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Resumen de la Ponencia:
O presente trabalho é parte da pesquisa que encontra-se em desenvolvimento junto ao PPGSS/UERJ e tem como objetivo analisar as ações promovidas pelo governo federal para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher e para a proteção das mulheres vítimas dessa violência considerando o cenário de isolamento social devido à pandemia da Covid-19. Em diversos países verifica-se o aumento da violência doméstica contra as mulheres no período de isolamento social durante a pandemia. Diante deste cenário, questiona-se quais foram as medidas adotadas pelo governo federal para prevenir ocorrências e/ou proteger as mulheres vítimas. Indo além, indaga-se qual o rumo dado às políticas públicas de gênero no atual governo partindo do pressuposto de que a política econômica de austeridade fiscal e a política neoconservadora são os pilares do Governo Bolsonaro, estando diretamente atreladas às ações (ou falta de) da pasta e possuem valores e discursos que evidenciam uma disputa com relação ao conceito de Direitos Humanos das Mulheres. Parte-se da hipótese de que as ações adotadas referentes às políticas públicas de gênero, especialmente as voltadas à proteção das mulheres em relação à violência doméstica, previamente à instalação da pandemia, indicam uma contraposição e retrocesso frente ao caminho que vinha sendo construído nos governos anteriores, às orientações em documentos internacionais sobre direitos humanos e igualdade de gênero e às lutas feministas. Na metodologia, é considerada a relação histórica e dialética entre os fenômenos, sendo adotada abordagem quali-quantitativa referente aos anos de 2019 a 2021, principalmente aquelas voltadas para a prevenção e combate da violência doméstica praticada contra as mulheres no período de isolamento social devido a pandemia de Covid-19. Desta forma, são utilizadas fontes oficiais e produções da sociedade civil. A pesquisa encontra-se na fase de pesquisa bibliográfica, demarcando conceitos e categorias base.
Introducción:
O presente interesse de estudo é advindo do recente cenário pandêmico. Logo nos primeiros momentos de isolamento social, algumas notícias divulgadas pela grande mídia chamaram a atenção e causaram uma inquietação: o aumento da violência doméstica, a nível internacional, nessa conjuntura. A convivência intensa forçada no âmbito privado agravou um problema que já era endêmico. No Brasil, essa é uma questão bastante presente em nossa história e apresenta indícios de agravamento nesse contexto. Desta forma, o objeto da presente proposta de pesquisa é a violência doméstica contra a mulher no período de isolamento social devido à pandemia de Covid-19.
De acordo com a fala do Presidente Jair Bolsonaro (2019 - atual) em 29 de março de 2020, a violência doméstica contra mulher está associada à "falta de pão, onde todos brigam e ninguém tem razão", em franca crítica ao isolamento social em contraposição à preocupação com a noção de “desenvolvimento da economia”. Porém, conforme esclarece a bibliografia sobre o tema (SAFFIOTI, 2015, SEGATO, 2006, FEDERICI, 2017), alguns pontos atravessam as discussões sobre a questão de gênero e a violência contra mulher, como as relações estruturais de poder em uma sociedade machista e patriarcal, o recorte de raça/etnia e classe social. É necessário considerar que esses elementos estruturais são acirrados pela ascensão do neoliberalismo nos anos de 1970 e as subsequentes reestruturações produtivas, com consequente desemprego e precarização das relações de trabalho. Tais elementos agravam, não só as condições de vida das famílias, como também sucateiam os equipamentos sociais que realizam o atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica.
Apesar de, até o momento, ter se mostrado um dos mais eficientes meios de conter o avanço da pandemia até a vacinação em massa da população, o isolamento social, muitas vezes, coloca as mulheres em convivência forçada com seus agressores, mais vulneráveis a sofrer violência doméstica e sem oportunidade de buscar por socorro. Um dos reflexos da situação é a diminuição das denúncias nos momentos iniciais da pandemia, conforme publicado na 1ª edição da Nota Técnica sobre Violência Doméstica durante a pandemia de Covid-19 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Na 3ª edição, por outro lado, o FBSP apresentou um levantamento a respeito do fenômeno no Brasil, trazendo dados comparativos dos meses de março e maio dos anos de 2019 e 2020, sendo evidenciado o crescimento de 2,2% de feminicídios, sinalizando também uma maior dificuldade em denunciar devido ao confinamento com o agressor, com diminuição de 27,2% dos registros em delegacia de lesão corporal dolosa decorrentes de violência doméstica no mesmo período.
Já o Painel de Dados de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, disponível para acesso no site do MMFDH com dados a partir de 2020, nos traz informações sobre as denúncias realizadas através dos canais remotos, com números alarmantes, chegando a 7724 denúncias em maio de 2020.
Diante deste cenário, questiona-se quais foram as medidas adotadas pelo governo federal para prevenir ocorrências e/ou proteger as mulheres vítimas da violência. Indo além, indaga-se qual o rumo dado às políticas públicas de gênero no atual governo considerando sua agenda claramente misógina e neoconservadora sobre a qual o presidente da República foi eleito.
Ao buscar informações oficiais a respeito das ações adotadas para o combate à violência contra a mulher pelo atual Governo Federal, em especial pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) e sua Ministra Damares Alves, foi possível identificar a falta de informações e de transparência sobre a atuação do Ministério, inclusive com relação à distribuição do orçamento para políticas públicas de prevenção e de combate à violência contra mulher desde 2019.
Por outro lado, vimos na pesquisa em fontes hemerográficas que é evidente o esvaziamento, em termos de estrutura, da pasta da Ministra Damares, assim como a não execução do orçamento previsto para a prevenção e combate de violência contra mulher e expansão da rede de serviços especializados para o atendimento. Tais elementos trazem indícios sobre qual o entendimento e o grau de prioridade do governo com relação ao assunto. Outro fenômeno correlato é o aumento da taxa de feminicídio no período, principalmente de mulheres negras, tendo parte expressiva dos casos acontecido no ambiente familiar e por arma de fogo. Podemos relacionar essa questão com a problemática defesa do governo de Bolsonaro da liberação da venda e da flexibilização do uso de armas de fogo por civis, alterando o regulamento para posse e porte de armas no país a partir da publicação de decretos.
Para além do discurso minimizador da questão por parte do governo, é possível identificar que a principal deficiência está na ação do Poder Executivo na aplicabilidade da legislação já existente e referenciada mundialmente como uma das melhores na área (Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha).
Em primeira análise sobre a postura do atual governo frente à situação, evidenciam-se algumas características bastante presentes na política conservadora e moralizante conduzida pelo Presidente e por seus Ministros, como a desresponsabilização pública quanto à violência doméstica, a partir da regressão e precarização das políticas públicas na área, e da individualização do problema e do seu retorno para o trato no âmbito privado, com a responsabilização e culpabilização das mulheres envolvidas nas ocorrências.
Desta forma, o interesse é realizar uma investigação exploratória sobre como se acirraram os diferentes tipos de violações de diferentes mulheres no cenário de isolamento social imposto pela pandemia e pesquisar políticas públicas direcionadas para mulheres em situação de violência doméstica do referido Ministério no Governo de Bolsonaro (2019-atual), partindo do pressuposto de que a política econômica de austeridade fiscal (BEHRING at al., 2020) e a política neoconservadora (BIROLI, 2020) são os pilares do Governo Bolsonaro, estando diretamente atreladas às ações (ou falta de) da pasta e possuem valores e discursos que evidenciam uma disputa com relação ao conceito de Direitos Humanos das Mulheres (PIOVESAN, 2012).
Nesse caminho, parte-se da hipótese de que as ações adotadas referentes às políticas públicas de gênero, especialmente as voltadas à proteção das mulheres em situação de violência doméstica, previamente à instalação da pandemia, indicam uma contraposição e retrocesso frente ao caminho que vinha sendo construído nos governos anteriores, às orientações em documentos internacionais sobre direitos humanos e igualdade de gênero e às lutas feministas. Ao mesmo passo, acredita-se que o lar, em uma estrutura patriarcal de sociedade, não se evidencia enquanto um local de segurança, podendo ser a família um espaço para reprodução de violências e que as condições materiais de vida das mulheres foram agravadas diante do cenário pandêmico e devido à reação neoconservadora às conquistas das lutas feministas nos últimos anos (BIROLI, 2020), apesar da dificuldade de encontrar dados para mapeamento da situação.
Por se tratar de processos sociais, objetiva-se utilizar o método materialista histórico dialético para compreensão dos determinantes sociais que incidem sobre a temática, sendo proposta a abordagem de investigação exploratória sobre como se acirraram os diferentes tipos de violações às diferentes mulheres na conjuntura de pandemia por Covid-19. Cabe ressaltar que a pesquisa encontra-se em desenvolvimento, sendo apresentado neste momento o aporte teórico inicial com a definição de categorias de análise e aporte conceitual. Neste sentido, não se trata da apresentação de um trabalho conclusivo.
Desarrollo:
As desigualdades existentes entre homens e mulheres na sociedade não podem ser explicadas apenas por características biológicas e naturais, deve-se considerar principalmente processos históricos e sociais os quais constroem os significados dos gêneros, no caso do capitalismo, da imposição binária do masculino e do feminino em cada sociedade (FRASER, 2009). Essas desigualdades são potencializadas na medida em que a divisão de poder também ocorre de maneira desigual entre os gêneros, determinando, assim, os padrões para as relações sociais de gênero.
Neste estudo, adotamos o uso do termo relações patriarcais de gênero, que diz respeito às desigualdades sociais existentes com base nas diferenças entre homens e mulheres, sendo uma categoria em disputa teórica e também política. A categoria analítica gênero começou a ser utilizada com mais frequência no Brasil na década de 1990. A definição utilizada pela historiadora americana Joan Scott apresenta-se como referência aos estudos em torno da categoria nos anos de 1990 no Brasil, afirmando que
O núcleo da definição repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. (SCOTT, 1995, p. 86)
A autora explicitou também a importância que a categoria conquistou nos estudos feministas no âmbito acadêmico por se apresentar como um termo mais palatável
Enquanto o termo “história das mulheres” proclama a sua posição política ao afirmar [...] que as mulheres são sujeitos históricos válidos, o “gênero” inclui as mulheres sem lhes nomear, e parece, assim, não constituir uma forte ameaça. O uso do “gênero” constitui um dos aspecto daquilo que se poderia chamar de procura de busca de legitimidade acadêmica para os estudos feministas nos anos 1980 (SCOTT, 1995, p.75).
Ela faz referência ao que denuncia como relações assimétricas de poder que partem da diferenciação entre características biológicas, explicitando que as desigualdades existentes entre homens e mulheres na sociedade não podem ser explicadas apenas por tais elementos, devendo-se considerar principalmente processos históricos e sociais os quais constroem os significados dos gêneros e que, no caso da sociedade capitalista, realiza uma imposição binária do masculino e do feminino.
Ao discutirem as lutas feministas contemporâneas para superação das desigualdades, Lole e Almeida (2017) problematizam a centralidade no uso da categoria gênero para discutir teoricamente sobre as diferentes mulheres, indicando que existe uma "restrição desse conceito frente à pluralidade das experiências – de classe, raça, sexualidade e colonialismo" (p. 53), capaz de produzir uma hierarquização entre as mulheres dentro das lutas feministas. Apontam, dessa forma, um sujeito coletivo representado por diferentes mulheres representadas e organizadas em diferentes coletivos feministas, em permanente construção como sujeito político das lutas feministas.
Saffioti (2015), por sua vez, aponta que o termo deixa em aberto o vetor de dominação-exploração, não apontando a desigualdade que existe nas relações sociais de sexo e a parte oprimida, tornando-o mais abrangente. Patriarcado, no seu tocante, é compreendido neste estudo como uma formação social, funcionando como um sistema, produzido e reproduzido nas relações sociais, no qual a autoridade e poder pertencem aos homens, que usufruem de privilégios e exercem a dominação sobre sujeitos do sexo feminino e também sobre outros sujeitos que, de alguma forma, se identificam e se associam ao que, convencionalmente, é designado ao campo da feminilidade, seja por sua identidade de gênero ou por sua orientação sexual. Neste sistema, a mulher e a construção social do feminino são subalternizadas e desvalorizadas, sendo objetos de dominação, exploração e opressão. Desta forma, segue a mesma lógica o controle, a dominação e a opressão exercidos sobre aqueles/as que não se submetem a essa construção social das identidades, como, por exemplo, pessoas que são LGBTQIA+.
Outro aspecto basilar do patriarcado reside no controle do corpo e da sexualidade das mulheres enquanto propriedades masculinas, seja do esposo ou da figura paterna (SAFFIOTI, 2015). A antropóloga e feminista argentina Rita Laura Segato destaca o patriarcado enquanto "uma instituição que se baseia no controle do corpo e na capacidade punitiva sobre as mulheres" (2006, p. 3), tendo como base a misoginia, ou seja, "ódio e desprezo pelo corpo feminino e pelos atributos associados à feminilidade" (2006, p. 6). Desta forma, a violência contra as mulheres é utilizada como forma de dominação e punição, tendo no feminicídio a expressão máxima de ódio às mulheres por violação das leis do patriarcado. O feminicídio, conforme Segato, só pode ser entendido no sentido do poder patriarcal.
Nesse sentido, a diferença na distribuição de poder entre homens e mulheres e a dominação masculina na sociedade determina o sistema patriarcal, o qual Saffioti (2015) afirma ser "o regime atual de relação entre homem-mulher" (p. 59). Conforme argumenta a autora, o patriarcado não se restringe às relações privadas, permeando todos os espaços públicos:
As relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado (SAFFIOTI, 2015, p. 57).
A literatura mobilizada destaca a divisão sexual do trabalho como base material e concreta para a opressão das mulheres. Neste sentido, as questões, conceitos e categorias serão abordados a partir da perspectiva da totalidade, da concepção marxista das relações sociais, que coloca o trabalho enquanto categoria central e fundante do ser social. O gênero é compreendido na forma da exploração do trabalho das mulheres e da vulnerabilidade relativa que incide sobre elas e enquanto uma categoria social e histórica.
As diferenças codificadas como “naturalmente” femininas ou masculinas, imprimindo às vivências uma concepção dual e binária de gênero, decorrem da atribuição distinta de habilidades, tarefas e alternativas na construção da vida de mulheres e homens e oculta o trabalho não remunerado realizado por mulheres, o que também determina as estruturas de poder. Nesse sentido, Federici (2017) destaca:
Assim como a divisão internacional do trabalho, a divisão sexual foi, sobretudo, uma divisão de poder, uma divisão dentro da força de trabalho, ao mesmo tempo que um imenso impulso à acumulação capitalista. (FEDERICI, 2017, p. 232)
Existem dois princípios organizadores invariantes que incidem sobre esta categoria apontados por Hirata e Kergoat (2007): "a hierarquia, por agregar sempre maior valor ao trabalho masculino em detrimento do feminino e a separação entre o que é trabalho do homem e da mulher" (p. 62), ressaltando a assimetria existente nos trabalhos segundo o sexo e que se desdobram em desigualdades. Porém, cabe registrar que a exploração do trabalho das mulheres, não é vivida da mesma maneira por todas as mulheres, na medida em que não existe na realidade a noção de mulher universal. As mulheres são profundamente diferentes considerando suas origens, raças, vivências, orientações de afeto e sexuais, diferenças geracionais, culturais entre outras. Essas diferenças são visibilizadas e tratadas com desigualdades na vida social quando nos referimos ao mundo capitalista, periférico e colonialista em especial. Nesse sentido, é importante o olhar decolonizado (LUGONES, 2014) para visibilizar todas as formas de opressões e violências que as diferentes mulheres sofrem.
A divisão sexual do trabalho, neste sentido, compõe a divisão social do trabalho, que se complexifica à medida em que há o desenvolvimento das forças produtivas. A respeito da primeira, apesar dos esforços ideológicos de reduzi-la enquanto consequências das diferenças biológicas existentes entre os sexos, é ineliminável a dimensão social que incide sobre ela. Conforme ocorreu o desenvolvimento do ser social (LUKÁCS, 2013) e das formas de sociabilidade, mais a divisão sexual do trabalho deixou de ser social e se tornou socialmente construída, sendo necessário compreender seu papel dentro das relações sociais. Alves (2017) aponta, neste sentido, que
Tal divisão não se limita à definição de papéis no mercado de trabalho. Essa divisão acomete o conjunto da vida social. Estabelece também uma divisão sexual do poder, portanto, determina quem deve ocupar os principais postos de decisão política, seja no conjunto do aparato das instituições burguesas, seja nas experiências de organização e resistência da classe trabalhadora. (ALVES, 2017, p. 34)
Desta forma, de acordo com Saffioti (2004) considera-se que as relações patriarcais de gênero compõe o novelo "patriarcado-racismo-capitalismo", entrelaçando diretamente as relações sociais de dominação/exploração de classe, sexo e raça/etnia. Sobre este entrelaçamento, a autora destaca que o racismo e patriarcado são sistemas anteriores ao surgimento e desenvolvimento do capitalismo, mas que ganharam novos contornos a partir deste novo modo de produção, tornando-se um único sistema, inseparável na realidade, de dominação e exploração.
O capitalismo conforma o período histórico da modernidade, tendo como ponto de partida o que Marx (2017) criticamente estudou e conceituou como acumulação primitiva, fazendo referência, em extremo resumo, ao processo de desassociação dos trabalhadores dos seus meios de produção (terras camponesas do território europeu, exploração e escravização dos territórios e povos dos continentes Americano e Africano), dando origem às duas classes fundamentais do capitalismo: a classe burguesa, detentora dos meios de produção e os trabalhadores, que detém apenas sua força de trabalho para vender.
Federici (2017) defende a presença de outros processos neste mesmo período histórico e que foram fundamentais para o desenvolvimento da sociedade capitalista, configurando a divisão de poderes entre as classes sociais e dentro das mesmas. Ela afirma que
[...] o capitalismo criou formas de escravidão mais brutais e mais traiçoeiras, na medida em que implantou no corpo do proletariado divisões profundas que servem para intensificar e para ocultar a exploração. É em grande medida por causa dessas imposições – especialmente divisão entre homens e mulheres – que a acumulação capitalista continua devastando a vida em todos os cantos do planeta. (FEDERICI, 2017, p.119)
Com relação às mulheres, a autora aponta um processo de sujeição e o confinamento das mesmas à reprodução da força de trabalho, sendo alienadas do trabalho assalariado e das relações monetárias. Afirma que "as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então." (FEDERICI, 2017, p.146).
A modernidade, neste sentido, pode ser lida enquanto o terreno no qual se gestou, desenvolveu e afirmou um projeto de dominação, exploração, racista e patriarcal tendo como base um modelo de civilidade europeu, "padrão universal de humanidade", fruto do desenvolvimento capitalista, que deveria ser replicado para o restante do mundo, conforme Almeida (2019) aponta
E foi esse movimento de levar a civilização para onde ela não existia que redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e a que se denominou colonialismo. (grifos do autor - ALMEIDA, 2019, p. 3)
O autor defende que data deste período o surgimento do conceito de raça, possibilitando que contradições como os ideais do Iluminismo pudessem coexistir com a escravidão, uma vez que os seres humanos passariam a ser classificados em uma espécie de escala de humanidade. Dado o caráter histórico do conceito de raça, o autor afirma que "a raça opera a partir de dois registros básicos que se entrecruzam e complementam: I - como característica biológica [...]; II - como característica étnico-cultural [...]." (ALMEIDA, 2019, p. 6)
Deriva dessa diferença entre raças o racismo, que o mesmo autor define como uma "forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam" (p. 6).
Já Munanga (2010), ao abordar as dificuldade de identificar as manifestações do racismo no Brasil devido ao comumente chamado 'mito da democracia racial brasileira', afirma que
O fenômeno chamado racismo tem uma grande complexidade, além de ser muito dinâmico no tempo e no espaço. Se ele é único em sua essência, em sua história, características e manifestações, ele é múltiplo e diversificado, daí a dificuldade para denotá-lo, ora através de uma única definição, ora através de uma única receita de combate. (MUNANGA 2010, p. 2)
O autor defende - e concordamos com isso neste trabalho - que o problema reside na tomada das diferenças existentes nas pessoas, de diversos tipos, para impor desigualdade, gerando formas de preconceito que podem levar a diversos tipos de discriminação, dentre elas a racial, sendo este um problema social. Munanga ressalta que, no Brasil, existe um cruzamento histórico de raça e classe, ocasionando uma segregação de fato, porém não institucionalizada, da população negra.
A respeito disso, Almeida (2019) nos traz uma diferenciação sobre racismo individual, racismo institucional e racismo estrutural. Nas palavras do autor, o racismo individual "é concebido como uma espécie de “patologia” ou anormalidade. [...] não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo." (p. 9 - grifos do autor). Já o racismo estrutural diz respeito a uma relação de poder e subordinação e controle de uma classe sobre a outra
[...] racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça. (ALMEIDA, 2019, p. 10)
Avançando ainda mais na conceituação, Almeida indica que o racismo tem base na ordem social vigente, sendo um processo estrutural e histórico. Ele afirma que "as instituições são racistas porque a sociedade é racista [...] não é algo criado pela instituição, mas por ela reproduzido." (2019. p. 15). E indica que, se "o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas." (p. 16)
Retomando a discussão, Saffioti nos traz o entendimento popular de violência: "ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral." (p. 18, 2015), correspondendo assim à uma violação dos direitos humanos. A autora diferencia os conceitos de violência de gênero, violência intrafamiliar e violência doméstica definindo que a violência de gênero refere-se a categoria mais geral, omitindo o sujeito que pratica a ação, podendo corresponder, inclusive nas relações homoafetivas, porém com a predominância do entendimento da violência de homem contra mulher devido à cultura patriarcal; violência familiar já envolve membros de uma mesma família, extensa ou nuclear, podendo ocorrer dentro ou fora do domicílio, já a violência doméstica ocorre predominantemente no interior do domicílio no qual, nas palavras da autora, o "processo de territorialização do domínio não é puramente geográfico, mas também simbólico", determinando a hierarquia de dominação-exploração.
Nesta pesquisa trabalharemos com o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres, podendo esta se traduzir em violência física, sexual psicológica, patrimonial e moral, conforme previsto na Lei nª 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, e o entendimento de que estas formas de violência não ocorrem isoladamente, mas sim em escalada (SAFFIOTI, 2015), e que, pela materialidade, a ênfase recai sobre a violência física e sexual.
A Lei Maria da Penha, fruto de longa luta feminista, completou em agosto do ano vigente 15 anos da sua publicação, tendo representado um grande passo na direção da proteção dos direitos humanos das mulheres e trazendo diversas inovações para o ordenamento jurídico brasileiro, como incorporar no conceito as dimensões da violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral, como diretos humanos das mulheres, as Medidas Protetivas de Urgência (MPU) e a criação de juizados e varas especializados, sendo reconhecida pela ONU como uma das três leis mais avançadas no mundo na legislação sobre o tema.
Cabe registrar que, se os estudos feministas de gênero tiveram seu ponto de partida na da década de 1970 internacionalmente, as políticas públicas de gênero são ainda mais recentes. As políticas públicas, segundo Souza (2002), surgiram enquanto área de conhecimento nos EUA dentro do campo das ciências políticas e podem ser definidas resumidamente em
campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, "colocar o governo em ação" e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). Em outras palavras, o processo de formulação de política pública é aquele através do qual os governos traduzem seus propósitos em programas e ações, que produzirão resultados ou as mudanças desejadas no mundo real. (SOUSA, 2002, p. 5)
A autora defende que apesar de definidas e implementadas pelo Estado, que possui uma "autonomia relativa", elas são influenciadas por grupos de interesses diversos, destacando o papel dos movimento sociais nas pressões exercidas sobre os governantes, evidenciando o campo conflituoso em disputa, sobre o qual também pode existir cooperação.
Segundo indica Biroli (2020), os estudos sobre gênero e a agenda política da igualdade de gênero avança e recua a depender do contexto democrático vivenciado em determinada sociedade. "A campanha contra a igualdade de gênero e da diversidade sexual se opõe a valores democráticos como laicidade, pluralidade e respeito aos oponentes políticos." (p. 185).
Conclusiones:
Em um contexto de polarização política e crise do setor progressista, Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 com um discurso neoconservador de combate ao que denominou de "ideologias de gênero", por uma suposta ameaça, conforme suas falas, à família, à moral e aos bons costumes, em uma franca crítica à pauta da igualdade de gênero e outras pautas no âmbito da diversidade. Neste sentido, o atual Presidente da República reformulou a estrutura pública do executivo federal, reorganizando as políticas públicas de gênero, as quais pretende-se objetiva-se analisar na próxima fase do estudo. O cenário de disputa de ideologias e valores foi agravado pela crise sanitária instalada pela pandemia do coronavírus, que acarretou ainda no agravamento da crise econômica e humanitária e acirramento da polarização política na sociedade entre os sujeitos.
É relevante ressaltar neste ponto a importância e reflexo da desigualdade na distribuição do poder na sociedade, na qual as mulheres, os negros e negras e a população LGBTQIA+ ainda encontram-se na margem ou, muitas vezes, totalmente excluídos.
A pequena presença desses sujeitos nos espaços de poder, na construção de políticas públicas e os rebatimentos disso na realidade, nas expressões de desigualdades e opressões que impactam direta ou indiretamente em suas vidas, evidenciam a urgência de assegurar a visibilidade de suas lutas nesses espaços para a construção de uma sociedade que tenha por objetivo a equidade e o fim das opressões.
Bibliografía:
Em um contexto de polarização política e crise do setor progressista, Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 com um discurso neoconservador de combate ao que denominou de "ideologias de gênero", por uma suposta ameaça, conforme suas falas, à família, à moral e aos bons costumes, em uma franca crítica à pauta da igualdade de gênero e outras pautas no âmbito da diversidade. Neste sentido, o atual Presidente da República reformulou a estrutura pública do executivo federal, reorganizando as políticas públicas de gênero, as quais pretende-se objetiva-se analisar na próxima fase do estudo. O cenário de disputa de ideologias e valores foi agravado pela crise sanitária instalada pela pandemia do coronavírus, que acarretou ainda no agravamento da crise econômica e humanitária e acirramento da polarização política na sociedade entre os sujeitos.
É relevante ressaltar neste ponto a importância e reflexo da desigualdade na distribuição do poder na sociedade, na qual as mulheres, os negros e negras e a população LGBTQIA+ ainda encontram-se na margem ou, muitas vezes, totalmente excluídos.
A pequena presença desses sujeitos nos espaços de poder, na construção de políticas públicas e os rebatimentos disso na realidade, nas expressões de desigualdades e opressões que impactam direta ou indiretamente em suas vidas, evidenciam a urgência de assegurar a visibilidade de suas lutas nesses espaços para a construção de uma sociedade que tenha por objetivo a equidade e o fim das opressões.
Palabras clave:
violência doméstica contra mulheres, políticas de gênero, isolamento social