Resumen de la Ponencia:
A presente comunicação propõe uma breve cartografia acerca dos debates que envolvem as teorias críticas feministas na América latina e Caribe e sua articulação com o pensamento decolonial. A partir dos anos de 1980, marcadas por uma trajetória autônoma e uma vocação transdisciplinar, os feminismos questionaram as ideias dominantes de história e representação no interior das ciências sociais e humanas. Produzindo, a partir de dentro, reflexões críticas e teorias próprias, o movimento expôs a estrutura de subalternidade construída pelo patriarcado e pelo colonialismo e questionou o caráter colonial do discurso feminista ocidental. Muito além da problematização sobre o corpo, sexualidade e gênero, os debates feministas latino-americanos e caribenhos refletiram acerca dos contextos do encontro e da violência e poder colonial onde o patriarcalismo impôs normas que fixaram as práticas da matriz heterossexual binária. Os debates da teoria crítica do pensamento decolonial influenciaram diretamente a construção de um feminismo decolonial. Sem deixar de considerar as desigualdades e injustiças históricas produzidas a partir de estruturas políticas, sociais, culturais e econômicas, buscou estabelecer um lócus de enunciação realizando uma intervenção teórica sobre a ideia de gênero e sexo respeitando as múltiplas identidades, necessidades, reivindicações e interesses feministas. Nos anos de 1990, despontaram com força os “feminismos” que, demarcando diferenças e ampliando territórios, se tornaram uma espécie de guarda-chuva político capaz de abarcar movimentos e sujeitos distintos que privilegiou a busca conjunta de uma coexistência pautada no respeito, na visibilidade e na luta por direitos amplos na perspectiva antirracista, anticapitalista, antissexista. Orientada nessa direção, a produção ativista de Maria Lugones propõe a descolonização de gênero como uma práxis que critica a opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada, expandindo e complexificando o conceito colonialidade do poder. A autora insere no debate a colonialidade de gênero para identificar a interseção de raça/classe/sexualidade/gênero, no que denomina sistema moderno/colonial de gênero. Rita Segato contribui para o debate do feminismo decolonial afirmando que é necessário analisar a sexualidade e o significado e o valor dados ao acesso sexual nas sociedades colonizadas. Descreve a mudança do campo sexual como a introdução da mirada pornográfica. A partir da luta de mulheres bolivianas, o feminismo comunitário se impõe como um movimento social que assume a forma circular de conhecimento e de pensamento que busca recuperar criticamente o saber e o ser dos povos originários para superar formas de construir conhecimento fragmentado, androcêntrico, linear, racional e dominador.
Introducción:
A presente comunicação propõe uma breve cartografia acerca dos debates que envolvem as teorias críticas feministas na América latina e Caribe e sua articulação com o pensamento decolonial.
Desarrollo:
A partir dos anos de 1980 os feminismos questionaram as ideias dominantes de história e representação no interior das ciências sociais e humanas. Produzindo reflexões críticas e teorias próprias, o movimento expôs a estrutura de subalternidade construída pelo patriarcado e pelo colonialismo e questionou o caráter colonial do discurso feminista ocidental.
Nas últimas duas décadas, os debates, diálogos e trocas tomaram rumos distintos dentro do que historicamente se convencionou chamar “movimento feminista” – pelo menos até os anos 1990. De lá para cá, outras demandas sociais, culturais e fundamentalmente políticas foram sendo colocadas. O próprio conceito de feminismo começou a ruir diante das potências que se levantavam e se apropriavam também do espaço acadêmico, extrapolando o âmbito das lutas sociais, gerando um ativismo de característica epistêmica. Ao mesmo tempo despontaram com força os “feminismos” que se tornaram uma espécie de guarda-chuva político capaz de abarcar movimentos e sujeitos distintos na luta por direitos amplos na perspectiva antirracista, anticapitalista, antissexista.
Muito além da problematização sobre o corpo, sexualidade e gênero, os debates feministas latino-americanos e caribenhos vêm refletindo acerca dos contextos do encontro e da violência e poder colonial patriarcal. Os debates da teoria crítica do pensamento decolonial influenciaram diretamente a construção de um feminismo decolonial.
Nesse sentido, cabe aqui um breve parágrafo para explicitar que a reflexão decolonial se constituiu uma corrente crítica de pensamento, ação e experiência social engendrado a partir da América Latina e Caribe em finais da década de 1980. É um movimento teórico e um projeto de deslocamento epistêmico na esfera social e no âmbito acadêmico que se articula com diversas perspectivas como a teoria da dependência, a filosofia da libertação, sistema mundo moderno colonial, marxismos, estudos pós-coloniais, culturais, subalternos e feministas, educação popular e metodologias participativas.
Nesse contexto, e dando muitos passos atrás no tempo, quero situar o conceito de interseccionalidade, pois ele será fundamental na abordagem acerca dos feminismos LA e caribenho que farei mais adiante.
Em um caminho teórico cruzado e complementar, a ascensão do conceito de interseccionalidade, um debate travado pelo feminismo negro acadêmico, aos poucos vai sendo apropriado por outros sujeitos e movimentos, variando em sentido e intensidade de acordo com a localização, ampliando-se e recebendo críticas, a ponto de se tornar incontornável nos principais espaços de diálogo.
Sistematizado em 1989 Kimberlé Crenshaw o conceito de interseccionalidade se sustenta em todo o conteúdo herdado de debates anteriores. Sua abordagem se tornou mais conhecida e discutida principalmente a partir dos anos 2000.
Os debates anteriores aos quais me referi e que sustentam o conceito de interseccionalidade surgem em meados dos anos 1960, na esteira da história do movimento negro e dos feminismos negros, que já vinham dando sinais de sua potencialidade mesmo antes do fim da escravidão no continente americano.
O breve discurso que ficou conhecido como “E não sou eu uma mulher?” proferido por Sojourner Truth, em 1851, na Convenção dos Direitos das Mulheres que aconteceu em Ohio (EUA), é uma referência ancestral inspiradora para o feminismo negro afro-americano.
As ativistas Angela Davis, bell hooks, Audre Lorde e Patrícia Hill Collins se tornaram referências incontornáveis no campo feminista e inspiradoras dos feminismos negros. Com elas teve início uma escala que se ampliaria cada vez mais, variando entre o local e o global.
Em um diálogo consistente com o conceito interseccionalidade, a brasileira Carla Akotirene (2018, p. 22), afirma que “[...] o projeto feminista negro, desde sua fundação, trabalha o marcador racial para superar estereótipos de gênero, privilégios de classe e cis-heteronormatividades articuladas em nível global”. Para a autora, “é da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade”. Akotirene adverte sobre o mau uso dessa categoria de análise e a visão equivocada que surge quando ela é entendida apenas como a soma das opressões.
Ochy Curiel defende a importância de uma análise crítica a partir do conceito, uma vez que ele tem limites. Para a autora nascida na República Dominicana, a sistematização de Crenshaw não questiona como se produzem as identidades e diferenças que produzem os sistemas de opressão. Não se trata somente de uma questão teórica ou conceitual, mas uma questão que tem implicações para nossas práticas políticas.
No território geopolítico decolonial, a argentina Maria Lugones, lesbofeminista, decolonial, educadora popular e acadêmica, propõe a descolonização de gênero como uma práxis que critica a opressão de gênero racializada, colonial e capitalista heterossexualizada. Lugones expande e complexifica o conceito “colonialidade do poder”, eixo estruturante do pensamento decolonial, cunhado por Aníbal Quijano em 1989***(atento para o fato de que esta noção é contemporânea ao conceito de interseccionalidade). O conceito de colonialidade do poder trouxe como novidade a leitura da raça e do racismo como princípios organizadores das hierarquias do que se denomina sistema-mundo, com foco nas localidades latino-americanas.
Ao inserir no debate decolonial a colonialidade de gênero ela identifica a interseção de raça/classe/sexualidade/gênero, no que denomina sistema moderno/colonial de gênero e articula a relevância de pensar localização e colonialidade no processo de racialização das mulheres, junto com o conceito de interseccionalidade.
O pensamento de Lélia Gonzalez, antropóloga e ativista brasileira, pode ser considerado um ponto de intersecção entre os feminismos negros e os latino-americanos. O feminismo, como teoria e prática, na visão de Gonzalez, sinaliza a ênfase dada à dimensão racial relativa à percepção das mulheres no continente latino-americano afirmando que “[...] no interior do movimento, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão”.
A também feminista brasileira Sueli Carneiro, considera que a violação colonial de senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções das identidades latino-americanas estruturadas sobre o mito da democracia racial. Para ela, é necessário “enegrecer o feminismo” a partir da nossa localização.
Dentro das especificidades brasileiras, a interseccionalidade traz para o debate algumas questões específicas. A presença de orixás e da religiosidade de matriz africana na escrita de intelectuais coloca linhas de confronto teórico traçadas sob influências e possibilidades diversas. Um exemplo que faz ruir certos tabus acadêmicos de uma herança eurocêntrica, é o recente trabalho de Akotirene (2018), que evoca os orixás e a ancestralidade ioruba como elementos que fazem parte da epistemologia feminista negra.
Também a filósofa paulista Djamila Ribeiro (2019) ganhou visibilidade ao sistematizar a discussão dos feminismos negros brasileiros sobre “lugar de fala”. Ela nos leva à polêmica questão a respeito da qualidade dessa fala, de como utilizá-la quando assumimos esse lugar, já que visibilidade implica também em responsabilidade diante das expectativas da coletividade.
Seguindo a perspectiva decolonial, a também argentina Rita Segato contribui para o debate afirmando que é necessário analisar a sexualidade nas sociedades colonizadas. Sistematizadora de conceitos como mandato da masculinidade e a pedagogia da crueldade, a autora busca os determinantes da colonialidade inscritos no corpo das mulheres considerando um patriarcado de baixa intensidade pré luso hispânico.
Tendo como uma das suas principais sistematizadoras a boliviana Julieta Paredes, o feminismo comunitário emerge da luta de mulheres bolivianas e se impõe como um movimento social que assume a forma circular de conhecimento e de pensamento que busca recuperar criticamente o saber e o ser dos povos originários para superar formas de construir conhecimento fragmentado, androcêntrico, linear, racional e dominador.
O texto “Falando fino”, publicado em 2010 é emblemático para o pensamento feminista do sul. Nele a autora analisa as relações que devem ser superadas dentro do sistema patriarcal mostrando as dimensões que produzem opressão dos homens sobre as mulheres, explicando a incidência do modelo capitalista neoliberal e a condição colonial na relação com o sistema patriarcal. Sobre o vínculo entre o patriarcado e a colonialidade, assim como Segato, Paredes considera que a colonização se consolidou através de uma aliança com o patriarcado pre-hispânico. O feminismo comunitário revisa a incidência do capitalismo em sua versão neoliberal e as estratégias que estabelece para manter a relação com o sistema patriarcal.
Conclusiones:
É possível afirmar que a interseccionalidade tem sido incorporada às propostas decoloniais, contudo, o caminho inverso ainda está por se concretizar. Entre as feministas latino-americanas e caribenhas se identifica um movimento crescente de apropriação e ativismo pela “descolonização” do pensamento feminista, assim como do conhecimento acadêmico. Um caminho em construção que busca fissuras no patriarcado capitalista neoliberal para se transformar em pautas políticas.
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Palabras clave:
Feminismos, pensamento decolonial, América Latina e Caribe