Resumen de la Ponencia:
Em fevereiro de 2018, parte do povo indígena Anacé impactado pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém – CIPP, no Ceará, foi realocado do seu território tradicional para a Reserva Indígena Taba dos Anacé, em Caucaia, adquirida e construída pelo Governo do Estado. Tal movimento foi o ápice de um intenso processo de mediação, imposição e negociação, levando 163 famílias indígenas a estabelecer, a partir desse momento, novas relações de territorialidade em um local antes desconhecido – a Reserva.Anteriormente a esse momento, os indígenas Anacé já haviam sido impactados com uma primeira onda de desapropriações realizada no final da década de 1990 para instalação do Porto do Pecém e das primeiras indústrias integrantes do projeto do CIPP, dando origem a diversos assentamentos, distantes do território de ocupação tradicional.Ao longo do período de implantação do CIPP, os Anacé pressionaram para que o processo de regularização fundiária da Terra Indígena iniciasse. No entanto, o mesmo permanece, desde 2010, na fase dos estudos de identificação e delimitação pelo órgão indigenista oficial. No contexto de múltiplas categorias territoriais em confronto, essa comunicação é resultado de uma pesquisa que triangula os métodos bibliográfico, documental e realização de entrevistas, com o objetivo de compreender como as categorias de terras, tradicionalmente ocupadas ou não, territórios, territorialidades e processos de territorialização vão se desenhando e conformando realidades concretas, ora para fortalecer a luta dos povos indígenas ora para garantir o avanço do capital sobre esses territórios, esvaziando sentidos de luta. No emaranhado de categorias jurídico-políticas que definem, demarcam e configuram paisagens e relações, os Anacé continuam em disputa com o projeto imposto pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém, dando concretude a essas categorias a partir da produção, reprodução e criação da vida em toda sua potência. O CIPP, por sua vez, vai redefinindo o espaço e os bens comuns (água, ar, solos), no sentido de considerar a paisagem anterior um vazio econômico e, agora, preenchido de “desenvolvimento”. O que está em jogo nesse conflito não é só o domínio sobre o território, mas principalmente o campo do simbólico, da definição de modelos de desenvolvimento e de conceitos de terra, território e territorialidade, que se traduzem nas formas de produzir, gerir e se relacionar com os bens comuns, refletindo projetos antagônicos de presente e de futuro.
Introducción:
Em fevereiro de 2018, parte do povo indígena Anacé impactado pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém – CIPP, no Ceará, foi realocado do seu território tradicional para a Reserva Indígena Taba dos Anacé, em Caucaia, adquirida pelo Governo do Estado. Tal movimento foi o ápice de um intenso processo de mediação, imposição e negociação, levando 163 famílias indígenas a estabelecer, a partir desse momento, novas relações de territorialidade em um local, até então, desconhecido por elas – a Reserva.
Anteriormente a esse momento, os indígenas Anacé já haviam sido impactados com uma primeira onda de desapropriações realizada no final da década de 1990, para instalação do Porto do Pecém e das primeiras indústrias integrantes do projeto do CIPP, dando origem a diversos assentamentos, distantes do território de ocupação tradicional.
Ao longo do período de implantação do CIPP, os Anacé pressionaram para que o processo de regularização fundiária da Terra Indígena iniciasse. No entanto, o mesmo permanece, desde 2010, na primeira fase: a dos estudos de identificação e delimitação pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A morosidade e a suscetibilidade a pressões políticas do órgão indigenista oficial (TÓFOLI, 2012) são identificadas como motivos que permitiram que os indígenas fossem submetidos a uma nova onda de desapropriações, resultando, dessa vez, em uma solução político-fundiária anterior à Constituição de 1988, o modelo das Reservas Indígenas, previsto no art. 27 da Lei 6.001/73.
No contexto de múltiplas categorias territoriais em confronto, esse artigo é resultado de uma pesquisa doutoral em andamento que triangula diversos métodos: a) levantamento bibliográfico sobre as categorias terra, território e territorialidades na literatura antropológica, sociológica e da Geografia; b) levantamento bibliográfico junto à produção indígena acerca do CIPP e dos impactos perante os Anacé; c) documental, a partir de análise da legislação, de processos que tramitaram no Ministério Público Federal e na Justiça Federal no Ceará e na Fundação Nacional do Índio sobre os Anacé e o CIPP; d) consulta a sítios eletrônicos das empresas integrantes do Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
Esperamos, desse modo, compreender como as categorias de terras, tradicionalmente ocupadas ou não, territórios, territorialidades e processos de territorialização vão se desenhando e conformando realidades concretas, ora para fortalecer a luta dos povos indígenas ora para garantir o avanço do capital sobre esses territórios, esvaziando sentidos de luta. Por entre esses caminhos conceituais tantas vezes tortuosos, discordantes, conflitantes, a realidade vai emergindo em disputa, pondo em risco esquemas territoriais pré-estabelecidos teoricamente. O mundo da vida, muitas vezes, escapa às nossas fórmulas conceituais.
Desarrollo:
As ciências têm, em regra, a característica comum de elegerem um conjunto de conceitos os quais passam a ser tratados como instrumentos práticos de conhecimento geral de todas e de todos que partilham das bases de uma dada disciplina científica. Como lugares comuns, muitos conceitos passam a ser amplamente utilizados, muitas vezes, sem uma reflexão mais detida e cuidadosa. No entanto, “a economia na denotação e na conotação pode tanto estimular o pensamento como restringi-lo”, razão pela qual há a necessidade de “examinar de perto nosso instrumental intelectual” (WOLF, 2003, p. 307).
No caso das categorias terra e território, esse cuidado epistemológico se torna ainda mais relevante, uma vez que são categorias centrais a outros campos disciplinares, como a Geografia, e que, incorporadas às Ciências Sociais e à História, vão ganhando novos contornos e complexidades. Desse modo, não devemos tratar as categorias terras e territórios como dadas ou auto-evidentes. Elas são polissêmicas e estão em permanente disputa, por traduzirem projetos e concepções de relação com o espaço vivido muitas vezes em franca oposição.
Nos últimos anos, a categoria território tem sido usada amplamente (RAYNAUT, 2014), muitas vezes substituindo a pulsão analítica da categoria “terra” que vigorou durante muitos anos no âmbito dos estudos agrários e do campo (TAVARES DOS SANTOS, 1991), passando a ocupar uma centralidade intelectual, especialmente no contexto das críticas direcionadas ao desenvolvimento, incluindo grandes obras de infraestrutura.
Tanto a categoria “terras” quanto a categoria “territórios” não apresentam um sentido unívoco no âmbito da literatura acadêmica, embora exista uma linha argumentativa de que “o ‘território’ remete a uma realidade mais ampla e complexa do que aquela recoberta pelo termo ‘terra’” (GUEDES, 2018, p. 204). Essa polissemia do termo “territórios” é analisada por muitos autores, tendo destaque os trabalhos de Haesbaert (2020) e de Fernandes (2008), que propõem tipologias para compreensão do conceito.
Chamando a atenção para as múltiplas formas pelas quais pode ser lido o território, Haesbaert (2020) destaca que, mais que um conceito, o território é uma categoria e, como tal, pode ser tratada a partir de três modalidades: categoria da prática, categoria normativa e categoria de análise.
A primeira, o território como categoria da prática, envolve a concepção de território no senso comum, tal como proposta no cotidiano da maioria dos grupos sociais, próxima daquilo que os antropólogos denominam categoria nativa. Uma segunda leitura, a do território como categoria normativa, é aquela que, mais do que buscar responder a “o que é” o território, desvenda “o que ele deve (ou deveria) ser”. Essa perspectiva aparece, por exemplo, nas chamadas políticas territoriais do Estado. Finalmente, o território pode ser visto como categoria de análise, abordagem prioritária no âmbito acadêmico, em que território se transforma num conceito teórica e metodologicamente elaborado através da reflexão intelectual (HAESBAERT, 2020, p. 141-142).
Para Fernandes (2008, p. 200):
[...] O território é utilizado como conceito central na implantação de políticas públicas e privadas nos campos, nas cidades e nas florestas, promovidas por transnacionais, governos e movimentos socioterritoriais. Essas políticas formam diferentes modelos de desenvolvimento que causam impactos socioterritoriais e criam formas de resistências, produzindo constantes conflitualidades. Nesse contexto, tanto o conceito de território quanto os territórios passam a ser disputados. Temos então disputas territoriais nos planos material e imaterial.
Tendo essa disputa como cenário, Fernandes propõe a tipologia de “território uno”, compreendido como espaço de governança que tende a “ocultar os diversos territórios e garantir a manutenção da subalternidade entre relações e territórios dominantes e dominados” (2008, p. 200); e a tipologia de “território diverso”, que compreende a existência de “outros tipos de territórios fixos e fluxos, materiais e imateriais, formados pelas diferentes relações sociais e classes sociais” (FERNANDES, 2008, p. 201).
Há, contudo, zonas de toque entre as categorias terra e território. Por exemplo, no trabalho de Alfredo Wagner Berno de Almeida, a categoria “terras”, com a qualificadora “tradicionalmente ocupadas”, incorpora as dimensões que fundamentam o conceito de território, já que, segundo o autor, terras tradicionalmente ocupadas “expressam uma diversidade de forma de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza” (BERNO DE ALMEIDA, 2004, p. 9):
Em termos analíticos, pode-se adiantar que tais formas [terras tradicionalmente ocupadas] designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle se dá através de normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares que compõem uma unidade social. [...] A territorialidade funciona como um fator de identificação, defesa e força. Laços solidários e de ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física considerada comum, essencial e inalienável, não obstante disposições sucessórias porventura existentes. (Idem, p. 10).
A descrição analítica de terras tradicionalmente ocupadas, conforme proposto por Berno de Almeida, aproxima-se da compreensão de território, enquanto categoria da prática, de acordo com Haesbaert, indicando que as fronteiras teóricas entre as categorias de terras e territórios não são tão definitivas assim, havendo pontos de sombreamento.
Nas múltiplas possibilidades de conceituação de território, conforme analisado por Guedes (2018), interessa-nos particularmente aquela que utiliza essa terminologia para evocar ou descrever um modo de vida particular, “sobretudo quando o que está em jogo são povos, grupos e comunidades ameaçados ou afetados por frentes ou projetos de desenvolvimento” (GUEDES, 2018, p. 201). Quando contraposto à noção de terras, esses territórios como modos de vida particulares e em relação aos bens comuns vão além de uma mera reivindicação por direitos de propriedade, mas aliando-se à dimensão da identidade e da autonomia, essas “expressões espaciais de um modo de vida” (GUEDES, 2018, p. 201) falam do poder de definirem-se e de definirem o que consideram ser seus projetos de presente e de futuro.
O que definiria o território e uma territorialidade, que corresponde à representação das formas de uso dos territórios (FERNANDES, 2008), seria, em primeiro lugar, o poder (HAESBAERT, 2008; SOUZA, 2009), inclusive de definição e de reconhecimento. Ao enfatizarmos as dimensões políticas do território, buscamos colocar em destaque as relações assimétricas de poder que são confrontadas na reivindicação pelo direito ao território por diferentes movimentos sociais.
Por esse motivo, compreendemos que as categorias territoriais como terra, território e territorialidade não podem ser analisadas genericamente ou abstratamente, sendo necessário conferir-lhes densidade analítica a partir das dinâmicas concretas que conformam a realidade, muitas vezes, em disputa. Nesse sentido, procuramos compreender os conflitos territoriais não sob um viés negativo, mas recuperando a idéia de que esses conflitos podem contribuir para testar, problematizar e avaliar a adequação do cabedal de conceitos instituídos e postos à disposição. Nesse contexto, apresentaremos a seguir o conflito envolvendo o povo indígena Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará.
O Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), localizado nos municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, a oeste da capital cearense, compreende a instalação e operação, em uma mesma base territorial, de um conjunto de indústrias de grande porte, como siderúrgicas e termelétricas, associadas a facilidades logísticas, como um porto de águas profundas, ferrovia, rodovias. Sua construção inicia na década de 1980, quando o Ceará, visando obter vantagens logísticas comparativas a outros estados do Nordeste, que o fariam ganhar a corrida pela instalação de uma nova refinaria da Petrobrás na região, deu início à construção de um novo porto, o do Pecém (AQUINO, 2000).
Desde o início, o Estado assumiu, portanto, um papel não só de indutor da atividade empresarial e econômica por meio de incentivos fiscais, mas era, ele mesmo, o empreendedor, ao tomar para si o papel de construir e gerir um Porto, criando, por lei, a Cearáportos, com capital majoritariamente público.
Ocorre que, diferentemente do discurso oficial, instituído na ideia de vazio demográfico e de local com atraso no desenvolvimento, a área destinada à implantação do Porto do Pecém e de outros empreendimentos que compunham o CIPP era ocupada por inúmeras famílias, as quais começaram a ser desapropriadas no final da década de 1990.
A primeira onda das desapropriações, entre os anos de 1996 a 1999, teve como saldo centenas de famílias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos de Novo Torém, Forquilha e Monguba, no município de São Gonçalo do Amarante e entorno. Nesse período, diversas organizações civis e religiosas de Fortaleza foram solicitadas a prestar apoio às famílias atingidas. Assim, inicialmente a Pastoral do Migrante e a Pastoral dos Pescadores e, posteriormente, também o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), passaram a atuar na área, apoiando as iniciativas dos moradores atingidos pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
O movimento de resistência diante das desapropriações e das remoções de famílias possibilitou que, no processo de luta diante da violência da iminente desterritorialização, muitas delas começassem a recontar algumas histórias. Histórias que os pais e avós haviam lhes contado, mas que, pelo medo, foram sendo enterradas na memória. Histórias dos encantados, das danças, dos rituais, das curas, dos massacres, das resistências foram sendo percebidas como comuns ao grupo: o pai de um havia contado a mesma história que a avó de outro.
Durante o período de articulação e mobilização dos moradores de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, que passaram a se reconhecer como povo indígena Anacé, houve uma suspensão na onda de desapropriações nessa região. Logo após a instalação dos primeiros empreendimentos, impasses políticos e pressões de outros estados para receber as indústrias acabaram “atrasando” a conclusão do CIPP (AQUINO, 2000).
Em janeiro de 2007, entretanto, o Governo Federal instituiu o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), possibilitando a retomada do projeto do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, em razão dos amplos incentivos federais. Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriações na região de São Gonçalo do Amarante e Caucaia. Embora essa fase tenha sido realizada pelos órgãos estaduais de forma semelhante à ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem garantir o direito à informação às populações impactadas (ARAÚJO, 2008), diferenciou-se pela resistência dos moradores, principalmente daqueles que já se identificavam como povo indígena Anacé.
A ação coletiva dos Anacé orbitou em torno de estratégias que disputaram, com o Estado, narrativas e posições, especialmente no que se refere aos sentidos de desenvolvimento, a partir de relações diferenciadas com o território. Assim, os indígenas passaram a traduzir suas experiências do particular para o geral, do pessoal para o institucional, mobilizando atores e instituições, o que os possibilitou entrar, de vez, na cena pública.
Após pressão de diferentes órgãos e do povo indígena Anacé, a Fundação Nacional do Índio constituiu grupo técnico com a finalidade de realizar estudos de natureza etno-histórica, antropológica e ambiental, necessários à identificação e delimitação da área de ocupação tradicional do povo Anacé, composto por membros da Funai, do Governo do Estado, dos municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante.
Após os primeiros levantamentos realizados pelo Grupo de Trabalho, a Funai concluiu pela não existência da tradicionalidade na ocupação Anacé nas áreas de Matões e Bolso, justamente as mais impactadas pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Interessante ressaltar que as áreas em que não se reconheceu a tradicionalidade na ocupação indígena eram justamente os locais de maior interesse político-econômico, inclusive, onde se pretendia instalar a Refinaria Premium II da Petrobrás. Para os indígenas, a manifestação da Funai foi um golpe, abrindo espaço para um novo ciclo de despojo e de remoções forçadas (SOUZA, 2019).
Diante da liberação das obras da Refinaria, algumas famílias indígenas reagiram. Não queriam repetir a história das desapropriações da década de 1990 e o esfacelamento da vida que eles presenciaram. Parte delas decidiu não sair. Por outro lado, foi proposto, no âmbito do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, um Programa Emergencial de realocação de 163 famílias Anacé das aldeias de Matões e Bolso impactadas pelo CIPP, para uma área a ser adquirida pelo Estado do Ceará e pela Petrobrás.
Assim, em 22 de novembro de 2013, foi assinado o Termo de Compromisso celebrado entre o Estado do Ceará, a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, a Fundação Nacional do Índio – Funai, as comunidades indígenas Anacé de Matões e Bolso, o Ministério Público Federal e a União, com o objetivo de, de um lado, assegurar a liberação do terreno onde seria implantada a Refinaria Premium II e os demais empreendimentos que compunham o Complexo Industrial e Portuário do Pecém e, de outro, a constituição da Reserva Indígena Taba dos Anacé, local onde seriam realocadas as famílias indígenas.
Com a mudança para a Reserva Indígena Taba dos Anacé, em fevereiro de 2018, iniciou-se um novo ciclo no processo de territorialização desse povo indígena, em especial, no que se refere às 163 famílias que foram realocadas.
É inegável que os Anacé foram profundamente afetados pela desterritorialização e recomeço em um novo território antes desconhecido por eles. Nesse contexto, Souza destaca como os Anacé referem-se a eles mesmos como mudas que murcharam no processo de remoção:
Tínhamos nossos costumes, práticas culturais produzidas pelas comunidades que, em nossa nova moradia ainda estamos nos familiarizando com ambiente. Os rituais ainda não acontecem com a mesma intensidade que tínhamos, mas se entende que estamos inseridos em uma nova realidade. A socialização entre as famílias contribui para o desempenho conjunto de todos, a desterritorialização é vista entendendo que a mudança possibilitou permanecermos juntos em um ambiente a qual ganharemos vínculos conjuntamente.
[...]
Nos depoimentos, a expressão de sermos mudas murchas remete a mudança de Matões para a Reserva, estando relacionado a difícil situação que nos encontramos, mas que vai passar rápido, pois estamos plantados na nova terra, e iremos alcançar novamente nossos laços simbólicos. Todos os participantes evidenciaram que todas as reestruturações só estão sendo possíveis com a união dos moradores, sendo essa a sustentação da resistência para reconstruirmos (SOUZA, 2019, p. 55).
A remoção para a Reserva Indígena tem levado os Anacé a reconstruir suas relações consigo mesmos, com as matas e com os encantados. Não obstante a Reserva seja vista como terra desconhecida, os indígenas reafirmam a sua “capacidade de transformar a Reserva em território tradicional tendo como base a união” (SOUZA, 2019, p. 58), porque para os Anacé, tradicional é onde se tem história, não no sentido cronológico do termo, mas história no sentido de relação: história dos encantados, das visagens, da produção de alimentos, do preparar e comer junto, dos rituais, da união, da luta.
Em paralelo à implantação da Reserva Indígena, não houve nenhuma manifestação conclusiva da Funai quanto à área reivindicada pelos indígenas Anacé correspondente às demais aldeias, que permanecem no território tradicionalmente ocupado desde sempre e que foram igualmente estudadas pelo Grupo de Trabalho de 2010 de identificação e delimitação. Apenas em outubro de 2018, a Funai publicou a Portaria nº 1.354, de 16 de outubro de 2018, constituindo novo Grupo Técnico com o objetivo de realizar os estudos complementares para o reconhecimento da Terra Indígena Anacé, o que incluía as aldeias acima nominadas, estando pendente, desde então, a conclusão dos estudos e a elaboração do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena.
Desse modo, do ponto de vista indígena, como resultado do conflito com o CIPP, identificamos um processo de fragmentação e dispersão territorial não abordado nos estudos de impacto socioambiental dos empreendimentos. Até o momento, mapeamos, pelo menos, quatro territorialidades específicas Anacé: (1) a Reserva Indígena Taba dos Anacé, onde se encontram as 163 famílias realocadas; (2) a Terra Indígena Anacé (em estudo pela Funai), correspondente às aldeias de Japuara, Santa Rosa, Mangabeira, Cauípe, dentre outras; (3) os indígenas que foram submetidos às primeiras desapropriações e encontram-se nos assentamentos de Novo Torém, Forquilha, Monguba e outros; (4) os indígenas que permanecem no território declarado de utilidade pública para fins de desapropriação para implantação e expansão do Complexo, os quais convivem com a indefinição fundiária: estão lá, mas a qualquer momento podem ser obrigados a sair.
No caleidoscópio que conforma essa realidade, podemos observar a disputa em torno das categorias territoriais que se digladiam em múltiplos planos (institucional, legislativo, empresarial, da concretude da vida), fazendo-nos reconhecer que antes do CIPP esse local já era um território para muitas coletividades, incluindo o povo indígena Anacé. É interessante, portanto, percebermos como, sob uma mesma base geográfica, podem se situar mundos com diferenças abissais entre si, um fenômeno que Haesbaert (2008) denomina de multiterritorialidade e no interior do qual devem ser lidos os processos de desterritorialização e reterritorialização.
Essa salada conceitual nos interessa na medida em que representa uma chave analítica importante para compreendermos os conflitos em jogo. Seguindo essa trilha, a Constituição de 1988 inaugurou, no âmbito normativo, o conceito de “terra tradicionalmente ocupada”, para orientar as políticas destinadas ao reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas sob seus territórios.
O artigo 231, parágrafo 1º da Constituição Federal detalha esse conceito, o que, no mundo do “dever ser”, representa uma tradução normativa, ainda que aproximada, da idéia de território para os diferentes povos indígenas:
Art. 231, § 1º: São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
De modo a dar concretude a esse conceito, a Constituição determinou ser papel da União demarcar as Terras Indígenas, segundo os usos, costumes e tradições dos povos indígenas (art. 231, caput, Constituição).
Diferentemente do conceito de terras tradicionalmente ocupadas, em vigor a partir de 1988, a legislação anterior, especialmente o Estatuto do Índio (Lei nº 6001/73), trazia outras modalidades territoriais aplicáveis aos povos indígenas, com destaque para as chamadas áreas reservadas. De acordo com essa lei, a União poderia estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde poderiam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais. No contexto das áreas reservadas, as reservas indígenas são locais destinados “a servir de habitat a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência” (art. 27 da Lei nº 6.001/73). A principal diferença entre as terras tradicionalmente ocupadas e as reservas indígenas está no fato de que aquela consagrada na Constituição de 1988 representa o reconhecimento, pelo Estado, de uma situação jurídica pré-existente, ou seja, o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, assegura aos povos indígenas o direito ao presente e ao futuro, uma vez que pressupõe o reconhecimento, enquanto terra tradicionalmente ocupada, das áreas necessárias à reprodução física e cultural dos povos indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições. Enquanto as reservas indígenas são áreas adquiridas pelo Estado para assegurar a subsistência de um grupo indígena, localizando-se em território diverso da área de ocupação tradicional desse grupo.
No caso Anacé, desde 2010, a Fundação Nacional do Índio realiza estudos para fins de identificação e delimitação da terra tradicionalmente ocupada por esse povo indígena. Até o momento, contudo, foi produzido apenas um relatório preliminar que excluiu dessa proteção constitucional as aldeias de Matões, Bolso, Baixa das Carnaúbas e Currupião, o que implicou na criação de uma Reserva Indígena, nos termos do Estatuto do Índio. Dentre as justificativas apresentadas no Relatório Preliminar elaborado pela Antropóloga Coordenadora do GT de 2010, Siglia Zambrotti Doria, para excluir aldeias Anacé do conceito constitucional de “terra indígena” consta a que segue:
Considerando estes e outros aspectos abordados neste Relatório, a proposta de delimitação aqui apresentada abarca as terras atualmente habitadas por indígenas Anacé e as que o foram no passado próximo, mas exclui parte das antigas terras de ocupação tradicional dos Anacé na região litorânea, resultado de um processo muito bem sucedido ao longo dos últimos cento e trinta anos de expulsão dos remanescentes indígenas que nelas habitavam (DORIA, 2012, p. 372).
Ao contrário do afirmado, não só havia famílias indígenas nesse local como parte delas foi desterritorializada em 2018, quando da finalização das obras da Reserva Indígena. Havia, ainda, infraestruturas instaladas no local, especialmente a escola indígena “Direito de Aprender do Povo Anacé” mantida pelo Governo Estadual.
Na solução de compatibilização de interesses promovida pela Funai no contexto do conflito entre o CIPP e os Anacé, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas inserto na Constituição foi amoldado e remodelado. O relatório simplesmente negou a presença indígena na região litorânea, justamente onde está instalada a maioria das indústrias que integram o CIPP, considerando que esses locais se tratavam de “antigas terras de ocupação tradicional”, tendo sido bem-sucedido o processo de expulsão dos remanescentes indígenas. O Relatório, portanto, não só negou a presença indígena no território, como negou o direito à identidade daqueles indígenas, tratados apenas como remanescentes.
Nesse contexto, o Termo de Compromisso que deu origem à Reserva Indígena Taba dos Anacé assegurou um tipo de negociação política em que as partes estavam posicionadas de forma desigual, sendo um tipo de pacificação do conflito legitimado por aqueles que deveriam proteger e promover os direitos dos povos indígenas, incluindo o próprio Ministério Público Federal, signatário do acordo.
Conclusiones:
No emaranhado de categorias jurídico-políticas que definem, demarcam e configuram paisagens e relações, os Anacé continuam em disputa com o projeto imposto pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém, dando concretude a essas categorias a partir da produção, reprodução e criação da vida em toda sua potência. Um território enquanto categoria da prática (HAESBAERT, 2020), que representa, além de tudo, uma importante ferramenta de luta. O CIPP, por sua vez, vai redefinindo o espaço e os bens comuns (água, ar, solos), no sentido de considerar a paisagem anterior um vazio econômico e, agora, preenchido de desenvolvimento.
O que está em jogo nesse conflito não é só o domínio sobre o território, mas principalmente o campo ontológico e cosmopolítico da definição de modelos de desenvolvimento e de conceitos de terra, território e territorialidade, que se traduzem nas formas de produzir, gerir e se relacionar com os bens comuns, refletindo projetos antagônicos de presente e de futuro.
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Palabras clave:
Territórios, territorialidades, Anacé; Complexo Industrial e Portuário do Pecém