Resumen de la Ponencia:
Durante a pandemia do Covid19, diversas universidades do Brasil que funcionam presencialmente adotaram mantiveram suas atividades acadêmicas através de disciplinas com parte síncrona e parte assíncrona, por meios digitais. Nesta particular condição, onde a materialidade das relações presenciais entre estudantes, professores, e na sociedade em geral, subitamente foi subtraída da vida das pessoas (ou sofreu severa transformação), para reaparecer de forma distanciada ou mediada pelas fantasmagoria performada através de tecnologias digitais, a questão que se coloca neste trabalho diz respeito a estratégias possíveis para sensibilização dos sujeitos participantes de disciplinas universitárias mediante os meios digitais. O debate é realizado a partir do registro análise de experiência com uma disciplina de conteúdo sociocultural ministrada para o bacharelado em Design da UFPE durante o ano de 2021, para cuja condução se apelou ao princípio que tem norteado o pensamento antropológico contemporâneo, de que o exercício para se reencontrar o outro, passa por enxergar (e estranhar) o bem próximo. As reflexões partem da análise do conteúdo programático, materiais e estratégias didáticas utilizadas nas práticas acadêmicas desenvolvidas no contexto; também servem de objeto de reflexão a produção de inferências e alguns trabalhos realizados pelos participantes.
Introducción:
No Brasil as universidades constituem organismos com imensurável papel social na produção de conhecimentos que objetivam o atendimento da sociedade quanto às suas necessidades de saúde, educação, manutenção da democracia, bem como para a redução das desigualdades pela inclusão profissional e pelo desenvolvimento científico, além do subsídio humanistico e tecnológico à economia, à indústria, etc. Durante a pandemia do covid19, essas instituições também abraçaram fortemente o papel de contribuir com os mecanismos para mitigação da crise em suas diversas dimensões. Neste cenário, mostrou-se a importância de se manterem vivas as produções e atividades acadêmicas, ainda mais realçada diante da relativa insegurança institucional das IFES no Brasil - comum ao conjunto de universidades que abraçam com seriedade o ideário da formação cidadã, laica e o compromisso com o conhecimento científico e com valores democráticos - que passou a ser sentida com mais premência diante do golpe político vivido no país em 2016 e as eleições presidenciais de 2018, vencidas pela extrema direita através da disseminação de fakenews.
Entre as soluções encontradas se manter operantes as atividades das universidades, colocaram-se as aulas em formato remoto. Na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, assim como em diversas Universidades públicas do país, executaram-se programas de disciplinas com parte realizada de forma síncrona e parte assíncrona, disseminando-se uma prática que àquela época se mostrava bastante restrita nessas instituições.
Relativa a essa particular condição, onde a materialidade das relações presenciais entre estudantes e professores, além da considerável restrição do contato com livros impressos, com ambientes físicos de bibliotecas e com os ciclos de debates presenciais - assim como também foi fortemente afetada a realidade social encontrada nas ruas, nos círculos de amigos, de lazer e de sociabilidade, a questão que se coloca neste trabalho diz respeito a estratégias possíveis de sensibilização dos sujeitos participantes de disciplinas universitárias mediante os meios digitais. O debate é realizado a partir do registro e análise de experiência com uma disciplina de conteúdo sociocultural do bacharelado em Design da UFPE durante o ano de 2021, para cuja condução se apelou ao princípio que tem norteado o pensamento antropológico contemporâneo, de que o exercício para se reencontrar o outro, para se conhecer e abordar a dimensão sociocultural da realidade, portanto, pode começar pelo bem próximo, já que o que se pensa familiar está efetivamente envolto nas teias sociais e suas representações.
Compondo o referencial teórico desta reflexão, algumas leituras nos serviram de inspiração. Destacamos as reflexões de Velasco e Rada (2003), quando abordam a importância da noção de estranhamento em pesquisas do contexto educacional (p.137). Segundo esses autores, além de colaborar fortemente na compreensão dos diferentes contextos de vivência dos envolvidos, inclusive o contexto dos docentes, a ideia de estranhamento constitui uma poderosa ferramenta para se cotejar transformações no universe acadêmico que, por vezes, concebemos de modo naturalizado (estático) ou, mesmo quando supomos sua dinamicidade, não nos ocorre perceber em tempo hábil a necessidade de mudança nas estratégias de ação e relações no âmbito acadêmico.
Dada a caracterização do contexto abordado - o educacional - , e nele, o processo específico que se evidenciou no momento estudado - a assunção da necessidade de comunicação por recursos digitais num context do distanciamento social compulsório -, também nos serviram como fonte de diálogo as reflexões de Bauman (2011) em suas 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, que enfatiza, sem dar esperança de solução, o alargamento das dificuldades relacionais entre gerações com seus específicos backgrounds culturais e valores que tem marcado a sociedade atual, como o individualism, ainda mais potencializado pelo exagero ao recurso dos meios digitais. Essas ideias nos foram válidas na problematização das nossas relações com o alunado, assim como para reflexão sobre muitos dados socioculturais que foram trazidos nos trabalhos e falas dos estudantes.
A dimensão empírica do trabalho emergiu na condução de uma disciplina ministrada para o curso de Bacharelado em Design por uma das autoras; entretanto, a pré-elaboração do programa, a análise das informações levantadas e as reflexões do presente escrito foram realizadas a duas mãos. No calendário acadêmico de graduação da UFPE no ano de 2021 foram acomodados quase três semestres letivos. Assim, algumas reflexões aqui registradas se referem a um olhar ao largo sobre dos três semestres letivos; embora as analyses mais sistematicas se referem à primeira dessas experiências.
Nas reflexões deste primeiro curso de Antropologia e Design durante o contexto pandêmico, analisamos os conteúdos, materiais e estratégias didáticas utilizadas nas aulas mediante os objetivos da disciplina; e finalmente é problematizado, sem a pretensão de se esgotar o tema, o processo de produção de inferências pelos participantes através da apreciação de seus trabalhos.
Os títulos das disciplinas remotas realizadas nesses três semestres letivos tiveram que ser explicados em subtítulos elucidativos dos propósitos e das limitações com as quais contaríamos. - um semestre sem presencialidade, sem acesso a livros físicos e com todos os participantes vivendo os medos e cerceamentos impostos pela gravidade do quadro sanitário no auge da pandemia. A disciplina em análise foi nomeada Antropologia e Design: vivenciando conceitos antropológicos na prática de pesquisa através da internet e reflexões sobre o cotidiano próximo.
Inicialmente tencionavamos salvaguardar um interstício que se aproximasse do razoável para a integralidade da experiência dos alunos (leituras, debates, elaboração de exercícios/ apreciação) tendo como referência o padrão corrente quanto à natureza e volume de atividades em anos anteriores, mantendo-se os objetivos/conteúdos/produção de reflexões tal como ocorria no contexto regular (sem os horrores da pandemia). Entretanto, quando se iniciaram efetivamente as aulas remotas tivemos a certeza de que a manutenção de objetivos e conteúdos tradicionalmente adotados poderia resultar em total desencontro entre o planejado e o efetivamente conseguido.
Assim, a proposta de anos anteriores foi adequada, resultando no enunciado que se segue:
“objetiva-se na disciplina explorar algumas estratégias para a busca de evidências dos aspectos simbólicos e culturais do design através da pesquisa envolvendo documentos digitais e narrativas advindas do cotidiano dos participantes”.
E como objetivos:
1. Familiarizar os estudantes com o raciocínio da antropologia e com a pesquisa de temáticas da esfera antropológica, pertinentes ao campo dos artefatos e do design;
2. Exercitar a leitura de alguns textos etnográficos e a capacidade compreensiva entre os participantes, enfocando-se assuntos relevantes ao citado campo e aplicando-os à reflexão sobre observações procedidas através de informações digitais e de vivências remotas;
3. Ampliar a noção de leitura de documentos da internet, enfatizando-se a compreensão crítica dos contextos nos quais diferentes categorias de conteúdos são veiculados,
4. Exercitar a compreensão do sentido simbólico e cultural dos contextos que envolvem as relações das pessoas com artefatos e design.
Um dado importante a acrescentar: no trabalho de garimpar leituras em meios digitais que alimentariam o programa e, paralelamente vivenciando as diversas obrigações do professor, bem como na busca por informações sobre os processos sociais em torno da pandemia que as impactavam as atividades letivas, chegamos rapidamente à percepção do custo físico e psíquico da leitura de textos mais longos em telas.
Se o padrão de extensão das leituras anteriormente pensado se estendia de 15 a 20 páginas semanais - por exemplo, quando agendávamos discussões de trechos de clássicos, como do livro Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss (1966) - migramos para um padrão de textos entre 4 a 6 páginas, reunindo temáticas pertinentes aos interesses da área e solicitando dos estudantes, na maioria das vezes, devoluções em formato de apresentação de imagens e escritos curtos. Durante todo o semestre, foram solicitados apenas dois trabalhos com número de palavras definido (1500 a 1800 palavras), que se referiram especificamente (1) a um relato do cotidiano em suas moradias, e (2) a uma reflexão sobre corporalidade.
Desarrollo:
Sobre a metodologia adotada na disciplina
Para as discplinas de 60 horas, neste contexto que qualificamos de atípico, planejamos (por orientação da pró-reitoria de ensino da instituição para cada disciplina de graduação) 12 sessões de 2 horas síncronas; e foi organizado um material didático que se julgou cabível para as 36 horas restantes, envolvendo a leitura de textos curtos e seus respectivos exercícios (devoluções), além de dois trabalhos escritos de maior monta.
Assim, as dinâmicas previstas no curso foram efetivamente condicionadas pelas limitações vivenciadas, que naquele momento eram de ordem material e também de ordem psíquica e simbólica:
a dificuldade de muitos alunos para acessarem os momentos de encontros síncronos, já que diversos não conseguiam conciliar a participação nas chamadas coletivas com som e video pela pouca de conectividade, e diversos participavam acessando o ambiente virtual por smartphones com suas cameras fechadas; a dificuldade concreta (e também simbólica) do ambiente físico das residências das quais acessavam as aulas, pois muitos conviviam em espaços densamente demandados, em arranjos domésticos nem sempre simples (famílias em coabitação ou repúblicas estudantis), cujos integrantes se esforçavam por manter, paralelamente, trabalhos profissionais, estudos, e um pouco de diversão e sociabilidade por meios virtuais - e tudo isso sem saír de casa!
- apesar de se tratarem de jovens versados no uso de meios virtuais e digitais, diversos dentre eles, seguramente, não onstumavam fazer um uso efetivamente desconstrutivo das informações que nos chegam pela internet, como por exemplo, a leitura proveitosa e crítica, seja de textos mais densos, seja de informações publicitárias;
e para completar, diversos estudantes, em diferentes momentos, não conseguiram participar das sessões síncronas por razão de doença própria ou da família, fossem físicas ou psicológicas.
Os trabalhos solicitados foram organizados nas seguintes categorias:
Exposição de reflexões sobre leituras através de slidesEscritos do tipo comentário, resenhas, ensaiosO trabalho Observando a Moradia, a partir da técnica de registro e análise de observação in situ, tendo como provocação inicial a leitura do texto de Elaine Pedreira Rabinovich - A Casa Como Tempo: a bilheira e as três temporalidades. (Rabinovich, 1997). Um trabalho de pesquisa na internet sob a temática do adorno corporal no context atual, cuja leitura sugerida foi um recorte do texto de Claude Lévi-Strauss (1966) sobre a sociedade indígena Kadiwéu.
No presente artigo, dada à impossibilidade de englobarmos as análises e reflexões sobre todas essas categorias de trabalhos, abordaremos algumas elaborações relativas aos trabalhos mais robustos.
Além da Plataforma oficial da instituição (o sig@), que nos fornece apenas o nome do estudante junto aos cartórios (e para os optantes em transição de gênero, o nome social do participante), contávamos como o Google Classroom, esta segunda, com muitas possibilidades de uso (como repositório de materiais didáticos, video-gravação das sessões síncronas, frequências, avaliações, troca agilizada de e-mails etc.
As informações que reunidas a partir desses repositórios registram que 32 participantes se matricularam na disciplina, 29 frequentaram efetivamente (ou em parte significativa) e 27 concluíram com sucesso. Dos que efetivamente frequentaram, apenas três não conseguiram apresentar os exercícios pedidos e não obtiveram aprovação. Este cenário numérico poderia sugerir que a experiência foi um sucesso, com o que, em certo sentido, concordamos, já que em detrimento das dificuldades envolvidas, ainda assim houve engajamento significativo do grupo e muitas manifestações de solidariedade, afeto, produções consolidadas e diálogos relevantes. Entretanto, igualmente sentimos necessidade de aprofundar este sentido de eficiência e sucesso, e evidenciar o que consideramos como falha ou lacuna do processo.
Sobre as leituras, trabalhos e devoluções: primeiro terço da disciplina
Como já assinalado, as informações colhidas e inferências prévias ao início das aulas nos levaram à decisão do enxugamento dos materiais de leitura a um mínimo que nos pareceu, senão suficiente, ao menos plausível de abordagem.
Assim, no terço inicial da disciplina, foram abordados alguns textos da Coletânea Cientistas Sociais e o Coronavírus, recurso eletrônico (GROSSI & TONIOL, 2020).
Este material se mostrou extremamente rico e oportuno enquanto reflexão de cientistas sociais pesquisadores de diversas regiões do Brasil, que se debruçaram sobre temáticas sociais associadas à Covid19, prestando-se, no contexto desta disciplina, a uma exploração muito pertinente, dada à densidade reflexiva e conceitual e, ao mesmo tempo, ao enfoque da vivência da situação pandêmica no país, construído nas fronteiras das dimensões sociocultural, econômica e política.
Foram pedidas aos estudantes leituras de seis textos do citado livro, que abordavam as discussões críticas quanto às iniciativas, negligências, responsabilidades e consequências envolvidas com o manejo do contexto pandêmico no país, além de temáticas como as expressões de gênero na arte, ciadania, moradia, as escalas da pandemia (seus efeitos para diferentes segmentos da população), a questão do consume, o simbolismo dos artefatos no context da covid19 e a noção crítica de sustentabilidade. Algumas trabalhos pedidos aos alunos foram antecedidos por apresentações síncronas sobre esses textos, respectivamente pela docente e pelo estagiário docente; outras vezes pediu-se que os participantes fizessem apresentações a partir das próprias leituras. As devoluções, nesta primeira etapa, se materializaram em elaborações simples (respostas a questões, apresentações orais com apoio de imagens e reflexões críticas com base nos conceitos trazidos pelos autores).
Assim, em meio às possibilidades de escolha de materiais para exploração, tanto de textos teóricos, dos quais muito se poderia encontrar em manuais acadêmicos, em artigos de pesquisa e até em informes jornalísticos que frequentemente veiculavam opiniões de especialistas sob os diversos aspectos da pandemia - os artigos do lselecionados do livro Coronavírus e os Cientistas Sociais se destacaram também pela dimensão enxuta dos capítulos (entre 4 a 5 páginas); porém, de significativa densidade na articulação de problemas caros ao olhar antropológico na atualidade.
O fato é que, com a decisão de sacrificar as leituras de trechos de clássicos antropológicos, que nos programas ordinários possibilitam o vislumbre de certa visão diacrônica da disciplina, encontramos nesta publicação a oportunidade de trazer, inclusive a partir das citações aos clássicos, um enfoque que permitisse conectar conceitos cunhados em outros contextos de pesquisa com as problemáticas que estavam sendo vivenciadas pelos estudantes; e ainda, levá-los a observar como os autores desses enxutos capítulos fizeram suas reflexões críticas e abstrações/construção/conceituações.
Por outro lado, como nem tudo “foram flores”, da impossibilidade de consulta aos manuais introdutórios e trechos das monografias clássicas, e da opção por limitar os debates em reflexões sobre a pandemia, resultou também certa precariedade quanto à percepção estruturada dessas produções, restando a impressão de que os estudos antropológicos poderiam se valer apenas, e sem perdas, de abordagens empíricas e sincrônicas. O trabalho de observação desenvolvido no segundo terço da disciplina pode ter colaborado no reforço desta percepção, apesar apresentar algumas virtudes no contexto dos trabalhos do curso.
Segundo terço da disciplina.
No segundo terço da disciplina, desenvolveu-se um trabalho que objetivou a construção de um olhar crítico sobre o morar. A atividdae se iniciou com a leitura do título A Casa como Tempo: a Bilheira e as Três temporalidades, de Elaine Pedreira Rabinovich (1997).
Na sequencia, foi solictado à turma um exercício de investigação nomeado Observando a Moradia: um registro e análise de observação sobre o cotidiano próximo dos participantes, resultando em um escrito entre 1500 e 1800 palavras + 3 imagens (mínimo). Segue-se um breve comentário dos aspectos que nos chamaram atenção em algumas devoluções:
Como primeira inferência, destacamos as negociações e diálogos estabelecidos entre um dos participantes e a docente, que representou, guardadas as devidas especificidades das diferentes situações, a voz de outros estudantes. O estudante relatou incômodo por se tartar da observação de seu próprio contexto de moradia. A partir da reflexão sobre este incômodo, uma primeira situação de estranhamento em que nos vimos imersos, foi proposta uma ampliação do objeto do exercício, que passou a contemplar, como opção, a observação do cotidiano do bairro a partir do movimento das pessoas (ou o que fosse possível inferir nas poucas saídas necessárias ou através das janelas). Ao final dos entendimentos e novas possibilidades abertas, o estudante decidiu escrever sobre sua própria moradia, porém trouxe o relato como o de um narrador externo, já que preferiu conferir ao escrito uma forma impessoal. A narrativa contemplou uma série de dificuldades, materiais e quanto à dinâmica familiar. A escolha final deste participante em dissertar sobre as dificuldades vividas nos leva a pensar que a necessidade de expressão e relato das vivências do momento pandêmico, por mais difícil que se apresentasse, também representava demanda para o alunado.
Um segundo estudante estabeleceu, a partir da observação da área de serviço de sua residência, então habitada pela família nuclear de dois filhos e casal em coabitação que passou a morar com a família na pandemia, uma interessante conexão entre as práticas de consumo da população de estratos médios, usuária contumaz dos pedidos de compras de comida pronta por aplicativos, com a enorme quantidade de descarte de embalagens envolvidas nas entregas, estabelecendo um ponto de vista extremamente interessante sobre este tema. Na sua reflexão, o estudante sugere que o atendimento da demanda alimentar passou, no contexto do distanciamento social, a se confundir com o processo que nomeou consumo de comida por compulsão.
Uma terceira estudante residente em área de classe média de município vizinho ao Recife referiu-se à temáticas das memórias e das relações intergeracionais, centrando seu relato na casa da avó (uma casa situada em uma área popular de outro município da Zona da Mata de PE), local para onde se deslocou junto com o irmão durante a fase mais crítica do isolamento social para o acompanhamento da avó). O relato enfoca, além das transformações urbanas do entorno da residência, reflexões sobre memória de uso da casa e estratégias de adaptação de espaços para permitir o trabalho remoto dos dois jovens, destacando que a configuração habitual da residencia da avó e as adaptações que implementaram, algumas vezes se mostraram conflitivas. O grande achado neste relato reside na reflexão da estudante sobre as dificuldades na relação intergeracional e as necessárias estratégias na busca de uma reaproximação e recuperação da empatia existente entre diferentes gerações de sua família.
Um quarto estudante residente em município na zona rural centrou o relato em torno da temática dos hábitos alimentares de um núcleo familiar do Sertão de pernambucano, tendo o enfoque recaído na conexão das práticas dessa família com o Guia Alimentar da População Brasileira, elaborado pelo ministério da saúde em 2014. O relato enfatizou o papel deste artefato, criado como recurso de uma política pública do ministério da saúde, reiterando o benefício do instrumento à população em geral, em especial ao seu próprio grupo familiar, ligado a tradições ancestrais indígenas, segmento do qual se supõe uma consciência diferenciada em relação à alimentação e ao manejo em geral dos recursos da natureza.
Um estudante também residente em município do interior da zona da Mata Norte de Pernambuco relatou o seu cotidiano de trabalho como prestador autônomo de serviços de design para comércio, os quais desenvolve em um escritório montado no terraço de sua casa, de onde assistia as aulas da graduação e realizava atividades de estágio - espaço que comporta ainda uma loja de pequenos acessórios de computador. No relato, o estudante deu destaque ao que podia ver no entorno comercial deste espaço de múltiplas funções para sua família, assinalando o pouco uso de máscaras pelos transeuntes, mesmo nos momentos mais críticos da mortalidade pelo Covid19. Em suas palavras, viu muitas pessoas sem máscaras e muitas crianças de rosto exposto, supostamente “imunes”, acompanhadas de adultos também nem sempre usando máscaras. Problematizou ainda o uso excessivo de telas para atividades de trabalho, ampliado em função das necessidades de estudo e lazer, identificadas como responsáveis pelo sedentarismo e aumento de peso que o acometeu. O estudante se referiu à ideia de nomofobia, termo que circulou em alguns circuitos de redes sociais, definido como uma dependência patológica de computadores/smartphones, associada ao medo de perder a possibilidade de comunicação através desses artefatos, o que segundo ele, acometeu muitas pessoas; entretanto, não ocorreu com os seus pais, que consomem informação a partir da Televisão.
Um último destaque se refere à menção à convivência inter geracional registrada em um dos relatos (avó, mãe, filha, namorada da filha), em um pequeno apartamento moderno. No relato, a estudante assinalou as alterações conciliadas na ocupação e nas rotinas da casa, apesar da estrutura enxuta da habitação, mas exigiram sacrifícios, a exemplo da perda do lugar de trabalho pela mãe da família, vez que seu escritório foi reorganizado como quarto de dormir, com a chegada da avó idosa. Por sua vez, a sala, ocupada durante o dia pela avó para assistir televisão, foi, frequentemente ocupada com varais de secar roupas. A cozinha foi mencionada como o ambiente mais movimentado; e a combinação prévia de responsabilidades entre os residentes, (lavagem da louça, limpeza do chão, cuidado do cachorro) objetivaram conciliar uma convivência harmoniosa entre residentes de diferentes gerações.
Como reflexão work in progress, destacamos a fertilidade dos temas encontrados pelos estudantes, o que corrobora o pressuposto de que o ensino de disciplinas que objetivam a apreciação crítica do mundo social se qualifica, além do esforço de leituras pertinentes, com a apreciação de situações concretas e debates críticos.
Outro destaque se refere ao fato de que, apesar das dificuldades registradas quanto ao observar e narrar o cotidiano próximo, percebemos em muitos dos trabalhos a evidência de um efetivo estranhamento, que se deu em muitas direções, como dá a perceber a sumarização de algumas das situações acima registradas e em outros trabalhos não sumarizados aqui, que problematizaram, por exemplo, o papel majoritário das mulheres (sobretudo as mais velhas e as mães de família) na preparação de alimentos e manutenção do espaço residencial, mantendo-se um padrão de desigualdade (e exploração das mulheres) que é tradicional e ainda muito forte em nosso contexto nos diversos extratos sociais, apesar de todas as transformações no cotidiano promovidas pelo distanciamento social.
Assim, em diversos escritos, foi criticamente abordada a distribuição e organização dos ambientes da casa, e foi registrada a percepção sobre desigualdades entre diferentes estratos sociais; foram também problematizadas algumas situações de exploração laboral própria e de terceiros, além dos achados relativos aos pressupostos e a forma das relações intergeracionais atuais. Como aproximação mais efetiva em relação ao campo dos artefatos e do design, foram criticamente mencionadas, em mais de um trabalho, práticas consumistas próprias e da família; e foram identificadas inadequações no plano da ambientação, apontando-se soluções naturalizadas, evidenciadas mesmo antes da pandemia.
Terceiro terço da disciplina
No terceiro momento, o objetivo planejado foi a experimentação de uma situação pesquisa sob a temática do adorno corporal no contexto atual, utilizando-se unicamente informações advindas da internet, consolidado em trabalhos escritos em duplas.
Como leitura de sensibilização foi definido um recorte do texto do livro Tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss sobre a sociedade Kadiwéu, mais especificamente o tópico intitulado Nalike, em cujo conteúdo o autor contextualiza sua percepção sobre esta sociedade; e o tópico Uma Sociedade Indígena e seu Estilo, que somam juntos 27 páginas escaneadas. Com esses recortes, pensávamos em oferecer um vislumbre das estratégias deste autor para a busca e interpretação de significado das pinturas corporais dos Kadiwéu, entendida como uma expressão de materialidade ancestral que abriga considerável densidade de sentidos, assim como se poderia dizer das diversas expressões do vestuário e adereços da moda ocidental, guardadas as devidas especificidades contextuais. Além disso, era intensão promover uma sensibilização para as estratégias empíricas em pesquisa qualitativa, com suas descrições densas, desenhos, interpretações.
Os trabalhos realizados pelos estudantes trouxeram um e rico leque de temáticas, entre expressões da cultura artística dos jovens atuais, as reivindicações de expressão de gênero, e práticas de marcação identitária do corpo - como a estética corporal no Funk, Drag Queens, o sentido de estigma e as ressignificações da tatuagen no japão, o uso de máscaras durante a pandemia, entre outras. Sobre essas produções, problematizamos aqui um dos trabalhos, que abordou o uso de filtros de realidade aumentada na edição de fotos de perfil para redes sociais, corrente entre jovens. Destacamos desta elaboração certo ofuscamento no entendimento do conceito de pesquisa a partir da glamourização de certos artefatos do mundo digital, no caso os formulários eletrônicos. Os alunos de uma das equipes se apegaram à ideia de produzirem, eles mesmos, quantificações a partir da veiculação de um questionário via Google Forms, através de suas redes sociais.
O problema e a possibilidade de bias, além do quantitativo estatisticamente insuficiente para se perceber as recorrências dos achados, reside no fato de que o instrumento elaborado não trazia questões que possibilitassem a identificação do perfil socioeconômico e disposições culturais dos respondentes, não permitindo perceber as diferenciações entre as categorias de atores sociais alcançados e o ponto de vista a partir do qual faziam suas respostas/opiniões/apreensões da realidade. Supomos que a opção por essa estratégia atende ao glamour em torno da ferramenta tecnológica, além da ideia de praticidade e generalização das discussões, apesar da que a orientação previa do trabalho, ao contrário, pedia a busca de informações com a perspectiva qualitativa.
Alguns achados dos estudantes foram muito férteis - por exemplo, o de que há entre os jovens de hoje pouco discernimento e muita manipulação quanto às imagens das pessoas através das redes; em alguns casos, revelando a pouca acurácia na percepção do que poderia ter sido modificado nessas fotografias de rosto e corpo; em outros, a atitude de naturalização no lidar com essas imagens, que são apreendidas como análogos de fotografias de outras pessoas ou da próprias.
Conclusiones:
A respeito dos objetivos planejados e o que foi efetivamente cumprido, destacamos:
Quanto ao primeiro objetivo, que significava para nós fazer os participantes imergirem em leituras que os sensibilizassem para a abordagem qualitativa e intersubjetiva que marca a perspectiva antropológica, sua consecução tornou-se um desafio, dada a dificuldade de operacionalização de material mais adequado de leituras (mais extenso) e de experiências que cobrissem qualitativamente essas pretensões.
Quanto ao segundo objetivo, inserir o estudantes no campo do conhecimento antropológico através de estratégias que lhes trouxessem a perspectiva atual e também uma visão de devir na transformação deste pensamento, este foi um objetivo que consideramos seriamente relativizado (mutilado), já que muito pouco se conseguiu manter deste propósito.
Destacamos que na formulação anterior do programa desta disciplina constavam estratégias voltadas à uma visão diacrônica sobre as construções da teoria antropológica, promovida a partir da leitura de trechos de clássicos, de modo a levar os estudantes a considerarem como as abordagens da dimensão simbólica/cultural dos comportamentos coletivos foi e segue sendo (re)modelada. A esse respeito, a leitura do único trecho clássico solicitado foi motivo de grande alvoroço. Dada à impossibilidade de investimento em subsídios que permitissem uma visão contextualizada deste escrito, identificamos que não foi possível aos estudantes perceberem a densidade e jogo de posições do campo antropológico no momento da produção da obra (mais especificamente, a relação crítica do autor – Claude Lévi-Strauss em Tristes Trópicos – contrária às perspectivas funcionalistas e os vestígios da abordagem evolucionista, que era frequente nos estudos de comunidades tradicionais contemporâneas a este). Igualmente, o investimento do autor no aprofundamento da dimensão simbólica das ideias e estéticas da sociedade Kadiwéu a partir da ótica estruturalista, seus diálogos com as construções da linguística à época e suas contribuições à psicanálise, não foram efetivamente percebidos, dados os cortes no material de leitura, resultando em uma visão truncada do devir no pensamento antropológico.
Quanto ao objetivo da leitura crítica das publicações de internet, dado que o meio principal de acesso aos materiais que seriam explorados era a própria rede, consideramos que este objetivo foi bastante enfocado no programa, naquele Apesar de termos dedicando forte empenho ao tema da crítica sobre as manipulações políticas evidenciadas no Brasil atual com apoio de grupos em rede, não podemos deixar de registrar que os esforços da mídia voltados ao consumo, fortemente operantes quando se trata da internet aberta - em detrimento, inclusive, das restrições econômicas -, influenciaram, sobremaneira, senão as próprias análises, com certeza as temáticas específicas eleitas pelos estudantes para suas explorações.
Quanto ao quarto objetivo - a compreensão da dimensão simbólica e cultural dos artefatos - consideramos que este foi bastante exercitado, com mais ou menos sucesso, segundo a disponibilidade de cada participante em adicionar ao seu métier de análise funcional de projetos e produtos uma visão relativizadora do que é dado como “tecnicamente correto” neste campo de conhecimentos, sobretudo no que se refere às intersecções com o marketing, publicidade e a visões de funcionalidade integradas aos objetivos produtivos do capitalismo. Embora não tenhamos como afirmar esta impressão de modo mais preciso no escopo deste trabalho, percebemos que no próprio bojo da formação de design da UFPE evidencia-se uma parcela de elaborações voltadas a objetivos contraculturais, vindas como contraponto do mainstream - o objetivo naturalizado de integrar as cadeias da produção e economia capitalista. Neste sentido, a contribuição crítica das leituras e produções escritas da disciplina potencializa esta parcela de atividades do curso, na eleição de temáticas eleitas e populações relevantes objetivadas nos trabalhos projetuais.
Considerando ainda que imaginamos construir com este trabalho uma visão autocrítica que venha a contribuir com o nosso próprio fazer enquanto docentes no ensino da antropologia em programas de formação profissional de outras áreas, outro aspecto importante nessa reflexão refere-se à possibilidade de um efetivo estranhamento dos fenômenos vivenciados: não apenas quanto à experiência e ponto de vista do alunos, mas também o estranhamento relativo aos próprios pressupostos com os quais nós, docentes, adentramos à relação. Sobretudo quando esta é marcada pela ubiquidade dos contatos à distância.
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Palabras clave:
Ensino Remoto; Antropologia; Design; Covid19; Estranhamento