Descripción de la Publicación académica:
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas. Neste trabalho realizamos uma análise psicanaliticamente dirigida sobre a formação sócio-racial brasileira a partir da teoria lacaniana e dos estudos das relações raciais articuladas a filosofia, historiografia, sociologia, psicologia e a epistemologia afro-diaspórica. Consideramos os aspectos históricos da escravização e da colonização brasileira. Esta dissertação é, a rigor, fruto de um pensamento coletivo. Nosso objetivo foi localizar a singularidade da lógica do racismo no Brasil, seus efeitos na estrutura inconsciente, seus mecanismos de manutenção, e as resultantes subjetivas dessa experiência na estrutura social e na constituição do sujeito racializado. A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica como recurso prioritário; tomada como método de interpretação da realidade, a pesquisa é assumida neste trabalho como uma tomada de posição implicada na realidade pesquisada. Trata-se de uma produção discursivo-textual de agência social que não comporta uma explicação causal unívoca. Ancorados na dialética hegeliana; na lógica psicanalítica e na epistemologia africana o texto está organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, ressoando a denúncia que faz o movimento negro quanto ao apagamento epistêmico de autoras e autores negros ressaltamos que reconstruir e manter viva a memória de um povo é na verdade assegurar, no presente o seu lugar social. Afeto a concepção africana, sustentamos a partir do conceito de sankofa que não é tabu voltar atrás e procurar o que falta; No segundo capítulo realizamos um resgate histórico dos processos de invasão das Américas, do racismo ou sexismo, da colonização, da formação do eurocentrismo não imaginário moderno-colonial e da formação sócio-racial brasileira; No terceiro capítulo sustentamos que a classe dominante brasileira, amparada na incompreensão idílica e no mito da democracia racial, nega uma configuração social mediada pela raça que forme uma realidade perversa e cínica cuja ambigüidade pode ser caracterizada como moebiana; No quarto capítulo analisamos os impactos do racismo dentro das instituições de psicanálise. Apoiamos o necessário envolvimento público das instituições psicanalíticas e a auto-organização de duas psicanalistas negras e negras para as disputas institucionais no campo. Em conclusão, apresentamos uma síntese das informações que coletamos ao longo da pesquisa e postulamos o reconhecimento de um sujeito brasileiro, tanto para negros quanto para brancos, reconhecendo a emergência de um sujeito de incompreensão e de uma formação social rigorosamente ambígua, diverso e que foi historicamente barrado. Em um país de tantos psicanalistas e psicólogos, é urgente constituir uma psicologia e psicanálise autenticamente brasileira e envolvida em seus processos históricos e sócio-raciais marcados pela exclusão. Isso deve ser feito sem ignorar as relações concretas de poder e o papel da classe dominante nos processos de submissão racial e estratificação econômica. uma para negros e outra para brancos, reconhecendo a emergência de um sujeito de incompreensão e de uma formação social rigorosamente ambígua, diversa e historicamente barrada. Em um país de tantos psicanalistas e psicólogos, é urgente constituir uma psicologia e psicanálise autenticamente brasileira e envolvida em seus processos históricos e sócio-raciais marcados pela exclusão. Isso deve ser feito sem ignorar as relações concretas de poder e o papel da classe dominante nos processos de submissão racial e estratificação econômica. uma para negros e outra para brancos, reconhecendo a emergência de um sujeito de incompreensão e de uma formação social rigorosamente ambígua, diversa e historicamente barrada. Em um país de tantos psicanalistas e psicólogos, é urgente constituir uma psicologia e psicanálise autenticamente brasileira e envolvida em seus processos históricos e sócio-raciais marcados pela exclusão. Isso deve ser feito sem ignorar as relações concretas de poder e o papel da classe dominante nos processos de submissão racial e estratificação econômica. urge a necessária constituição de uma psicologia e psicanálise autenticamente brasileiras e envolvidas em seus processos históricos e sócio-raciais marcados pela exclusão. Isso deve ser feito sem ignorar as relações concretas de poder e o papel da classe dominante nos processos de submissão racial e estratificação econômica. urge a necessária constituição de uma psicologia e psicanálise autenticamente brasileiras e envolvidas em seus processos históricos e sócio-raciais marcados pela exclusão. Isso deve ser feito sem ignorar as relações concretas de poder e o papel da classe dominante nos processos de submissão racial e estratificação econômica.
Introducción:
O primeiro capítulo, História, memória e subjetividade teve por base um conceito renovado de história articulada pelo filósofo Vladimir Safatle (2015); uma descrição crítica destes conceitos em Descartes e a articulação destes em Hegel, Freud e Lacan, em diálogo com a concepção de história, memória e subjetividade elaborada pelo professor Muniz Sodré sobre a perspectiva africana dos povos de terreiro.
No segundo capitulo, Coordenadas histórico-subjetivas da segregação, realizamos uma recuperação histórica elaborada pelos pensadores decoloniais Joaze Bernardino-Costa & Ramón Grosfoguel (2016). Associando ao estudo do sociólogo Antônio Sergio Guimarães (2020) e outros autores, demonstraremos que, no contexto de formação de uma economia mundo em que se dá a acumulação primitiva do capital, o genocídio/epistemicídio praticado contra mulheres indo-europeias, judeus, muçulmanos, ameríndios e africanos marca a formação do eurocentrismo no imaginário dominante do mundo moderno/colonial. Trata-se de uma lógica que construiu as bases para as noções modernas do antijudaísmo, do antissemitismo, do racismo/sexismo e demais formas de segregação que constituíram a formação social brasileira.
De acordo com o professor Luiz Alfredo Garcia-Roza (2009), nesse contexto histórico de emergência do cogito e sua epistemologia, Descartes elabora uma subjetividade centrada no ego e forja uma noção de Eu apoiada em um dualismo, cujo espírito é “sem existência" (LACAN, 1998b, p.159). Autodeterminado pela certeza de si, o eu é solipsista e “exposto através da enunciação da transparência reflexiva do cogito” (SAFATLE, 2000, n.p). Esta formulação se tornou possível, como argumenta Dussel (2005), pela negação de outros povos e culturas não europeias. Lacan irá criticar essa figura dual e solipsista da racionalidade moderna pela localização de um ponto absolutamente irreflexivo, chamado sujeito (SAFATLE, 2000).
Avançaremos na análise da segregação e racismo no contexto da economia moderno-colonial e de sua influência na formação social brasileira, que passa de um periodo de segregação explicita a uma liberdade formal, ou seja, não relizada na prática. Destacaremos as contradições entre cor e status social na transição entre um regime estrito de segregação racial e a ordem econômica liberal, em que a cor como marcador da hierarquia social representa uma linha de separação, formalmente ausente, na experiência de uma “segregação” efetiva. Ao final deste capítulo, veremos que, para além da herança escravista, as desigualdades econômicas e sociais dos negros em relação aos brancos refletem a desvantagem negra nos ciclos acumulativos do capital material e simbólico.
No terceiro capítulo, Uma formação social moebiana, sustentaremos que a classe dominante, apoiada na idílica miscigenação e no mito da democracia racial, denega uma configuração social mediada pela raça; uma realidade perversa e cínica, cuja ambiguidade pode ser caracterizada como moebiana. Ressaltaremos os aspectos ambíguos de nossa formação sócio-racial (Sodré, 2021), seus afetos e a constituição de padrões de clivagem racial inseridos no imaginário social brasileiro, nas estruturas e instituições do Estado, e nas práticas sociais cotidianas (Almeida, 2018) a partir da elaboração lacaniana da banda de Moebios (LACAN, 1998).
Neste sentido, relacionaremos o capitalismo neoliberal – modelo econômico e forma de vida – aos processos de segregação racial que se originam no século XV, atravessam todo o período moderno-colonial e alcançam os nossos dias. Buscaremos ressaltar que o aspecto comum de uma vida mediada pelos mercados pasteuriza e homogeneíza as relações sociais, tencionando processos de exclusão e de negação das diferenças.
Veremos que, conforme aponta Martins (2020) que Bicudo (1945) aponta que os “fatores psicológicos do preconceito racial na sociedade brasileira” (MARTINS, 2020, p. 43) sequer puderam ser elaborados em aspectos da estrutura do sujeito como o ódio e a repulsa ao outro. As relações entre brancos e negros é baseada no recalcamento de hostilidades que persistem. Este processo pode ser percebido nas atitudes de submissão do preto em relação ao branco em razão do temor às reações do grupo dominante (MARTINS, 2020, p. 44). Por um lado, os processos e as práticas de dominação racial e econômica perpetrados pela classe dominante são evidentes. O ódio ao pobre e ao não branco são explícitos, apesar de não legalmente instituídos. Por outro lado, o subalternizado, capturado na malha ideológica do dominante, tende a manifestar essa hostilidade recalcada, identificando-se com o ideal da brancura, situação em que pode agir, no jogo social, assumindo posturas contra si mesmo e seus interesses de grupo. Neste sentido, demonstraremos que as hostilidades recalcadas estruturam uma política velada de ódio.
No quarto capítulo, Uma demanda historicamente construída: analistas negros para analisantes negros, trabalhamos uma questão de caráter “profissional” que consideramos relevante pela atualidade do problema e sua inserção no contexto deste Programa de Pós-graduação que relaciona Psicanálise e Políticas Públicas. De certo modo, os aspectos históricos e conceituais de nossa formação social e sua estrutura racializada, que percorreremos no primeiro, segundo e terceiro capítulos, assumirão uma elaboração prática.
A partir da elaboração de Rosa (2004) e Brousse (2003), analisaremos a relevância da psicanálise na leitura crítica das questões sociais; a ética e a política da psicanálise; os limites entre a neutralidade e o compromisso do analista. Por fim, seguiremos a argumentação de Dunker (2015) para evidenciar a responsabilidade pública da psicanálise diante das contradições sociais. Neste contexto veremos que, também no interior da psicanálise, confirma-se a ambiguidade e contradição de sujeitos enredados duplamente no contexto da psicanálise e da militância negra organizada.
Por fim, apresentaremos na conclusão uma síntese das informações que colhemos ao longo do trabalho.
[1] Este é o período de formação de um novo sistema histórico denominado por Wallerstein como o moderno sistema-mundo, ou a economia-mundo europeia ou a economia-mundo capitalista. O processo histórico que formou esse novo sistema cobriu os 200 anos do longo século XVI (GROSFOGUEL, 2016, p. 26).
Desarrollo:
Freud e Lacan atribuíram grande importância aos conceitos de história e memória, articulando seus efeitos na produção da subjetividade. Para Lacan, a história não é mais o passado ou o que pode ser historicizado não é o presente. Trata-se menos do que pode ser nomeado e mais do que o sujeito pode reconstruir. Segundo Garcia-Roza (2009), no início da Carta 52 (1896) dirigido a Wilhelm Fliess, Freud caracteriza fundamentalmente o "aparelho psíquico como um aparelho de memória" (GARCIA-ROZA, 2009, p.199). Na mesma direção, Lacan, seguindo Freud, considera que "o Outro é o lugar da memória" (LACAN, 1988h, p.581). Essa concepção psicanalítica em muitos aspectos se aproxima da epistemologia africana. Elaborada no contexto ritualístico, a memória não significa mera repetição, mas um processo de atualização em que não há contradição entre mito e história. Nessa temporalidade, importa muito pouco aos dados, pouquíssimo ou obsessivo realismo de dois fatos, e é a narrativa de uma experiência existencial veiculada por famílias, amigos, conhecidos, todas as pessoas vinculadas a uma comunidade (SODRÉ, 2017, p.74).
Conclusiones:
Ao negar a alteridade dos outros povos, os europeus eligiram a si mesmos como raça superior, uma construção fictícia na perseguição de suas próprias intenções. A dominação cultural começou no próprio instante em que o espanhol pisou a América e após ele, o português, o holandês, o inglês, o francês e o estadunidense seguiram no mesmo caminho. No entanto, a diacronia unilinear Grécia-Roma-Europa é apenas um invento ideológico do romantismo alemão de fins do século XVIII; uma manipulação conceitual do modelo ariano que se inicia no século XVI e marca a formação do eurocentrismo no imaginário dominante do mundo moderno/colonial. Trata-se de uma forma de legitimação e exploração dos povos não europeus apoiados na concepção do outro como destituído de religião, escrita e história, e, portanto, atrasados e inferiores em relação à Europa.
Da parte dos colonizadores, havia a necessidade objetiva de submeter os grupos dominados a uma hierarquia social definida por seus marcadores “ontológicos”. Daí porque no mesmo momento em que se estabelece o homem como abstração máxima da espécie, reificam-se antigas formas de classificação social determinadas pela raça. No entanto este não foi um processo que começou com a emergência do cogito expresso na forma Ergo Sum. Antes que Descartes pudesse enunciar o eu sou como entidade superior e universal, representante do homem, branco, cristão e capitalista, processos históricos de dominação e extermínio se realizaram com base no que Dussel nomeia Ergo Conquiro. Na base, estava um processo de genocídio/epistemicídio praticado desde o século XV contra judeus, muçulmanos, indígenas, africanos e pela acusação de “heresia” às mulheres indo-europeias acusadas de bruxaria.
A partir do século XVII, O Iluminismo e a Revolução Francesa modificaram a concepção totalizante da natureza humana. No quadro do racismo científico e do direito positivo, a afirmação dos direitos universais da pessoa humana – de todos iguais perante a lei –, exigiu a acomodação da assimetria das condições reais de desigualdade. A segregação, no interior dos discursos biológico-racistas e da regeneração da raça, fez com que pouco a pouco a luta entre as raças se constituísse em racismo de Estado. Com este “novo” aparato de tecnologia disciplinar do corpo, o controle biopolítico da população apela à eliminação das “raças inferiores”, das “sub-raças”, dos “indivíduos anormais”, dos ditos “loucos” e dos chamados “degenerados”. No Brasil, os colonizadores desenvolveram certo temor em relação aos negros, em parte pelo medo das insurreições, mas sobretudo porque temiam que a mestiçagem apagasse os marcadores de diferenciação e hierarquização das estruturas sociais. Na relação entre escravizados e a classe senhorial havia permanente conflito, resistência da parte dos escravizados e, apesar da brutalidade da escravidão, a sujeição não era total: o escravizado não perdia sua condição de sujeito ativo; mesmo configurado no ordenamento jurídico como propriedade, permanecia no escravizado a luta.
Ao lado da luta, e mesmo dentro do regime estrito de segregação, havia no Brasil um nível significativo de interpenetração entre brancos e negros. Obviamente em grau muito menor que os brancos, a população negra acumulara algumas propriedades materiais e simbólicas e constituíra uma relevante rede de apoio social e familiar. A partir de meados do século XIX, estas estruturas de apoio e permeabilidade social que se desenvolviam com a resistência explícita da classe senhorial foram fortemente abaladas com a aprovação da lei de terras a partir de 1850 e a opção pelo embranquecimento da população através da imigração de trabalhadores europeus. A classe senhorial optou por uma mudança lenta e gradual do sistema escravista e com a aprovação da referida lei, impediu o acesso de negros alforriados a um pedaço de terra pondo em curso a construção de inúmeras legislações que criminalizaram e estigmatizaram o negro livre.
Neste processo, a marca da cor é reforçada como fiadora da estratificação econômica e da hierarquia sócio-racial como um projeto de país. Os marcadores raciais definem os lugares sociais, ao mesmo tempo em que se fortalece a ilusão de que os descendentes de africanos e indígenas poderiam ascender socialmente. Primeiramente temida, a miscigenação passará a ser um instrumento de dominação desde que fosse controlada intencionalmente pela classe dominante branca. A miscigenação, assim, promoveria o embranquecimento do país que se realizaria pelo aporte de contingentes imigrantes europeus brancos, e seria a via da ascensão social.
Há, por um lado, um aspecto real da miscigenação como fator decisivo da formação social brasileira que não pode ser desprezado. Por outro lado, há um discurso em que estes processos são retratados de modo idílico. Se o postulado freyriano da democracia racial em 1932 representava o fim da narrativa racista e eugênica da intelectualidade que vigeu até os anos 1920, por outro criava uma áurea mística em torno da miscigenação, que pecava por não enfrentar as desigualdades reais sociais e econômicas.
Gilberto Freyre e outros autores buscaram enfrentar as questões do racismo atribuindo a condição de marginalização do contingente negro à herança do período escravista e colonial. Autores como Carlos Hasenbalg apontaram em outra direção, destacando a relação atual entre a exploração capitalista de classe e a permanência do racismo brasileiro. Contra a tese dos mitos fundadores nacionais, Hasenbalg explica a situação de exclusão da população negra por fatores estruturais contemporâneos da sociedade de classe, na qual o negro é submetido a processos que dificultam no presente seu acesso aos meios de desenvolvimento socioeconômico. O autor não relega a questão racial a segundo plano mas associa a afirmação da identidade étnico-racial à mobilização do contingente negro para luta de classe.
Entre 1930 e a formação do Estado Novo em 1937, o Brasil vive anos de inclinação autoritária; viés nacionalista e racista. A Ação Integralista Brasileira, cujo principal nome era Plínio Salgado, defendia abertamente práticas eugênicas como política de Estado. Na constituição de 1934 essa influência se fez sentir no texto constitucional onde está explicito que a educação deveria seguir um princípio eugenista. No entanto, a ideologia nazifascista no Brasil não se limitou a grupos brancos de direita e extrema direita. Figuras importantes da nacionalidade como Vinícius de Moraes e Abdias do Nascimento perfilaram-se na AIB na juventude, bem como frações importantes do movimento negro de direita, como a Frente Negra Brasileira.
Até 1964, a democracia racial representou um ideal de integração do negro na sociedade de classe. Durante o regime civil-militar de 1964 romperam-se os compromissos de inclusão: a democracia racial foi propalada como um dado já constituído da formação brasileira, e nos anos 1980 foi retomada pelo Movimento Negro Unificado como mito a ser denunciado. Enquanto foi discurso social hegemônico, até os anos 1980, a democracia racial produziu no Brasil um tipo de cisão da consciência. O racismo vivenciado na prática era negado no discurso dominante.
Partindo da constatação dos duplos miscigenação (temida e manipulada), democracia racial (como projeto real e como ideologia), segregação e interpenetração, Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos sustentam o postulado da ambiguidade como traço fulcral das relações sociais e raciais no Brasil. Historicamente, essa ambiguidade é associada por Gilberto Freyre às raízes ibéricas de nossa cultura, posto que o ethos da formação social espanhola e portuguesa teria origem na África, na dupla gênese oriental/ocidental presente na Península Ibérica. Elide Bastos sustenta que, desde os anos 1920, Freyre tornava positiva a miscigenação do Brasil, filho de três raças, dois climas e dois tempos históricos. No entanto, ela ressalva que esta relação produziu uma civilização baseada em relações mórbidas – sadistas-masoquistas – e que inverteu a relação senhor-escravo, introduzindo o papel civilizador do negro na sociedade brasileira.
Esta abordagem nos permitiu a hipótese de que a formação social brasileira é homologa à topologia da banda de Moebios. A banda de moebius é uma estrutura de apenas um lado, nela não há lado de dentro nem de fora; não é possível isolar-se nela numa ou noutra parte, a separação existe e inexiste simultaneamente. Esta figura topológica foi tomada por Lacan como metáfora do aparelho psíquico, uma forma de demonstrar que que não há uma cisão radical entre o psíquico e o social. Se a banda pode servir de metáfora de nosso sistema de pertencimento e relações sócio-raciais ambíguas, a rigor, apenas de modo artificial se pode alegar a cisão étnico-racial da sociedade brasileira.
Segundo a elaboração de Lacan, algo do exterior precede a interiorização da imagem do eu antes que este possa distinguir entre o eu e o não-eu, o dentro e o fora. A relação entre exterioridade/interioridade; indivíduo e social é de interpenetração. Segundo Guerreiro Ramos, os polos de uma polaridade podem se transformar nos termos de uma ambiguidade. Subjaz aqui o conceito hegeliano da dialética em que sujeito e objeto se alteram sucessivamente numa espiral. A mestiçagem e a interpenetração das culturas africana, indígena e europeia, característica predominante da configuração social brasileira, é o corte que constitui o elemento temporal que permite situar o ponto que funda o ethos nacional, no sentido moebiano, dessa formação.
Conforme indica Sodré, a classe dominante brasileira produz um idioleto, uma linguagem privada que se “coloniza” os extratos subalternizados da população e que atua na forma de um Supereu sádico. Nesta função a classe dirigente emula no imaginário social brasileiro a velha forma escravista. A psicologia do racismo é engendrada artificialmente através de técnicas de controle social racionalmente calculadas que determinam o laço social em geral e as funções econômicas/libidinais particulares do indivíduo. É concebível falar em racismo estrutural como mote político, mas, conceitualmente, trata-se de um racismo para-estrutural, “difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestações, porém eficiente em seus objetivos” (MUNAGA, 2017, p.17). Um racismo que, como argumenta Almeida, é uma ideologia que molda o inconsciente por padrões de clivagem racial inseridos no imaginário e em práticas sociais cotidianas.
É notável, a partir daí, a homologia entre o papel do Supereu como instancia psíquica que “comanda o jogo de relações de que depende toda a relação a outrem” (LACAN, 2009) e a elaboração de Sodré de que a classe dominante, na configuração social brasileira, assume uma posição análoga a um Supereu sádico (SODRÉ, 2021, n.p). Supereu e gozo, no sentido lacaniano, estariam estruturalmente relacionados: “gozar não é uma maneira de seguir nossas tendências espontâneas, é antes algo que fazemos como um tipo de dever ético estranho e distorcido” (ZIZEK, 2010, p. 99). O discurso social sobre o negro, no contexto atual, emerge de modo ambivalente revelando o caráter insensato no puro gozo perverso da classe dominante, “na destruição incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um excedente de gozo” (IBIDEM, p. 22,23).
Também o subalternizado submetido ao racismo participa de alguma maneira neste jogo, numa espécie de gozo masoquista. Não são suas disposições psicológicas que causam o processo; pelo contrário, a classe dominante na posição de Supereu sádico, define os termos desta relação por razões de interesse próprio que são completamente não psicológicas. O sádico atua como mandatário de poderosos interesses econômicos e políticos. É neste sentido que a lei estabelece as coordenadas do desejo do masoquista. Como nos lembra Adorno, o motivo subjetivo deste processo de submissão é o medo da exclusão e das sansões sociais vinculadas a raça e a classe. Sedimentado no indivíduo, transforma-se em uma segunda natureza pela valorização do outro, branco, rico, homem, europeu, e a negação de si mesmo.
Foi neste contexto de colonialismo, segregação e ambiguidade, por vezes não sabida, que no Brasil se estabeleceu a psicanálise, e se confrontou (e conformou) não apenas com essa formação social, mas também com as variações históricas do movimento negro e das negras psicanalistas. A aproximação entre a psicanálise e os movimentos sociais das maiorias subalternizadas, em especial do movimento negro, não se deu alheia ao contexto histórico-social. Setores conservadores da psicanálise tenderam a etiquetar demandas de reconhecimento da população negra, das feministas, de pessoas trans e LGBTQIA+ de modo geral, reduzindo-as ao identitarismo.
No entanto, parecem convergir a psicanálise e o movimento negro neste momento – 2022 – quanto à noção de parcialidade do sujeito e do objeto. Neste sentido, rebaixar a identificação como identidade fechada ou identitarismo, a psicanálise, na leitura das demandas raciais, limita o uso do significante identidade como expressão contrária à dimensão não-toda e portanto faltosa do sujeito e do objeto. E, o que é mais grave do ponto de vista analítico, transpõem ao campo dos estudos das relações raciais um enunciado cuja enunciação deve ser tomada com rigor no interior da psicanálise, carecendo de mediações outras quando aplicado a outros campos.
Na teoria psicanalítica, identidade parece remeter a imagem fixa de uma construção especular, algo de um eu cartesiano, imaginário. No entanto, nos estudos das relações raciais, especificamente sobre a comunidade negra, sua enunciação é diversa. Daí porque Domingos ao conceituar o significante negritude escrever que,
[...] no Brasil, negritude passou a ser um conceito dinâmico, o qual tem um caráter político, ideológico e cultural. No terreno político, negritude serve de subsídio para a ação do movimento negro organizado. No campo ideológico, negritude pode ser entendida como processo de aquisição de uma consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz africana. (DOMINGUES, 2005, p. 194[3]).
Neste sentido, identidade negra deve ser lida pelo vetor do conceito de negritude que no contexto brasileiro explícita seu modo de abertura. Na mesma direção cabe ressaltar o posicionamento político de algumas lideranças do movimento negro no Primeiro Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos, realizado em 2019. Neste sentido, a militantes do MNU, Monica Oliveira e Edson França falam de um projeto da identidade negra para o Brasil e não para os pretos:
Foi dentro do [Movimento Negro Unificado] MNU que nos anos 90, na primeira metade dos anos 90, que eu ouvi falar sobre um projeto político do povo negro para o Brasil. Foi o MNU que trouxe essa discussão do projeto político do povo negro para o Brasil pela primeira vez. É importante que a gente diga isso, o movimento negro não está chegando agora na discussão de um projeto político para esse país. E sempre foi dito, que não é um projeto de um Brasil para pretos é um projeto do povo negro para o Brasil. (OLIVEIRA, 2019, n.p.) [...]Nós não vemos possibilidade, de avançar no processo de libertação da população negra, de construção da nossa dignidade social política e econômica, se a gente abandonar a luta de classes, se a gente não olhar e pensar nos desígnios da nação, se a gente não tiver um projeto para o Brasil. (FRANÇA, 2019, n.p.).
De fato, os campos da negritude e da psicanálise possuem especificidades e mesmo questões políticas e epistemológicas de natureza irredutíveis. No entanto, é possível encontrar convergências. Asad (2019) chama a atenção para o aspecto estratégico do uso da identidade, que pode ser útil no sentido de favorecer estrategicamente a identidade étnico-racial como ponto de ancoragem inicial no processo de transferência entre analistas e analisantes, quando evocado por parte dos analisantes. Para Vargas (2020), a categoria analítica “racismo” não é suficiente para analisar as experiências de pessoas negras, seja no Brasil ou na diáspora mundial:
É inegável o poder que essa perspectiva analítica tem de aglutinar grupos sociais oprimidos díspares. Ao tornar as condições das vidas de mulheres negras comensuráveis às das mulheres não brancas, ou de cor (asiáticas, latinas, indígenas e outras), o manifesto abre a possibilidade da formação de blocos políticos multirraciais, que lutam contra as formas articuladas de opressão. Esses blocos políticos têm como base analítica e ética o reconhecimento de que tais opressões são o resultado da supremacia branca global. As opressões que cada grupo sofre não são necessariamente as mesmas, mas elas são comparáveis e traduzíveis umas às outras porque provêm de uma mesma fonte, qual seja, a supremacia branca cis-heteronormativa patriarcal e capitalista. E da comparação e reconhecimento das várias opressões sofridas por grupos não brancos diversamente categorizados (simultaneamente pela classe social, raça, gênero, sexualidade, entre outras variá-veis) resultam denominadores comuns, os quais ressaltam experiências compartilhadas (VARGAS, 2020, p.17-18).
De certo modo a proposição de Vargas se comunica com teoria lacaniana que situa o sujeito do desejo como o que deve ser reconhecido, mas cujo reconhecimento não é dado por uma outra consciência. No entanto, ao se opor ao conceito de autoidentidade da consciência, a psicanálise não pode se transformar na hipóstase da diferença e das expectativas de reconhecimento (SAFATLE, 2006). O verdadeiro desafio posto à psicanálise não está em defender a desintegração do sujeito, mas de encontrar a potência própria às experiências de não-identidade; quebrar o círculo narcísico do Eu e as trocas intersubjetivas previamente estruturadas. Trata-se de uma experiência que implica em articular uma definição não totalizante do horizonte formal de síntese do sujeito que sustentaria processos de reconhecimento contrários a identidades fixas. No quadro das análises que articulam a teoria psicanalítica e os estudos das relações raciais, isso implicaria em afirmar moebianamente, que branco também é negro sem deixar de ser branco; que negro também é branco sem reduzir-se à brancura. Para que esse real da constituição de um “sujeito brasileiro” possa emergir, há que se afirmar um para além do negro e para além do branco, reconhecendo a emergência de um sujeito da miscigenação e uma formação social que a rigor é ambígua e diversa, mas que foi historicamente barrada. Há que se fazê-lo sem ignorar as relações de poder e o papel da classe dominante nos processos de submissão racial e estratificação econômica.
[1] Língua da família banta, falada em Angola pelos ambundos.
[2] Grupo étnico banto que vive em Angola.
[3] https://www.revistas.usp.br/africa/article/view/74041/77683
Bibliografía:
SOUZA MONTEIRO, Pierre. Segregação e Laço Social: articulações entre psicanálise e relações raciais. 2022. Dissertação de Mestrado em Psicanálise e Políticas Públicas – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/18133/5/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20Pierre%20de%20Souza%20Monteiro%20-%202022%20-%20Completa.pdf.
Palabras clave:
psic. Relações raciais. Memória, história e subjetividade