Resumen de la Ponencia:
O objetivo deste trabalho foi analisar uma controvérsia sobre medicação preventiva para a covid-19 a partir de mídias sociais. O objeto de análise foram as mídias de duas pessoas que participaram de uma pesquisa de doutorado como informantes. Tal pesquisa investigou etnográfico-digital e prensencialmente a experiência de residentes da cidade de Olinda-PE (Brasil), com a pandemia a partir de ambientes digitais. O marco teórico se baseou nos modos de existência de Bruno Latour. Metodologicamente utilizou-se o programa Atlas ti7 como auxiliar na análise qualitativa dos dados. Assim, o compartilhamento de mídias sociais por dois informantes selecionados era transferido para o Atlas; depois eram codificados em palavras-chave que remetessem a associações em torno da pandemia; depois de definidas as redes de associações, eram finalmente categorizadas as redes de códigos nos modos de existência. Os resultados indicaram a presença de modos de existência distintos para o tratamento da Covid-19: a) automedicação com base na ratificação da experiência de tratamento a partir de mídias sociais; b) compartilhamento de experiências em formato de mídias sociais que sugeriam alternativas de cura para além da Ciência, com ênfase em bons “hábitos” e manutenção da imunidade, assim como práticas “animistas” (ou do modo de existência da metamorfose). Como conclusão cabe destacar a influência de mídias sociais e de produtores de conteúdo na relação entre tratamento da Covid-19 e uso de certos medicamentos. Em segundo lugar, cabe dizer que a relação entre essas mídias sociais e a experiência individual com o tratamento levam a uma modificação epistemológica que secundariza o que, de fato, circula entre especialistas, e o que está circulando no “tempo” ou velocidade dos ambientes digitais. Uma terceira conclusão é sobre o desaparecimento do “efeito placebo”, enquanto experiência importante para a (bio)medicina, quando o tratamento é referente a automedicação. Isto é: se o placebo é um fator fundamental para especialistas, ele não apareceu no campo de pesquisa nos tratamentos individuais. Ao contrário, em certos casos, ele foi substituído pelo (modo de existência do) hábito.
Introducción:
O objetivo deste artigo foi analisar uma controvérsia sobre medicação preventiva para o tratamento da covid-19 a partir de mídias sociais. Trata-se de um recorte de uma pesquisa de doutorado cujo tema foi pandemia e mídias sociais. Tal pesquisa foi realizada durante os anos de 2020 e 2021 na cidade de Olinda, no Estado de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil. O presente artigo tem como fonte as mídias sociais compartilhadas apenas por dois informantes da pesquisa. A justificativa é porque apenas estes informantes lidaram e se posicionaram diretamente sobre o tema da medicação preventiva, compartilhando mídias sociais e mensagens sobre o assunto.
O problema investigativo apresentado neste artigo é derivado do problema de pesquisa mais amplo. Aqui, tal problema se resume à questão seguinte: quais posicionamentos foram defendidos a respeito da medicação preventiva por moradores de Olinda durante o período de 2020 e 2021? Por conseguinte: quais mídias sociais eram compartilhadas por esses informantes? Ressalta-se que o tema da medicação preventiva ou do chamado kit-covid era um assunto não apenas nacional, mas também internacional. Durante o ano de 2020, o então presidente Donal Trump, no EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil, eram defensores desse tipo de tratamento (Furlan & Caramelli, 2021).
Para que se tenha uma ideia de como o assunto da medicação preventiva era defendido pelo Governo Federal do Brasil, em setembro de 2020 foram entregues mais de 12 mil kits covid em um Centro de Triagem do Estado de Mato Grosso (Santos-Pinto et al, 2021). Naquele mesmo ano, previa-se investir 250 milhões de reais em kits-covid que seriam distribuídos para as chamadas Farmácias Populares (Santos-Pinto, et al., 2021). Mas em 2021, o Conselho Federal de Medicina do Brasil, proibiu oficialmente o tratamento precoce com o kit-covid (Furlan & Caramelli, 2021). Diante desse quadro, o presente artigo traz um exemplo de como foram os posicionamentos antagônicos sobre o assunto que surgiram no campo de pesquisa, mas a partir de mídias sociais.
Desarrollo:
O enquadramento teórico da pesquisa se baseou nos modos de existência de Latour (2019). Basicamente, trata-se de uma categorização da experiência numa pluralidade ontológica. Ao invés de nos perguntarmos, neste caso, sobre questões de conhecimento, de verdade, em oposição a crenças e irracionalidade, ou ciência versus negacionismo, coloca-se a investigação sobre os diferentes modos do ser que atravessam a experiência com a pandemia.
Os seres identificados não são estáticos ou imutáveis; eles são abordados em fluxos de experiência, conforme os modos de existência são identificados em cada caso. Importa não cometer erros de categoria, a saber, confundir as características e valores (verdade) de um modo por outro. Por exemplo: confundir as condições de verdade e o sentido da ciência (Referência) com os pressupostos políticos (Política). Esses dois modos, sem dúvida, se combinam Ciência-Política (REF-POL) quando lidamos com a controvérsia sobre medicação preventiva e kit-covid, mas eles possuem suas próprias características e trajetórias. Cada modo de existência estabelece o verdadeiro e o falso em sua experiência específica. Assim, a verdade da religião (REL) não é a mesma da ciência (REF) ou da política (POL), tampouco o que é falso para a experiência de um modo não se aplica a outro. No total, Latour (2019) sugere que identificou doze modos de existência “habitando” o mundo “moderno” (doze modos mais três modos de metalinguagem de investigação). Entretanto, não aprofundo a descrição dos modos aqui, contentando-me apenas em me ater aos que foram identificados no campo a respeito do objetivo aqui proposto (Cf. Brito, 2022, para uma introdução aos modos).
Do ponto de vista etnográfico, o enquadramento se baseia nos conceitos de mídias sociais e de ambientes digitais. Segundo Miller et al (2019, p. x), os ambientes digitais são os “meios” em que a vida habita, por meio dos componentes materiais que lhe dão forma digital, como “bytes e linguagem de programação”. Tais formas, estetizadas por design digital, interagindo com forças físicas, como ondas eletromagnéticas, ondas de rádio e energia elétrica, entre outras, constituem os conteúdos que chamamos de mídias sociais, como sugerem Leitão e Gomes (2017). As mídias sociais que se tornaram dados ora analisados são mensagens de WhatsApp, vídeos de YouTube e posts de Instagram.
Metodologicamente utilizou-se o programa Atlas ti7 como auxiliar na análise qualitativa dos dados. Assim, o compartilhamento de mídias sociais pelos informantes selecionados era transferido para o Atlas; depois eram codificados em palavras-chave que remetessem a associações em torno da pandemia; depois de identificadas associações entre os códigos, eles eram categorizados a partir dos modos de existência (Latour, 2019). O primeiro passo, portanto, era identificar redes (modo RES) e sentidos (modo preposição-PRE). Esses dois modos, considerados metalinguagem de investigação, demonstram a trajetória e as conexões dos modos e os seres que participam dessas formas específicas de experiência. Porém, só a rede [RES] não demonstra as diferentes verdades, valores e sentidos específicos de um modo; é o modo da preposição [PRE] que auxilia a identificação dos diferentes sentidos que, por conseguinte, pertencem a cada um dos modos. Em outras palavras, é cruzando [RES] e [PRE] que identificamos cada categoria ou modo de existência.
A covid-19 não é uma "gripezinha”
Uma das primeiras controvérsias sobre tratamento para covid-19 no Brasil foi, sem dúvida, sobre a hidroxicloroquina (doravante cloroquina):
Nesse contexto incerto e plurivocal, no início de 2020, a cloroquina – uma substância utilizada, até então, no tratamento e profilaxia de alguns tipos de malária – surgiu como agenciador possível no enfrentamento do coronavírus. Presente nos discursos de sanitaristas e lideranças políticas, a cloroquina virou o centro de uma série de controvérsias no cenário público brasileiro, que envolvem discursos de políticos, médicos, pacientes, além de uma série de pareceres técnicos sobre testes, eficácia, indicação e suspensão de seu uso nos tratamentos da Covid-19 (Gonçalves, 2020, p. 2).
O artigo acima contextualiza a presenta da cloroquina no Brasil. Em torno deste medicamento, orbitam questões científicas e políticas. Por isso apresento a opinião do primeiro informante:
A covid 19 não é uma "gripezinha", como o trevoso e seus cúmplices quadrúpedes afirmaram. [...] A maioria esmagadora dos mais de sessenta mil mortos, pela covid 19, são das periferias brasileiras. A cloroquina e penduricalhos não é panacéia, como afirmou o trevoso e apaniguados [...] Andrezinho Das Olinda” (Comunicação pessoal, via WhatsApp, 6 de julho de 2020).
A comunicação acima, esclarecendo a metodologia, não foi resposta a uma entrevista ou aplicação de questionário. Trata-se de uma mídia social, em formato de mensagem, cujo autor, autointitulado Andrezinho Das Olinda, costuma produzir e compartilhar via aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp. Essas mensagens foram compartilhadas por mais de um ano com o autor deste artigo e, é claro, com a rede de contatos do informante.
Para iniciar o diálogo com o aporte teórico, já é possível observar que a estetização, a forma dada, a parte narrativa, de quem conta fatos (“como o trevoso [alusão ao presidente Jair Bolsonaro] cúmplices quadrúpedes afirmara”, “A cloroquina e penduricalhos não é panacéia, como afirmou o trevoso e apaniguados”), mas numa linguagem informativa-conscientizadora, é a figuração da experiência pandêmica a partir do modo de existência da ficção [FIC]. O que não significa dizer que não se trata, portanto, de nosso informante tornar a pandemia uma “ficção”, no sentido irreal do termo; muito pelo contrário, ao estetizar a pandemia, ele denuncia a maneira pela qual o governo federal – e “apaniguados” – lidam com a mesma. Enquanto um modo de existência, a [FIC] possui sua própria participação na realidade. Sua verdade particular, ou condição de felicidade, é a de fazer crer, manter; em oposição a fracassar, perder (no sentido dos seres da ficções serem “esquecidos” ou abandonados). Curiosamente, é via [FIC] que nosso informante nos pede para crer na realidade da covid-19, assim como na ineficácia (“não é panaceia”) da cloroquina.
As mídias sociais que nosso “narrador-personagem”, Andrezinho das Olinda, compartilhava não se resumiam à figuração anterior, isto é: não era apenas narrativa de quem utiliza diferentes gêneros literários para falar sobre a pandemia; ele também buscava distribuir outros formatos de informações relativas à pandemia (ver "CPI da pandemia faz audiência pública: ‘cloroquina não funciona em animais e humanos"’. TV Senado/Band News.'" CPIPANDEMIA - CPI da Pandemia - Atividade Legislativa - Senado Federal).
Primeiramente, a mídia social foi compartilhada quase um ano após a mensagem mencionada anteriormente (13 de junho de 2021). O tema da cloroquina continuava, no Brasil, com audiência. Nosso informante, ao compartilhar essa mídia social, trouxe o conteúdo de uma cidade distante, de outra região do país, para sua rede de contatos. A fala da pesquisadora em microbiologia, Natália Pasternak, ocorrendo em uma instituição política, assume a forma de bytes e segue via internet para o aparelho celular de Andrezinho das Olinda. Outros dois modos de existência saltam para o primeiro plano: o modo de existência político [POL], que gira em torno do objeto “cloroquina”; e a rede [RES]. A conexão entre nosso informante e a CPI sobre a cloroquina nos possibilita identificar um posicionamento: nosso informante está a favor de uma especialista que é contra o uso da cloroquina para tratamento da covid-19. Neste sentido, ele estendeu uma rede [RES] com o compartilhamento de uma mídia social, que leva aos laboratórios e artigos de microbiologia que a pesquisadora Pasternak se referenciou. O que nos leva à presença do modo de existência da referência (o científico) [REF], circulando no campo desta pesquisa.
A seguir, apresento o segundo caso deste artigo. Trata-se do posicionamento oposto ao até aqui analisado.
Medicação preventiva
Em 21 de janeiro de 2021, quase um ano após a chegada do novo Coronavírus à Olinda, uma profissional de saúde e atualmente funcionária pública da área de segurança, que chamarei de Berenice, aceitou participar da pesquisa. Tanto ela quanto sua família tinham sido contaminadas pela covid-19 até aquele mês de janeiro. Segundo Berenice, cada enfermeiro ou enfermeira seguiria suas próprias formas de lidar com a pandemia. E em sua experiência (conforme caderno de campo), tanto na rede privada quanto na pública, isso não mudaria.
Essa “individualidade” para lidar com a terapêutica da pandemia segue priorizando a expertise de cada profissional de saúde e suas equipes. Neste sentido, a expertise de profissionais de beira de leito, no caso pandêmico, segue na esteira da crise entre uma ciência sancionada, com avaliação de pares às cegas, testes com placebo e grupos de controle, e uma ciência de “beira de leito”, tal como ocorrido na ocasião da epidemia de vírus Zika no Brasil (Cf. Diniz, 2016).
A individualização do tratamento, seja para a profilaxia ou da terapêutica da doença, da covid-19, segue um critério de autonomia da expertise médica que já foi notado por Blanca, Koch e Prates (2022), quando de sua análise em torno do tratamento preventivo para covid-19. O caso de Berenice demonstra apenas um exemplo de pessoas que passaram pela experiência de tratamento para a covid-19 nos moldes do que a literatura vem registrando, como um efeito não só pandêmico, mas que vem ocorrendo de modos diferentes na relação entre ciência e sociedade.
Para Berenice, ter se medicado garantiu que não desenvolvesse casos mais graves da covid-19. Sua experiência no tratamento da doença dialogava com mídias sociais que ela compartilhava durante a pandemia, defendendo o uso de medicações do chamado “kit covid” e do tratamento preventivo para a doença (conforme mídia social compartilhada via WhatsApp, no dia 6 de janeiro de 2021, cujo conteúdo era um link para um canal do YouTube que armazenava um vídeo intitulado "As verdades que não querem que você saiba sobre o COVID - 19). O conteúdo foi compartilhado comigo após Berenice ter adoecido. No vídeo, defende-se a autonomia de médicos no tratamento precoce ou terapêutico para a covid-19. O que segue, novamente, corroborando o trabalho de Blanca, Koch e Prates (2022), no que tange a essa postura de certos especialistas defensores da medicação preventiva ou kit covid.
Em uma conversa com Berenice, perguntei-lhe o que achava do conteúdo do vídeo acima. Ela respondeu o seguinte:
Eu gostei muito. [...] Procurei o hospital pra me afasta e pra ser medicada e isso não aconteceu. Por conta própria tomei medicação e fiz o meu exame no centro de convençõe. Isso tudo na primeira quinzena [de novembro de 2020]. Depois de de uma semana apresentei febre e dores no corpo procurei pela a quarta vez fui no hospital pra falar o que estava acontecendo comigo. Pq até então não tinha me afasta do trabalho e sabe que estava contaminado. Meu exame que fiz no dia +/- dia 14 de novembro e resultado só saiu final do mês dia 28 de novembro e deu positivo. Fiz outro exame tbm no fiz do mês pelo o meu plano e novamente deu positivo. Se eu não tivesse tomando as medidas de prevenção poderia ter o caso grave da doença.”
Não conferir os artigos [citados no vídeo que ela compartilhou]. Mas conferir o currículo dele e seu histórico na vida profissional
E médicos que eu sigo segue ele e falar muito bem dele. [1]
A experiência de Berenice, como dito, reforça o que Diniz (2016, Cap. I, pp 13-19) chamou de crise de ciência de bancada, na ocasião da epidemia de Zika. Não se trata da mesma crise, pois na ocasião da epidemia de Zika o que estava em foco era a experiência de mães de anjos – como ficaram conhecidas as mães de crianças com Síndrome Congênita do Vírus Zika –, ou mães de micro, e especialistas como médicos, pediatras e demais profissionais de saúde que atuavam na linha de frente com as mães.
É importante ressaltar que a epidemia de Zika precedeu a de covid-19 em poucos anos e que seu epicentro foi o Nordeste do Brasil (Cf. Scott et al., 2020). Para algumas autoras, aliás, esse tempo da epidemia de Zika não é apartado do tempo da pandemia para essas mães: trata-se de uma continuidade e aumento das desigualdades (Cf. Matos, 2020[2]; Santana et al., 2022).
Retornando à covid-19, a experiência de Berenice, a defesa da autonomia médica, assim como a medicação preventiva seguem, por sua vez, o que Cesarino (2021), à guisa de Zoonen (2012), denominou de ipistemollogy (eupistemologia), assim como Blanca, Koch e Prates (2022), ao analisarem mais detidamente o percurso que iria do kit covid e tratamento preventivo à questão das vacinas e seus opositores. Segundo Berenice, a eficácia da medicação preventiva é a garantia de um tratamento adequado. Entretanto, de um ponto de vista teórico, esse sentido de eficácia do medicamento gera uma trajetória da experiência ligada a uma realidade específica. Ao falar de eficácia e utilizar o vídeo acima exposto, ela corrobora uma validação científica para seu argumento. E sua experiência segue em consonância com outras mídias sociais e relatos de experiências. O link que Berenice compartilhou leva a um canal de um médico, no YouTube (conferir: : “As verdades que não querem que você saiba”. Canal Victor Sorretino. YouTube. 4. Jan. 21. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XowhxM9u1Jk. Acesso: 2 fev. 2022).
Analisei não apenas o conteúdo do vídeo, mas também as experiências compartilhadas no chat (apenas no YouTube). Seguindo os passos metodológicos, cheguei a trinta e cinco códigos que vão desde minerais, como zinco, a raízes como gengibre, passando por limão, vitaminas até jejum intermitente (entre outras). Trata-se, diria com Latour (2019) do modo de existência do hábito [HAB] associado a saberes individuais ou alternativos, reforçados pela experiência individual coletivizada por mídias sociais e, mais, vinculada à expertise dos médicos produtores de conteúdo que dão uma aura científica para esse conjunto de mídias. Essa epistemologia se liga, defendo, à eupistemologia de Zoonen (2012), como já foi sugerido por Blanca, Koch e Prates (2022) e, mais ainda, possui uma continuidade com o que Cesarino (2021) já vinha analisando em relação à pós-verdade, mas não se restringe a isso.
Fast Science or ipistemology (eupistemologia ou ciência acelerada)?
Evidencia-se que existe uma implicação da circulação de controvérsias entre especialistas para um público de não especialistas. O que quer dizer que não se trata apenas de uma controvérsia entre especialistas, mas do alistamento de especialistas para controvérsias que ganham vida própria fora do laboratório. Em segundo lugar, outra questão que precisa ser mencionada é a do que significa ter uma controvérsia entre especialistas em aberto, mas circulando, como mídia social, por plataformas digitais. A hipótese, adianta-se, é de que o tempo das mídias sociais é mais acelerado do que o tempo que a ciência precisa, via de regra, para encerrar suas próprias controvérsias. O que, por conseguinte, demonstra um caminho na contramão de movimentos a favor da desaceleração da ciência, como o manifesto Slow Science, de 2010, lançado pela Slow Science Academy que, basicamente, sustenta a ideia de que a ciência precisa de tempo, não pode ser apenas “acelerada”[1].
Stengers (2019) também participou da defesa da Slow Science. Aqui, no entanto, importa mais entender a sua ideia de fast Science. Para Stengers (2019, p. 10), a fast Science começou a se desenvolver no século XIX, com a formação de profissionais e cientistas. O ideal era manter a autonomia científica, não desperdiçar o tempo com questões “externas” à prática científica. O que garantiria confiabilidade, já que em ambientes controlados, como no laboratório, objetividade e racionalidade estariam seguras, em oposição à contingência/arbitrariedade ou à “confusão do mundo”. Entretanto, essa forma especifica de abstração, científica, tinha uma postura semelhante ao desenvolvimento industrial, alheio a questões que hoje são caras ao mundo moderno, como a crise ambiental, a desigualdade social etc. O que importava era manter os aliados por perto, outros cientistas, e deixar que destinatários dos resultados da ciência se mantivessem passivos, sem perturbar o desenvolvimento da ciência.
Atualmente, no entanto, e ainda segundo Stengers (2019), estamos assistindo a um apagamento das fronteiras que garantiam com que a fast Science mantivesse sua autonomia. Com esse apagamento, as consequências para a fast Science são relativas à confiabilidade, mas não apenas. A fast Science passa a participar da “confusão do mundo”. Com isso, a ordem social e política é que passa a importar mais do que àquela de dentro do laboratório, entre especialistas. Essa consequência é importante para refletir sobre mídias sociais e pandemia. Se a fast Science tinha o caráter de conhecimento desincorporado, que ignoraria a confusão do mundo (externo), as mídias sociais, argumento, sugerem uma ordenação desse mundo a partir de posicionamentos políticos, ao menos durante a crise sintomatológica e, depois, terapêutica em decorrência da pandemia.
Ao invés de uma postura apenas “industrial”, assistimos a uma fast Science política, deslocada dos laboratórios, em ambientes digitais em que produtores de conteúdo, médicos e cientistas, contribuem com a produção de mídias sociais que, supostamente, ordenam a confusão terapêutica. A defesa da autonomia de outrora, com a fast Science, assume outra face diante da pandemia e do tratamento preventivo, como alertaram Blanca, Koch e Prates (2022, p. 11): “[...] Claiming to be a signatory of the [Helsinki] Declaration, the AMB [Brazilian Medical Association] published a statement on the 19th of July 2020, titled “Hydroxychloroquine: AMB defends medical autonomy.”
Segundo Blanca, Koch e Prates (2022, p. 18), novamente com Cesarino (2021), essa “reorganização epistêmica” ocorre nos ambientes digitais em uma espécie de tentativa mal sucedida do neoliberalismo para agilizar relações ao remover mediadores no processo, neste caso, científico. Reforço esse argumento ao trazer as mídias sociais para o primeiro plano, diante da pandemia, com o deslocamento dos fatos e controvérsias para os ambientes digitais ratificando experiências individuais de cura. No entanto, enfatizo uma característica de “perda” da experiência científica, ou do modo de existência da Referência [REF] e sua substituição pelo hábito [HAB], a saber: a dos efeitos placebos, pois fora do laboratório, a “reorganização epistêmica” não inclui o placebo.
[1] Fonte: Site do Ateliê de Humanidades. https://ateliedehumanidades.com/2019/01/15/manifesto-por-uma-slow-science/.
[1] Fonte: WhatsApp, comunicação pessoal, dia 21 de janeiro de 2021.
[2] Fonte: Boletim de Cientistas Sociais, n. 53. Portal de Ciências Sociais Brasileiras. Disponível em: Boletim Cientistas Sociais | n. 53 (anpocs.org). Acesso: 9 jan. 2023.
Conclusiones:
Como conclusão cabe destacar a influência de mídias sociais e de produtores de conteúdo na relação entre tratamento da covid-19 e uso de certos medicamentos, pois os resultados indicaram a presença de modos de existência distintos para o tratamento da covid-19. O compartilhamento de experiências em formato de mídias sociais sugeria alternativas de cura para além da Ciência, com ênfase em bons “hábitos” e manutenção da imunidade. Além disso, cabe dizer que a relação entre essas mídias sociais e a experiência individual com o tratamento levam a uma modificação epistemológica que secundariza o que, de fato, circula entre especialistas, e o que está circulando no “tempo” ou velocidade dos ambientes digitais. Daí falar sobre o desaparecimento do “efeito placebo”, enquanto experiência importante para a (bio)medicina, quando o tratamento é referente à automedicação. Isto é: se o placebo é um fator fundamental para especialistas, ele não apareceu no campo de pesquisa nos tratamentos individuais. Ao contrário, em certos casos, ele foi substituído pelo (modo de existência do) hábito.
Uma importante lacuna deste trabalho, devido ao uso de apenas dois casos que, embora participem de redes, o que, neste caso, elimina a preocupação com a representatividade quantitativa, é que não ficou completamente autoevidente em que medida os dois casos possuem características semelhantes. Estas, adianto, serão avaliadas na elaboração final da tese. Entretanto, por ora é possível destacar que um elemento comum entre os dois casos (e outros em análise na tese) é a defesa de explicações amigo-inimigo em assuntos ligados à pandemia. Porém, resta saber se casos como o de Andrezinho, posicionando-se contra essa “bolsonarimso”, possuem sua própria dose de eupistemologia amigo-inimigo, o que, paradoxalmente, ratifica, de um lado, a experiência dos laboratórios, isto é, da ciência [REF], mas, por outro, defende apenas uma única verdade, a despeito de outros (seres e) saberes.
Bibliografía:
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Palabras clave:
Medicação-preventiva. Mídias-sociais. Pandemia.