Resumen de la Ponencia:
O presente trabalho é resultante de uma investigação piloto realizada para monitoramento de perfis online hospedados no Facebook e criados por indígenas habitantes da aldeia Kayapó de A’Ukre, localizada no sudeste do estado brasileiro do Pará. “Piloto” porque, apesar de ser uma derivação de estudo anterior, teve caráter experimental e pretendeu superar as configurações de segurança implementadas pelo Facebook — às quais impediram o levantamento automatizado de dados, identificando no processo falhas na coleta, bem como possíveis saídas que auxiliassem aquela coleta sem uso de aparatos automatizados. O tema com o qual nos ocupamos é relevante uma vez que a chegada da internet nas aldeias apoia a nossa pesquisa principal denominada “Os Mundos da Mídia dos Kayapó: da estética embutida à soberania da mídia”. Para fundamentar o que se lê na sequência, foram analisadas 432 postagens retroativas, coletadas no ano de 2020, com a autorização dos Caciques Krwyt, Kakêt e Nrenhkemoro e o consentimento de todos os sujeitos pesquisados.
Introducción:
Da metodologia
Começamos pela apresentação do ferramental metodológico porque é ele um fundamento crucial da pesquisa. As escolhas metodológicas representam um modo de estar diante do fenômeno, determinando, em alguma medida, o fenômeno ele mesmo. Então, antes do início da coleta, deitamos nossa atenção sobre a arquitetura de uma metodologia que previu a criação de planilhas classificatórias para as postagens, com grid subdividido por tipologias que nos auxiliasse na localização e identificação de todos os elementos visuais. Foi criado um livro de códigos, incluindo conteúdo e comentários. Os códigos das entradas foram numerados e a planilha foi dividida em "livro de códigos" e "dados"; sendo o “livro de códigos” um manual de consulta e a aba “dados” utilizada para o preenchimento efetivo, qual seja a imagem captada. Cada linha preenchida na tabela correspondeu a uma captura de tela e, para tanto, definiu-se um sistema único de padronização de ID/armazenamento. Os principais tópicos de pesquisa monitorados foram a formação de identidade; expressão de identidade (etnia/raça, gênero, classe, orientação sexual, região, religião, tendência de assuntos); discurso de ódio; propaganda política; notícias falsas; formação de redes; ativismo social; consumismo; frequência de atividade online; estudos de conversação (quem fala com quem e em quais circunstâncias). A investigação esteve organizada em estudos de difusão de informação (1); estudos de conversação (2) e estudos de sociabilidade (3). Os marcadores, por sua vez, surgiram a partir da observação. A perspectiva da abordagem levou em consideração a representação do eu no ciberespaço (análise semiótica); a representação textual e gráfica no perfil e as postagens representativas: imagens, músicas, textos etc. Observou-se como a estrutura da rede tem influência sobre os processos de difusão de informações; o processo de conversação entre o grupo analisado; e se as relações online reverberam nas relações offline.
Durante as primeiras semanas das pesquisas online com os Kayapós, a coleta resultou insatisfatória devido às barreiras causadas pela pandemia do novo coronavírus, o que obrigou o retorno dos indígenas para as aldeias, em razão da determinação de quarentena. Naquele período, lideranças indígenas fizeram chamadas para que os indígenas que estivessem nas cidades retornassem para suas aldeias até que fosse seguro o retorno às atividades externas. O fenômeno nos levou ao recálculo da estratégia de coleta, motivo pelo qual nos decidimos pela coleta de postagens ulteriores, ou seja, de janeiro de 2019 a julho de 2020.
Sobre a análise
As postagens foram classificadas em razão dos seus formatos elementares — porque imediatamente identificáveis, a maneira de texto (ou linguagem verbal) e imagem (ou linguagem visual). Também nossa análise manteve a classificação inicial, dedicando-se à leitura semiótica do texto (1); à leitura semiótica da imagem (2) e/ou à leitura semiótica do fenômeno “postagem”, a partir daquelas duas leituras anteriores (3). Dizemos “e/ou” porque, de acordo com os recursos compartilhados com o usuário pela rede social digital Facebook, as linguagens verbal e visual, não raras vezes, podem ser coincidentes. E podem ser coincidentes por haver a possibilidade de alterar a tipografia dos caracteres, a exemplo da sua cor, da forma de apresentação da fonte (se itálico, negrito e/ou sublinhado) e do tamanho (caixa-alta ou caixa-baixa); além a oportunidade dada aos usuários para lançar mão de fotos, vídeos, emojis e combinações gráficas variadas, criando, ao seu modo, uma tessitura dialógica verbovocovisual. Cada uma das postagens foi, finalmente, tornada um conjunto de informações sistematizadas neste capítulo. Ao nos referirmos ao sujeito pesquisado, faremos uso do termo “dono do perfil” e os sujeitos interagentes serão chamados “interlocutores” quando não apresentados desde suas características imediatamente apreensíveis, a exemplo de “mulher adulta”.
Novos-velhos códigos
De acordo com Massimo Di Felice e Eliete Pereira, no artigo Formas Comunicativas do Habitar Indígena: a digitalização da floresta e o net-ativismo no Brasil, as experiências de digitalização dos territórios onde vivem os povos da floresta deve culminar com um tipo de ecologia que reúne “(...) diversos elementos humanos, tecnológicos, vegetais, animais, para além dos seus limites [físicos] e em direção a um devir informativo” (DI FELICE; PEREIRA, 2017, p. 61). Querem dizer os autores que a “condição habitativa” dos indígenas pode, de algum modo, descobrir-se replicada no uso feito das redes sociais digitais; configurando-se, assim, com um modo particular de compartilhamento da vida pessoal e da vida em comunidade. “Vida pessoal” e “vida em comunidade” que, conforme sabemos, estão tantas vezes imiscuídas. Eis um conflito contra o qual esbarramos na análise que se segue porque, ao contrário daquilo que presenciamos quando observamos não indígenas — quando o ciberespaço é uma extensão natural da sociedade, para as comunidades tradicionais se trata ainda de uma “ferramenta” e não de um “espaço”; mesmo que um espaço, de fato, ainda não percebido cognitivamente como tal. A remarca é especialmente interessante porque nos atribui papel de observadores privilegiados. Nós, pesquisadores em cibercultura, acompanhamos as transformações transcorridas nas últimas décadas, e a circunstância que sublinha uma diferença entre os nascidos entre zeros e uns e os imigrantes digitais. De certo modo, mesmo os indígenas mais jovens são imigrantes digitais, posto a internet ser difundida nas aldeias após a circulação do telefone celular nas aldeias e, ainda assim, exigente de deslocamento para um ponto de conexão. Estamos situados na fronteira entre o uso e a imersão. Com a instalação das torres de 4G mais próximas às aldeias, determinando o fim do deslocamento para conexão — eis o que está acontecendo exatamente agora — presenciaremos os exatos instantes em que usuários são tornados habitantes do ciberespaço. Fascinante e preocupante, uma vez que se tratam de populações originárias.
Desarrollo:
(Re)existência em linha?
Notou-se que a maioria dos donos de perfil em idade adulta faz referência à cultura e às atividades culturais indígenas; e, mesmo que jovens adultos o façam, a frequência é maior entre os mais velhos. Muitos exemplos foram encontrados, tais quais a difusão dos Jogos dos Povos Indígenas ou Dia Internacional da Mulher Indígena; projetos voltados para a preservação da floresta, a exemplo daqueles desenvolvidos pela Associação Floresta Protegida (AFP); link para documentário Yanomami; #UseMascaraParente; compartilhamento de documento que trata da presença de antropólogos em aldeias; alimento sendo preparado no fogo, com auxílio de pedras e folhas de bananeira; #diamundialdomeioambiente; referência à Semana dos Povos Indígenas; Terceiro Torneio da Aldeia Aukre; notificação de reunião com a ONG Imaflora, ocupada com a questão ambiental e a preservação do meio ambiente, das populações tradicionais (indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais e agricultores familiares); Encontro de Culturas do Mundo 2020 etc.
Rituais e cerimônias também figuram entre as postagens encontradas, tais como a pintura corporal, os adereços cerimoniais e o comunicado sobre a morte de membros — observação muitíssimo importante quando a morte e o luto, na comunidade em questão, são temas jamais publicizados, tal qual testemunharam os antropólogos implicados na presente pesquisa em viagens realizadas à aldeia. Não nesta coleta, mas em ocasião que a precedeu, um Kayapó de A’Ukre produziu um vídeo em homenagem a uma criança que havia morrido afogada. Um fenômeno absolutamente atípico e claramente relacionado com o acesso à internet e ao modo como não indígenas vivenciam o luto nas redes sociais digitais. Entre as demais temáticas constantes das postagens realizadas por Kayapós adultos, vêem-se também imagens de crianças retratadas ou, de algum modo, presentes no registro fotográfico. A exaltação da natureza é outro mote recorrente, porém menos frequente e alternando retratos de paisagens naturais (rios, cachoeiras, áreas verdes, céu azul etc.).
Desaldeia?
Ao primeiro contato com as postagens dos mais jovens nos questionamos se determinados comportamentos seriam de bi-culturais ou se refletores de um desaldeiamento cultural. Ou, ainda, se apenas uma adaptação da representação de seu eu no Facebook. Martuchelli (2002) argumenta que nenhuma identidade pré-existe à sua construção e Dubar (2005) afirma não existir identidade em essência imutável que acompanharia o sujeito ou um grupo social ao longo da sua existência sem sofrer transformações.
Identidade para si e identidade para o Outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática. Inseparáveis, uma vez que a identidade para si é correlata ao Outro e ao seu reconhecimento: nunca sei quem sou a não ser no olhar do outro. (...). A identidade nunca é dada, ela é sempre construída e deverá ser reconstruída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura (DUBAR, 2005, p. 135).
Podemos pensar, portanto, que a autorrepresentação no Facebook resulta de uma necessidade de aceitação, de inclusão e de adequação ao modelo de comportamento propagado naquela rede. Por outro lado, não podemos ignorar que aqui falamos sob o auspício de uma cultura que negou e nega ao povo indígena seu direito a existir, física e simbolicamente. A construção da imagem dos povos indígenas sempre foi uma das armas de destruição do seu próprio sistema, o selvagem, o incivilizado, o animalesco. "Adeus, selvagens!, adeus, viagens!", despediu-se e sentenciou um Lévi-Strauss arrependido. "A vida social consiste em destruir o que lhe confere seu aroma", assegurou, por fim.
Assim, a saída da aldeia é refletida na auto-estima e, consequentemente, na maneira como o sujeito passa a se representar nas redes sociais digitais; talvez, por isso, no Facebook sua imagem seja uma e na aldeia — como pudemos perceber em algumas poucas postagens — seja outra, voltando o observado a exibir sua cultura e vestimentas com mais “orgulho”. É como se, também no Facebook, houvesse a demarcação do território do branco, ali onde a imagem do indígena não se impõe entre os jovens com o mesmo vigor. Ou, de outro ponto de vista, seriam os comportamentos a frente relatados, espelhamentos de comportamentos da aldeia? Espelhamentos tais que, para amparar a auto-estima, representam a indumentária do homem branco no lugar de indumentárias tradicionais indígenas? Não acreditamos nisso, mas nada até aqui pretende ser definitivo, apenas relatado e observado a longo prazo. Há, porém, quem acredite no seguinte.
Podemos ainda indicar uma nova possibilidade que se abre para a representação, mas ainda não muito visível, com presenças tímidas que o mundo digital possibilita, ou seja, uma produção fotográfica endógena que conduz a práticas efetivas de identidades a partir da produção e circulação de imagens na própria etnia e na própria cultura, e também como lugar de visibilidade para outros olhares distantes, e nesses casos uma reafirmação da existência de um índio tradicional alimenta nosso imaginário sedento dessas imagens míticas do índio tradicional (TACCA, 2010, p. 121).
O fato é que observamos entre os mais jovens o uso frequente de objetos que, para os ocidentais, são indicadores de status socioeconômico, a exemplo de bonés; relógios; peças de vestuário identificáveis desde as marcas — e, em especial, a marca esportiva Adidas; cordões e pulseiras; equipamentos audiovisuais — celular, câmera fotográfica, câmera de vídeo, notebook, fone de ouvido, camisa de clubes esportivos etc. São claramente representações que buscam reforçar a imagem de poder de compra e de pertencimento a um grupo, no caso, ao grupo de jovens não indígenas. Não se trata aqui da posse em si daqueles objetos, mas, sim, da necessidade da demonstração da posse.
Vimos também, no mesmo sentido, registros fotográficos realizados em terminais aéreos de embarque e onde se podem identificar pistas de pouso e aeronaves, bem como registros em automóveis. Não apenas são registrados, mas, como se costuma fazer no Facebook, a imagem costuma seguir acompanhada de uma atitude atratora de atenção, a maneira de alguém que diga: “veja eu posso viajar”, “veja, eu sou como os outros jovens”. A relação entre viagens e poderio econômico é um fenômeno muito comum, tendo origem em culturas ocidentais e não indígenas.
Em relação à estética no ciberespaço, os donos de perfil mais jovens tendem a replicar comportamentos habitualmente associados aos jovens não indígenas, a exemplo de grande número de selfies; uso de aplicativo de edição de imagem para uso de filtros; duck face; gesto de hang loose/shakan e, como já dito, enquadramento de itens julgados um identificador de classe social — relógio, boné e vestuário com marca aparente, por exemplos — e uso constante de fones de ouvido.
O que tudo isso nos diz?
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
O dono do perfil se apresenta na fotografia da postagem deitado no chão com os braços erguidos em posição de selfie, como que para causar o efeito de que está em pé mesmo estando deitado. Na imagem, o dono do perfil se apresenta de óculos, camisa de um time brasileiro, o autor também veste um short estampado de tactel e sandálias. A legenda da postagem é um trecho da música “Fulminante”, do cantor Mumuzinho. A música em questão é tema da novela “A regra do jogo” e o gênero musical é o samba. O dono do perfil conclui a legenda da fotografia com um emoji de fogo, um macaco com as mãos escondendo os olhos e um símbolo de equilíbrio, indicando alguma timidez diante da postagem da fotografia ou de postar tal fotografia com a legenda em questão. Sem a informação prévia, podemos pensar se tratar de um não indígena.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
Postagem apresenta uma legenda com a letra “Meu Novo Mundo”, do grupo musical Charlie Brown Jr. O gênero musical é power ballad/skate punk e a letra da música na postagem indica uma amizade unida por um mesmo estilo. O dono do perfil se apresenta na fotografia exibindo dois sinais de paz com as mãos e o outro que está tirando a selfie faz um sinal de descompromisso com a mão, indicando a ausência de aliança de casamento. Os dois apresentam estilos parecidos. O dono do perfil está com fones de ouvido por dentro da camisa e o fone não está no ouvido nem plugado ao telefone, indicando que o mesmo consome bastante música. Os dois se apresentam em ambiente escolar, ambos usam o uniforme da escola. O dono do perfil indica estar se sentindo muito feliz. A postagem é respondida com um comentário de uma mulher aparentemente da mesma faixa etária que os dois no qual diz que os dois são bonitos. O dono do perfil responde em tom de flerte dizendo que bonita é ela que, por sua vez, devolve o elogio do jovem.
Jovem adulto
Formato da postagem | texto e imagem
A imagem postada pelo dono do perfil exibe um emoji de ying e yang, indicando equilíbrio e paz. Na imagem, posa diante de um muro rabiscado provavelmente por estudantes, repleto de corações com nomes de casais ou pretendidos casais, nomes de jogadores de futebol e mensagens de tipo geralmente apresentados por jovens. O dono do perfil posa com um headphone, um tênis de marca, uma calça jeans e uma camisa de gola, desejando aparentar estar concentrado na música, indicando uma conexão com a música, uma familiaridade com o consumo de música de forma individual. A foto é em preto e branco e o indivíduo utiliza uma legenda na própria foto que indica a utilização de um aplicativo pregresso a postagem no Facebook e com os dizeres: “A vida é um desafio”. A postagem é respondida com um comentário de uma mulher aparentemente da mesma faixa etária do dono do perfil, ressaltando a beleza do dono do perfil.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
Uma frase curta antecede fotografia do dono do perfil sentado ao lado de outro jovem adulto de feições indígenas e franja tingida de loiro. Trata-se de uma selfie feita pelo jovem adulto. Ambos estão sentados no que parece ser a borda de uma piscina. O dono de perfil está de calção de banho e sorri posado para a câmera. O jovem adulto veste camiseta e bermuda e sorri para a câmera. Há sete comentários, cinco deles publicados por indígenas e dois deles publicados por não indígenas. Na legenda, “Eu e primo PAATI”. A cena sugere um momento de lazer.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
Postagem privada feita pelo dono do perfil. Ele e um amigo, como indicado na legenda, estão sentados no chão. Atrás, uma grande queda d’água. Legenda da imagem é acompanhada por emoji de “paz e amor”, um gesto bastante comum entre jovens ocidentais. O amigo veste boné e óculos escuros. Câmera fotográfica ou aparelho celular parece ter sida(o) apoiada no chão e programada(o) para fotografar, o que revela o desejo do registro. Legenda diz: “eu e meu amigo foi na aldeia kkk”; informação que pode indicar a razão da fotografia.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
Selfie em P&B feita pelo dono do perfil que está sem camisa, num ambiente que sugere a própria casa. A cabeça levemente tombada para o lado, bem como o ângulo da foto (de cima para baixo), recupera o modo como jovens ocidentais registram a si mesmos nas redes sociais digitais.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
Selfie feita pelo dono do perfil para atualização da foto do perfil. Veste boné e acomoda uma das mãos na altura do peito, de maneira que um relógio seja visível. Ao fundo, o rio Xingu e algumas embarcações de pequeno porte. Na legenda, uma declaração incompreensível em razão da maneira como é formulada. À fotografia foi adicionado um filtro, o que supõe o conhecimento técnico necessário para e o desejo de interferir no registro físico da cena.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
Selfie feita pelo dono do perfil para atualização da foto de capa perfil com uso de filtro que altera cor da imagem. No canto inferior esquerdo, a logomarca do aplicativo para selfies — “Sweet Selfies”, indicando algum conhecimento técnico sobre aplicativos para edição de imagens. Mais uma vez, o dono do perfil tomba a cabeça para o lado e o ângulo do registro é de cima para baixo. Ao fundo, um estabelecimento comercial e uma caminhonete estacionada. Um comentário elogioso da foto faz uso da expressão “migo”, que é uma abreviação da palavra “amigo”, utilizada pelos jovens nas redes sociais digitais. Ao que ele responde com “miga”.
Jovem adulto|
Formato da postagem | texto e imagem
O dono do perfil exibe reação “sentindo-se triste” e, na legenda, “partiu aldeia”. Tudo dito seguido de um comentário em sua postagem perguntando o porquê do dono do perfil estar se sentindo triste — comentário não respondido. A confusão gerada, provavelmente, pelo fato do dono do perfil se apresentar no registro e de sua localização marcada indicar que o mesmo está indo de Ourilândia do Norte para uma aldeia — talvez sua própria aldeia — e porquê ir para sua aldeia o deixaria triste?
Na imagem compartilhada, o dono do perfil se apresenta em frente a um avião de pequeno porte, fazendo um sinal com sua mão que indica paz e despojamento. Seu pé se posiciona acima da roda do veículo, o que indica que o dono do perfil tem familiaridade com o transporte, querendo dizer, o meio de transporte e a unidade do veículo utilizado na imagem. O dono do perfil veste uma camisa preta e de uma calça jeans, assim como uma sandália. A camisa preta apresenta uma etiqueta da loja que exibe o tamanho da peça na frente; etiqueta que, habitualmente, é retirada após a compra da peça de roupa. No caso da postagem, não foi removida a etiqueta por questões relacionadas ao poder de compra e para mostrar na aldeia o poder de compra apontado anteriormente. Sentimento de divisão pelo abandono do seu local de vivência atual em direção ao seu local de origem.
Também entre os mais jovens se notou o uso corrente da hashtag #partiu, habitualmente utilizada para que o dono do perfil compartilhe, com sua audiência, um deslocamento espaço-temporal julgado importante. Trata-se, em primeiro plano, da apropriação de uma expressão circulante nas redes sociais digitais; o que deve indicar que os indígenas pesquisados têm conhecimento da ferramenta de indexação, ainda que não — necessariamente — do ponto de vista técnico. Em segundo plano, a alta frequência da sua utilização sugere que o sair-e-voltar para a aldeia é um evento considerado digno de registro por parte importante dos indígenas analisados. O recurso de check-in, tornado disponível pelo Facebook para quaisquer usuários, tem o objetivo de compartilhar a localização GPS do usuário. Nota-se seu uso frequente entre os indígenas observados o que, certo modo, reforça a ideia segundo a qual o trânsito pelo território — dentro e fora da aldeia — é considerado uma circunstância merecedora de registro. Isso posto, porque são feitos check-ins tanto no caso de viagens interestaduais ou internacionais, como no caso de viagens curtas, a exemplo do check-in Ourilândia do Norte que, por sua vez, é a cidade onde está localizada a aldeia.
Homem adulto
Formato da postagem | imagem
Postagem de check-in feita pelo dono do perfil e anunciadora da localização do usuário. Indica conhecimento da ferramenta de geolocalização oferecida pela rede social digital. A cidade identificada pelo check-in é Ourilândia do Norte, a mesma onde se situa a aldeia Aukre.
Jovem adulto
Formato da postagem | texto
Postagem onde lemos: “partiu pra Belém”; o que sugere o desejo de compartilhar uma viagem com a audiência da rede social digital. Há uma expressão/hashtag corrente grafada #partiuLOCAL. A mensagem do post pode fazer referência à expressão, ainda que o dono do perfil a tenha grafado de outra maneira.
Jovem adulto
Formato da postagem | texto
Postagem onde lemos: “partiu para aldeia piaraçi”; o que sugere o desejo de compartilhar uma viagem com a audiência da rede social digital. Há uma expressão/hashtag corrente grafada #partiuLOCAL. A mensagem do post pode fazer referência à expressão, ainda que o dono do perfil a tenha grafado de outra maneira. Anúncio de deslocamento que pode ser entendido como busca por interação. Dono do perfil agradeceu comentários que desejaram “boa viagem”. Fundo colorido sobre o qual escreve foi alterado pelo dono do perfil e indica o conhecimento da ferramenta.
Jovem adulto
Formato da postagem | texto e imagem
Screenshot de um programa de mapas para celular que indica o caminho do sul do Pará até Ourilândia do Norte e que pode ser entendido como um anúncio de deslocamento. Na legenda, “Partiu Ourilândia do Norte”. Há uma expressão/hashtag corrente grafada #partiu. A mensagem do post pode fazer referência à expressão, ainda que o dono do perfil a tenha grafado de outra maneira. Anúncio de deslocamento que pode ser entendido como busca por interação. Dono do perfil agradeceu aos comentários que desejaram “boa viagem”. Fundo colorido sobre o qual escreve foi alterado pelo dono do perfil e indica o conhecimento da ferramenta.
O se relacionar
É possível perceber que os mais jovens fazem uso do Facebook para se relacionar de forma natural — paquera, normativa — usando corretamente as ferramentas da rede social digital — e, até mesmo mais discreta, enquanto os adultos maduros se confundem com a ferramenta. Um dos exemplos é uma publicação em que, para poder chamar a atenção de uma mulher, o adulto indigena compartilha no seu próprio perfil a foto da mulher pedindo que ela entre em contato com ele. Em outro caso, o interesse é declarado publicamente em uma postagem. O desconhecimento do uso da ferramenta pode ser exemplificado nas postagens a seguir.
Homem adulto
Formato da postagem | texto e imagem
Compartilhamento da selfie de uma mulher de biquíni que segura os cabelos com uma das mãos; o que sugere imagem de apelo sexual. O dono do perfil incluiu no topo da publicação um pedido (em tom de paquera) para que a usuária conversasse com ele por meio do app WhatsApp. O que indica algum desconhecimento em relação ao uso da ferramenta, possivelmente, não imaginando se tratar de mensagem legível por parte de todos os amigos da conta.
Homem adulto
Formato da postagem | texto e imagem
Dono do perfil compartilhou foto de perfil de mulher indígena sorridente e com pintura indígena no rosto. Na legenda, “oi como vai”; o que sugere desejo de interação e desconhecimento do recurso tornado disponível pela plataforma. Também o dono do perfil curtiu a própria postagem; ação que sugere ou desejo de validação social do conteúdo ou desconhecimento do modo de funcionamento da plataforma.
Homem jovem
Formato da postagem | texto e imagem
Dono do perfil utiliza recurso de compartilhar lembrança oferecido pelo Facebook, trazendo à tona postagem de um ano anterior ao dia da postagem. Trata-se de postagem de outra pessoa, uma mulher que relata se sentir muito feliz e marca o homem pesquisado em questão, utilizando a hashtag #merecereplay; querendo dizer que gostaria que o momento se repetisse. Já na lembrança, o dono do perfil escreve a legenda querendo dizer que os dois estão juntos nessa, que existe uma aliança, uma amizade, uma união para com o outro em oposição a um outro. Na foto em que a lembrança é compartilhada, veem-se os dois indivíduos e mais uma criança. Ambos parecem estar jogando bilhar e há um taco no canto da fotografia, segurado pela mulher. O dono do perfil utiliza um boné para trás; o que, geralmente, indica o uso como adorno estilístico. Domínio do uso técnico e simbólico da rede social digital. Valores externos à sua cultura.
Conclusiones:
Considerações finais
Aqui está uma primeira abordagem do levantamento feito na circunstância da pesquisa. Apesar de termos tido acesso a 432 postagens, não podemos esquecer que elas representam apenas um universo de 9 perfis observados. Somente o tempo, a imersão quotidiana e o amadurecimento dessa nova etapa da pesquisa vai poderá mobilizar resultados mais robustos e confiáveis. Tudo aqui é abordado a partir de possibilidades, de um olhar sistêmico, complexo e não normativo. Acreditamos que a importância maior deste trabalho está no registro destas presenças online, no acompanhamento da imersão e da “adaptação” ao ciberespaço.
Como não tivemos acesso ao perfil de mulheres indígenas — embora, efetivamente, elas sejam minoria nas redes sociais digitais —, o presente trabalho seguiu os vestígios deixados por perfis masculinos. Importante que se ressalte o dado, pois, quando mais tarde forem inseridos outros perfis, poderemos observar e avaliar possíveis diferenças. Também se acompanharam mais perfis de jovens do que de adultos maduros e o recorte deve ser observado e comparado no avanço de nossa pesquisa. A equidade futura poderá nos trazer resultados mais fidedignos do comportamento de indígenas Kayapó no Facebook.
Percebemos que apesar das resistências — como a dos jovens usuários — o Facebook aos poucos se torna espaço de (re)existência. Espaço de exibição — também de indígenas — mesmo que tantas vezes a cultura seja mascarada. Mas, até onde isto será benéfico? Até onde será um novo panóptico de Foucault? Nós mesmos, ainda que consentidos, entramos em seu cotidiano urbano ou das aldeias, obtivemos informações, fizemos leituras, levantamos questionamentos e hipóteses. Colocamos vários pontos em questão, fenômeno após fenômeno. Que farão outros vigilantes menos comprometidos com a ciência, diante da ingenuidade visível de alguns perfis e da abertura amigável proposta nas redes? Ou, ponto importante, diante de militância acirrada, até onde esta exposição nas redes não irá enfraquecer a segurança dos mesmos e transformar líderes em alvos? São questionamentos que nos atravessam, que nos preocupam e que servirão na fase seguinte desta pesquisa, como direcionamentos do que devemos inserir em nossos monitoramentos.
Bibliografía:
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Palabras clave:
Kayapó; Facebook; rede social digital; representação; desaldeiamento.