos, política econômica que visava fomentar a industrialização nas cidades em detrimento das atividades rurais. Inicialmente com o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), com o lema “50 anos em 5”[2], o qual prometia fazer 50 anos de progresso em 5 de gestão e posteriormente com os governos militares e os PNDs I e II (Plano Nacional de Desenvolvimento), respectivamente lançados em 1972 e 1975.
Fato é que “[...] a população urbana passou de aproximadamente 36% do total em 1950 para 55 % em 1970 e 76% em 1980” (Goldfarb, 2011, p. 67).
O projeto de modernização ganhou forças com os planos desenvolvimentistas dos anos 1950-70, mas as características rurais continuaram sendo parte da configuração da identidade e cultura brasileira. Ou seja, esperava-se a europeização do brasileiro, mas, de certo modo, ocorreu, em partes, a “caipirização do europeu”.
Para José de Souza Martins,
[...] essa interpretação de cunho positivista reinstaura o escalonamento do processo histórico, relegando ao passado e ao residual aquilo que supostamente não faria parte do tempo da modernidade, como o tradicionalismo dos pobres migrados para a cidade, a cultura popular e a própria pobreza (Martins, 2012, p. 17).
Por isso, é necessário entender as relações moderno/tradicional, rural/urbano, coexistindo no mesmo espaço-tempo para escaparmos dessas concepções dualistas. Por exemplo, mesmo em bairros urbanos existentes em Ponta Grossa, Estado do Paraná, são perceptíveis traços de uma cultura rural.
É possível encontrar muitos elementos da cotidianidade anteriormente vividas no espaço rural. É comum, por exemplo, ver na periferia urbana as casas cercadas por quintais com alguma plantação e criação de animais, o que não significa, simplesmente, uma estratégia de sobrevivência, mas sim práticas que derrubaram as fronteiras entre o rural e o urbano (Silva, 2021, p. 45)
Dinâmicas do rural: migrações e estereótipos
Emprestando o termo de Eunice Durhan “dinâmicas da cultura”, este tópico visa realizar um apanhado histórico da discriminação do rural. Para tanto, o embasamento vem de Norbert Elias e Georges Duby, ambos marcam essa característica na temporalidade de transição medieval-moderno. Este pela emergência da burguesia urbana e aquele pela diferenciação dos costumes cotidianos.
Desde o advento do Renascimento das cidades e do comércio a partir dos séculos XIII-XIV, as cidades passaram a ser consideradas espaço privilegiado de progresso e bem-estar, em oposição ao campo que passou a ser o local do atraso e das mazelas sociais. Isso se deu após a ascensão do capitalismo comercial com as intensas migrações do campo para a cidade. Esse processo marca a transição da sociedade rural para a urbana na era da história moderna. E, inevitavelmente, junto a isso advém o seu subproduto: a discriminação do rural. Isso porque, naquele momento, a experiência rural lembrava a servidão feudal, e o trabalho urbano, por sua vez, gerava esperança de independência.
Tal discriminação é perceptível já em Erasmo de Rotterdam, em seus estudos financiados por mecenas urbanos e elitistas. Erasmo cria um manual de condutas que tem por objetivo “educar as crianças” adestrando os seus modos em contraposição ao do camponês. O De civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças) é para Norbert Elias (1994) um marco na história dos costumes, pois nele se apresenta o comportamento como forma de hierarquia social.
A partir daí, um salto para o Brasil e as diferentes configurações do rural/popular a partir do imaginário criado por representações midiáticas do caipira e suas variações.
Vale ressaltar as diferenças entre a cultura rural caipira, e, portanto, popular, e a cultura sertaneja urbana, cultura de massa (Bosi, 1973). Esta, recheada de elementos massificados que destoam daquela. Como diria a canção de Zé Mulato e Cassiano: “se me chamam de caipira, fico até agradecido, pois falando sertanejo posso ser confundido”.
É muito comum nos depararmos com termos pejorativos para definir o rural, e esses adjetivos se estendem, muitas vezes, ao popular. Caipira, caapora, caipora, capial, capial do mato, caboclo, camponês, jeca, jacu, jacu do mato, jacu rabudo, entre outros. Chamam de Jeca[3] aquele que é diferente do citadino moderno, a uma pessoa geralmente da roça e que tem um comportamento tímido perante os demais.
O estudioso das ciências naturais francês August de Saint-Hilaire esteve no Brasil no início do século XIX e se referia ao caipira como “homem do mato”. Na mesma época, surge a definição etimológica do historiador Baptista Caetano como: “cai” (queimada) e “pir” (pele), isto é, indivíduo de pele queimada (Paiva, 2015, p. 1). E, ainda no século seguinte, temos a publicação do dicionário folclórico de Luís de Câmara Cascudo (1954) com as expressões “caá” (mato) “pora” (morador), ou seja, aquele que mora no mato.
Entretanto o caipira/popular/rural e suas sinonímias são dialéticas. A configuração dessa cultura, que aqui passamos a chamar de caipira, teve alterações de sentido ao longo do processo histórico. O caipira bem como sua cultura sofrem uma série de transformações. Passa da condição de homem do mato (de forma pejorativa), rude, primitivo e brutal como teria descrito Saint-Hilaire, pela conotação Lobatiana de preguiçoso e doentio para uma caracterização de contestação a partir do deboche e da astúcia mazzaropiana.
Mazzaropi definia o seu caipira como
[...] um homem comum, inteligente, mas sem preparo, alguém muito vivo, malicioso, bom chefe de família. A única coisa diferente é que ele não teve preparo, então tem aquele linguajar típico, mas no fundo, no fundo, ele pode dar lições boas a muita gente da cidade (Matos, 2010, p. 93).
Segundo Marcela Matos (2010, p. 94), “o Jeca de Mazzaropi não se limitava aos traços estereotipados que o senso comum atribui ao caipira, imaginando-o como um característico frequentador de festa de São João”.
As artes, a literatura e o cinema contribuem muito para a criação de uma imagem. A demonstração da cultura rural/caipira/popular, por exemplo, foi difundida no imaginário social por inúmeras dessas mídias. Desde o Caipira picando fumo da clássica imagem de Almeida Junior (1893), passando pelas literaturas de Cornélio Pires (1921) e Monteiro Lobato (1923), pelos estudos acadêmicos de Antonio Candido (1957) até a filmografia de Mazzaropi. Todos eles se debruçaram em representações e estereótipos do rural, do caipira e do popular.
Mazzaropi, entretanto, cria um caipira que ia além das definições reducionistas descritas acima. Também não era o mesmo caipira picando fumo do quadro de Almeida Junior (1893) nem o mesmo de Cornélio Pires (1921), embora se inspirasse nele. Passava ao largo do Jeca pejorativamente criado por Monteiro Lobato (1923) e nem mesmo era o caipira de Antonio Candido (1957). Era um caipira dele, do Mazzaropi. O Jeca de Mazzaropi é preguiçoso, mas tem argumento para sê-lo. Assim, contrapõem-se a racionalidade urbana do trabalho.
Apresenta, portanto, uma contradição, porque se faz resistente à política de desenvolvimentismo aplicada naquele contexto no Brasil. Logo, como os filmes do Mazzaropi tornaram-se populares, aquele Brasil rural, agrícola e caipira convivia negativamente com a modernização, industrialização e urbanização intensas propostas pelo governo federal.
E é neste sentido que se pode fazer análise dos filmes mazzaropianos, buscando compreender as relações das diferentes formas de organização que estavam presentes no mundo rural-urbano do contexto (1952-1980), muitas vezes hibridados, ou seja, elementos rurais dentro do espaço urbano e urbanidades dentro do espaço rural. Então, mesmo os filmes sendo representações do espaço e da realidade, ainda assim é possível destacar elementos sócio-históricos e culturais tanto na forma do filme (gênero, direção, figurino, cenário etc.) quanto no conteúdo (enredo, linguagem, expressões, musicalidade, costumes etc.).
Astúcia e resistência
A astúcia é um conceito histórico que se manifesta no cotidiano. Com base nas qualidades da deusa grega Métis, ela pode ser definida como
[...] uma forma de inteligência sempre “mergulhada numa prática” onde se combinam “o faro, a sagacidade, a previsão, a flexibilidade de espírito, a finta, a esperteza, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida (Certeau, 1994, p. 156 como citado em Duran, 2007, p. 124).
Nos filmes de Mazzaropi, somam-se a isso: a constante ironia, o resmungo, o deboche, o riso, os trejeitos, o descaso, o desdém. Chamam isso de “astúcias sutis” e “táticas de resistência”. Nos seus desfechos fílmicos, essa prática aparece como regra. O mais rico/poderoso submete-se ao mais pobre/subalterno. Mazzaropi representou seus personagens dessa forma, os quais, mesmo sendo pobres e ignorantes, ainda assim ridicularizam os mais ricos e cultos. Certeau (2014, p. 95) afirma ainda que “a astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes apenas ela, como ‘último recurso’: ‘Quanto mais fracas as forças submetidas à direção estratégica, tanto mais esta estará sujeita à astúcia’”.
Para o pesquisador Laurent Vidal (2018, p. 41), “Certeau sugere prestar atenção às astúcias, espertezas e outras táticas que os homens ordinários mobilizam para ‘fazer uma bricolagem[4]’ entre elementos da cultura dominante e aspectos das várias culturas dominadas”.
Dessa forma, os “Jecas” de Mazzaropi vão contestando a modernização. Personagem carregado de signos: geralmente acompanhado de algum animal (burro, cachorro, cavalo); com o carro antigo, carroça ou caminhão, suas roupas (chapéu, calça meia canela e amarrada sobre a barriga, com os pés descalços ou de botinas), seu jeito de andar, de falar, de se comportar tipicamente caipira; contrapõe-se aos códigos etiquetais — nega-os em algumas vezes e em outras os satiriza.
Marcela Matos (2010, p. 9), em seu livro Sai da Frente, insere uma dedicatória a esse cineasta que resume bem o seu tom astuto. Diz ela: “Ao Jeca de Mazzaropi, que nos ensinou a ter sempre a última palavra, nem que seja um resmungo ou um deboche”. É comum, por exemplo, ver cenas em seus filmes em que, ao ser inquirido por alguma autoridade ou pessoa elitizada, seu comportamento seja o de escárnio, de desprezo. Olha para o lado ignorando-a, e muitas vezes esse desprezo vem acompanhado de uma cuspida ou escarrada, uma fungada para ajeitar o ranho do nariz, uma chupada nos dentes como quem tira algum resto de alimento à força, ou um riso espontâneo.
O riso e o deboche como forma de contestação
Como dito acima, nos filmes de Mazzaropi, é o choque de culturas, manifestado nos costumes, que suscita o riso. Existe ali contradição e negativismo, porque a dinâmica do espaço nem sempre acompanha a dinâmica do tempo. Segundo Vladimir Propp (1993, p. 175),
[...] podemos expressar a fórmula geral da teoria do cômico nestes termos: nós rimos quando em nossa consciência os princípios positivos do homem são obscurecidos pela descoberta repentina de defeitos ocultos, que se revelam por trás dos invólucros dos dados físicos, exteriores.
Entretanto na pré-história e na antiguidade já se praticava o riso. E nesses contextos o riso e o sério eram equivalentes em valor moral.
Um exemplo dessa questão aparece no filme francês A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud, de 1981. O filme retrata os primórdios da pré-história e aparece pela primeira vez o riso como prática humana. Numa cena, quando um deles está dormindo, encostado numa árvore, um outro que está em cima dessa mesma árvore solta uma pedra em sua cabeça. Todos riem muito, inclusive o que foi atingido e está sangrando. Ninguém faz juízo moral do ato nem do consequente riso (A Guerra do Fogo, 1981. Cena: 1h, 19’ 33” a 1h, 20’ 05”).
Isso é nítido, também, nos estilos do teatro grego: tragédia e comédia. Ambas as formas tinham funções pedagógicas. Mas se uma ensinava pela dor, pelo sofrimento, a outra educava pelo riso, pela descontração; e, nas cerimônias romanas, as quais eram igualmente celebradas, sem separação entre riso e choro (Bakhtin, 2010).
O riso e o deboche são formas de manifestação popular de contestação à dominação. Bakhtin (2010, p. 71) aponta que
[...] o riso, separado na Idade Média do culto e da concepção do mundo oficiais, formou seu próprio ninho não-oficial, mas quase legal, ao abrigo de cada uma das festas que, além do seu aspecto oficial, religioso e estatal, possuía um segundo aspecto popular, carnavalesco, público, cujos princípios organizadores eram o riso e o baixo material e corporal.
Consta então que, somente no período medieval, com a moralização católica, o riso passou a ser visto de forma maniqueísta. Entretanto isso não impediu as pessoas de rirem, muito menos de debaterem sobre ele. Umberto Eco, em seu livro O Nome da Rosa, narra inúmeras argumentações a respeito do riso entre seus personagens.
Desse modo, historiciza-se o riso e se cria uma lógica de pensamento: que o riso perpassa como um trunfo das expressões populares. Passa das proibições morais impostas pela Igreja Católica e vai para as manifestações carnavalescas medievais/feudais; chega ao Renascimento com Rabelais (Pantagruel e Gargântua), Bocaccio (Decameron), Cervantes (Dom Quixote) e se estende até a dramaturgia shakespeareana. Com essa adoção do cômico pela literatura, o riso se popularizou ainda mais, mas nem por isso passou a ser aceito integralmente pelas elites econômica e pensante das sociedades que não eram capazes de compreender o valor do riso na cultura popular (Bakhtin, 2010).
Segundo James Scott (como citado em Monsma, 2000, p. 103),
[...] as possibilidades para a ação política dos oprimidos são quase sempre mais limitadas que seus pensamentos e suas fantasias. Por isso, sempre há pessoas que imaginam inversões ou negações da ordem social vigente, e muito da cultura popular reflete esse imaginário em uma forma semioculta ou disfarçada. Portanto, ele defende o estudo das canções, das rimas, dos desenhos satíricos, dos pasquins, dos boatos, das piadas, dos contos e da religião popular para ganhar acesso à transcrição escondida.
Assim, o riso sobreviveu. O advento do cinematógrafo vai ser um aliado nesse sentido. O cinema, ao desenvolver o gênero da comédia em filmes, cria uma fórmula de encenação e atinge cada vez mais pessoas pelo riso. Mazzaropi se encaixa perfeitamente nessa fórmula.
[1] Há de se considerar outros fatores que levam à migração rural-urbana, tais como as secas do Nordeste, a mecanização do campo e a falta de políticas públicas para regulamentação da terra para os pequenos agricultores (Fausto, 1994; CEM, 1983).
[2] Há outros slogans dessa conjuntura desenvolvimentista que são passíveis de estudos, tais como: “Ninguém segura esse país”; “Pra frente Brasil”; O Brasil é o país do futuro”; “Quem não vive para servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil”; “O Brasil é feito por nós”; “Trabalha e se agiganta” etc.
[3] Como segundadefinição para o verbete Jeca, o Dicionário Michaelis traz o seguinte: “Diz-sede pessoa que revela mau gosto ou falta de requinte; brega, cafona”.
[4] Exemplos de astúcias com bricolagens fáceis de compreender são a criatividade e a inventividade das pessoas comuns nas artes de fazer, de morar, cozinhar. Ver livros A invenção do cotidiano vol. 1: as artes de fazer e vol. 2: morar, cozinhar.
Conclusiones:
Ao realizar o Estado do Conhecimento[1], entendendo este como: “[...] identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção científica de uma determinada área, em um determinado espaço-tempo, congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica” (Morisoni & Fernandes, 2014, p. 155).
Percebe-se que existem muitos estudos acadêmicos (dissertações, teses e artigos) sobre a filmografia de Mazzaropi. Dentro das mais diversas áreas do conhecimento e com múltiplas possibilidades de abordagens temáticas. Não poderia ser diferente. Amácio Mazzaropi atuou em 32 filmes entre 1952 e 1980. Em alguns desses filmes, além de ator/cantor, ele foi o diretor e, ademais, também foi produtor de outros tantos deles.
Em todos colocou seu personagem, o qual, embora levasse diferentes nomes (Izidoro, Arlindo, Zacarias, Zé, Gumercindo, Aparicio, Candinho, Betão, Inácio, Fofuca, Mané, Bernardino, Chico, entre outros), conservava as características do Jeca caipira/popular.
É possível, portanto, fazer estudos sócio-históricos-culturais a partir de seus filmes. Se considerarmos o cinema como espaço de representação e como representação do espaço, perceberemos que Mazzaropi inseriu o Brasil contrastado nas telas de cinema. As características rurais e urbanas, cultas e populares aparecem nos filmes de forma bastante entrelaçadas.
[1] Não foi utilizado nenhum aplicativo para essa prática. Apenas seguiram-se os passos propostos pelas autoras Morisoni e Fernandes (2014), definição do corpus (Capes e BDTD); busca com os termos “Filmes de Mazzaropi” e “Mazzaropi”; leitura flutuantes para identificação dos textos; catalogação e análise buscando as palavras-chave cotidiano, astúcia, representações sociais. Também foram observados os resumos, objetivos e metodologias empregadas.
Bibliografía:
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Palabras clave:
Desenvolvimentismo; Modernidade; Tradição; Filmografia; Mazzaropi.