Resumen de la Ponencia:
Segundo várias instituições mundiais, a pandemia da Covid-19 veio agravar as históricas vulnerabilidades de inúmeros países em diversos continentes, nomeadamente na América Latina e, em particular, no Brasil. As consequências econômicas, políticas e sanitárias da pandemia da Covid-19 reacenderam o debate acerca das causas exógenas e endógenas das desigualdades sociais e suas diversas formas e manifestações. Perante este contexto emerge a questão: quais os impactos da Covid-19 sobre as pessoas mais desmunidas de recursos em termos de fome, pobreza, exclusão e desigualdade social, em contracorrente com o que se designa de desenvolvimento e respeito pela diversidade étnico-cultural? Esta comunicação busca instigar a reflexão crítica acerca dos fenômenos multidimensionais da pobreza e da exclusão e, em última instância, da desigualdade social. Sem pretender dar uma resposta cabal à questão colocada, os autores do texto, fazendo uma breve revisitação das teorias dos sociólogos clássicos, acrescida da perspectiva decolonial e sobretudo duma leitura mais específica a partir do referencial teórico e contributo de Amartía Sen sobre privação de recursos e seus três enfoques sobre a pobreza, analisam os obstáculos à realização do desenvolvimento como liberdade, ou seja, no acesso a direitos básicos e fruição de bens materiais, educativos e cultural-simbólicos que potenciem justamente o desenvolvimento societal e de cada um dos cidadãos/ãs. Considerando a relevância social e cientifica deste debate, importa aferir os impactos da pandemia nas liberdades substantivas das diversas dimensões da vida das pessoas na América Latina e Caribe, especialmente no Brasil. E, a respeito do conceito de desigualdade, foi convocada, na esteira de vários autores de diversas orientações, não só uma abordagem multidimensional, como plurinível, ou seja, analisando o fenómeno a nível societal ou socio-estrutural, organizacional e interativo. Para além da revisão bibliográfica, as técnicas de pesquisas selecionadas são a análise documental e estatística e a recolha de dados secundários, sobretudo a partir de entidades ou agências internacionais como CEPAL, OCDE, FAO, Rede Penssan, UNICEF e Banco Mundial relativamente a diversos indicadores sobre segurança dos moradores, segurança alimentar, dificuldades de aprendizagem de crianças e adolescentes na sequência de situações de empobrecimento e fome, privações e ausência de recursos informáticos, não compensados por políticas públicas eficazes. Concluindo, para além da reprodução das já preexistentes desigualdades de classe, de gênero e étnico-raciais, agravam-se ainda mais as históricas vulnerabilidades econômicas e sociais e comprometem-se inclusive os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030.
Introducción:
No início de 2020 a pandemia da Covid-19 e seus consequentes efeitos econômicos, políticos e sociais reacendeu, não só no Brasil como a nível mundial, o debate sobre as causas exógenas e endógenas das desigualdades sociais e suas diversas formas e manifestações, como territoriais, etárias, de classe, de gênero e étnicas.
No primeiro semestre de 2021, mais de um ano após a decretação de estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional brasileiro, a quantidade de famílias reconhecidas pelo governo federal brasileiro vivendo em situação de vulnerabilidade social quase que triplicou, se comparado com o ano de 2019. Em maio de 2021, 39,1 milhões de famílias brasileiras foram beneficiárias de programa de transferência direta de renda, embora se estime que esse público vulnerável englobe 77,2 milhões de pessoas, representando 36,5% da população brasileira (BRASIL, 2021).
Perante este contexto, alguns questionamentos emergem de seguida: quais os efeitos econômicos, políticos e sociais da pandemia da Covid-19 sobre as pessoas mais desmunidas em termos de fome, de pobreza, de exclusão e de desigualdade social, em contracorrente com o que se designa como desenvolvimento sustentável e respeito pela diversidade étnico-cultural?
Para contribuir ao debate sobre os efeitos da pandemia da Covid-19, este artigo busca instigar reflexão crítica acerca dos fenômenos multidimensionais da pobreza, da exclusão e, em última instância, da desigualdade social. Sem a pretensão de ser uma resposta cabal às questões acima expostas, ao realizar uma leitura mais complexa a partir do referencial teórico de Amartya Sen sobre pobreza e privação de capacidades como o pólo oposto do conceito de desenvolvimento como liberdade ou capacidade de dispor sobre recursos, o artigo visa oferecer um contributo aplicado não linear ao debate sobre aspectos multidimensionais da pobreza e da desigualdade, nomeadamente no quadro dos impactos da pandemia da Covid-19 e respectivo grau de liberdade substantiva, ou sua ausência, nas diversas dimensões da vida das pessoas na América Latina e Caribe, especialmente no Brasil.
Desarrollo:
Revisitação dos conceitos pobreza, exclusão social e desenvolvimento: as perspectivas dos sociólogos clássicos e o contributo de Amartya Sen
As questões em torno da pobreza, da exclusão e da estratificação social foram abordados pelos clássicos da sociologia: uns como os estrutural-funcionalistas como fenómenos inerentes à sociedade, inevitavelmente estratificada, ora buscando aliviar o ‘mal-estar social’ provocado pela perda do laço socio-moral através da ação mitigadora de ‘corpos intermédios’ beneméritos, como propõe Durkheim (1977/1893), ora legitimando-a, como sustenta a teoria liberal e meritocrática (Parsons 1988/1951, Davis e Moore 1976/1945), o que levou Silva (2009) a resumir as várias abordagens teóricas sobre exclusão e desigualdades social, começando por deslindar e criticar o posicionamento defetista e legitimador desta teoria funcionalista em que uma eventual tensão social.
Para Weber (1978/1920), as situações de pobreza e exclusão social dever-ser-iam ora ao resultado da competição e controle de recursos por parte de um grupo em detrimento de outro ou do seu fechamento estatutário no controle de poder e demais recursos. Por fim, ainda na interpretação de Silva (2009), para Marx e Engels (1998/1848) a exclusão e a desigualdade social resultaria do controle dos meios de produção por parte de uma classe social que explora e domina outras classes subalternas, a que poderíamos acrescer a perspectiva decolonial (Quijano 2000, Dussel 2006), em que este processo de destituição, pobreza e exclusão social assentaria na base não só da classe como sobretudo da raça, enquanto fator constitutivo das formas de exploração e dominação de povos indígenas e negros desde o processo de colonização no século XVI.
Amartía Sen (1992, 1999) concebe o desenvolvimento como liberdade não apenas nem sobretudo na sua concepção jurídico-formal, mas enquanto poder de dispor de recursos de várias ordem de modo a exercer a cidadania, ou seja, uma liberdade que, para além da eliminação das formas de escravatura, servidão e patriarcado e da garantia da democracia, das liberdades e dos direitos cívico-políticos, compreende disponibilidades e oportunidades econômicas para a sobrevivência e a vida de qualidade, acesso à educação e à cultura e outros bens constitutivos do desenvolvimento societal, assim como a expansão das capacidades dos indivíduos. Segundo Silva (2001), esta visão de Sen, sem convergir totalmente com os pressupostos da abordagem marxista (cf. Marx e Engels 1998/1848) que aliás não partilha, aproxima-se dela em alguns dos seus objetivos de desenvolvimento humano, e segue, mesmo sem lhe fazer a referência, a esteira do conceito weberiano de liberdade (cf. Weber 1978/1820) como poder de disposição sobre recursos (verfügunsgewalt). Para Amartía Sen, se o desenvolvimento não pode ser apenas avaliado pelo critério tradicional do crescimento econômico nem da renda per capita e, muito menos, na base da liberdade em termos jurídicos, tão pouco restringe o conceito de pobreza à questão da renda, embora de modo algum a despreze, dado que o seu quantitativo permite ou não ser a base da subsistência de cariz biológico. Ou seja, Amartya Sen (1992), ao definir o complexo conceito de pobreza, não apenas lança luz sobre a multidimensionalidade do conceito de pobreza, mas também o aproxima da noção de desigualdade. Assim, a avaliação das diferentes perspectivas de noção geral que envolve o fenômeno multidimensional da pobreza pode ser compreendido, segundo Sen (1992), sob três enfoques de análise: a) subsistência biológica, relacionada com aspectos nutricionais; b) desigualdade, associada com estrutura social; c) externalidade, compreendida como os efeitos da pobreza na sociedade. É com base nesses três enfoques que o debate sobre pobreza e exclusão social na América Latina e Caribe, especialmente no Brasil, no período da pandemia da Covid-19, será compreendido e analisado neste estudo.
O principal aspecto do enfoque da pobreza sob a perspectiva da abordagem da subsistência biológica é a insegurança alimentar e nutricional, caracterizada pelo não acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para assegurar a própria sobrevivência. Para Sen (2000) as pessoas passam fome quando há falhas nos ativos e recursos a) da dotação, referente à força de trabalho e da posse da terra; b) da possibilidade de produção, relacionada especialmente com uso tecnológico; e c) das condições de troca, estruturada no sistema de compra e venda de bens. Assim, o intitulamento para Sen (2000) não está associado com a perspectiva de escassez de alimentos (MALTHUS, 1996), mas na capacidade e na liberdade de os indivíduos terem acesso a alimentos por meios legais (NIEDERLE et al., 2016). Para Rowntree (1901) a situação em que não se tem condições mínimas para a manutenção da subsistência física no sentido estritamente fisiológico, ou seja, a alimentação, deve ser compreendida como situação de pobreza absoluta.
Ainda segundo Silva (2001), Amartía Sen, tendo consciência das enormes desigualdades no mundo contemporâneos nos seus diversos espaços, contrariando visões pessimistas, propôs aos organismos internacionais e governos medidas políticas de promoção do emprego e, se necessário, prestação de subsídios sociais contra a fome e a subnutrição, como a necessidade de controle de preços, políticas e reformas numa perspectiva neoinstitucional assente na defesa de determinados códigos de comportamento político (transparência, equidade, confiança). Por outro lado, Amartía Sen (2000) considera e identifica cinco fontes de diversidade humana que potencializam ou influenciam diretamente a conversão das capacidades em maior ou menor liberdade substantiva: a) heterogeneidades pessoais, como sexo, idade e limitações físicas; b) diversidades ambientais; c) ambiente social, como saúde pública, educação e violência; d) diferenças de perspectivas relativas, estruturadas em convenções e costumes; e e) distribuição interna do núcleo familiar.
Ao compreender pobreza como privação de acesso a recursos potenciadores do desenvolvimento das capacidades do indivíduo, Sen (1992) qualifica o entendimento de pobreza, dissociando-o exclusivamente da questão de rendimentos e enfatizando a importância da privação das potencialidades e da questão da desigualdade estrutural. É nesse sentido que se destaca o conceito de pobreza relativa, definida como referência a condições abaixo da vida decente em sociedade e ao grau insuficiente de satisfação das necessidades. É nesta linha de pensamento que Scoot (1981) considera que a abordagem relativa sobre a pobreza pode ser compreendida e identificada a partir do grau de integração das pessoas na vida em sociedade, ou seja, se há integração satisfatória ou exclusão. Por sua vez, Sen (1990), instigando à reflexão acerca desta questão, avança de modo substantivo ao considerar as três abordagens gerais para a noção de padrão de vida de uma pessoa: a) noção de utilidade; b) noção de opulência; c) noção de tipo de liberdade.
A liberdade da terceira abordagem é interpretada em seu sentido positivo, em que o indivíduo tem a capacidade para satisfazer suas necessidades não só materiais como educacionais, sociais, culturais e recreativas ou de lazer, sem cair em sentimento de vergonha, ao se comparar com outros indivíduos (SEN, 1990, p.79).
O conceito de pobreza relativa está associada à noção de exclusão dos padrões de vida, dos costumes ou das atividades correntes da sociedade (FERREIRA, 1995), assim como à noção de desigualdades, sem se confundir essencialmente com a origem das desigualdades (ROUSSEAU, 1995), uma vez que é possível haver desigualdade na distribuição de renda e de riquezas sem haver pobreza.
Relativamente ao terceiro sentido relativo à pobreza analisado por Sen (1992), ele tem em vista as externalidades, ou seja, os efeitos da pobreza na sociedade. Para compreender essas externalidades, é necessário primeiro considerar o conceito de liberdades e de privações de liberdades de Sen (1992). Existem diferentes formas de liberdade que se inter-relacionam e podem corroborar e complementar umas a outras. A liberdade de acesso à educação básica, por exemplo, além de contribuir para o desenvolvimento, tem capacidade de reforçar as liberdades ditas constitutivas, como a participação política e a liberdade de expressão. Nesse cenário, quanto mais liberdade, maior o potencial produtivo e, consequentemente, maior a oportunidade de se obter renda mais elevada e, com isso, possuir uma maior liberdade relacionada com a opção de as pessoas viverem do modo como desejam. Da mesma forma, a privação da liberdade de acesso à educação tem potencial para impactar negativamente para cenário de privações de outras liberdades. Assim, quanto maior for a privação das liberdades, menor será o potencial produtivo e a possibilidade de se auferir renda mais elevada.
A respeito dos conceitos de desigualdade social, poder-se-á convocar os três níveis de análise originalmente trazidos por um autor neosistémico como Luhmann (1982): o societal, o organizacional e o interativo. Embora este autor não seja crítico do sistema capitalista e das desigualdades sociais por este gerado, o seu esquema analítico foi reapropriado e aplicado por neomarxistas críticos como Bader (2005) e Silva (2014) para dar conta da articulação dos três diversos níveis diferenciados, em termos de abstração, de produção e de reprodução de desigualdades: socio-estrutural, organizacional e interativo. Bader (2018), ao analisar as diversas formas e dimensões da desigualdade e sobretudo ao considerar os três níveis de desigualdade social em que esta é produzida e reproduzida não só ao nível estrutural e organizacional-institucional mas também interativo, a partir dos próprios atores sociais a nível coletivo e individual, supera uma perspectiva exclusivamente ora estruturalista ora accionalista. Por sua vez, a exclusão social, se tem a característica de reforçar algumas formas de desigualdade social, ao mesmo tempo ela é também produto da desigualdade social, podendo a exclusão social, a nível interativo, estar associada ao conceito de estigma de Goffman (1993, p.11) em que a “la sociedad establece los medios para caracterizar a las personas y el complemento de atributos, que se perciben como corrientes y naturales a los miembros de cada una de esas categorías” . Essa relação condiciona a pobreza a um círculo vicioso com efeitos discriminatórios que se auto-reforçam no âmbito da discriminação social, política, econômica e legal da sociedade.
Impactos da pandemia Covid-19 no Brasil e na América Latina
À luz do entendimento de Amartía Sen sobre a pobreza, sobretudo a pobreza absoluta, uma primeira reflexão crítica sobre o atual sistema capitalista e suas consequências maléficas sobre as classes e os grupos sociais mais desprovidos e pobres está associada aos impactos devastadores e diretos, nomeadamente situações de fome.
Segundo o Relatório de Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO (FAO et al. 2021), estima-se que, durante o ano de 2020, quase 2,4 bilhões de pessoas sofreram com algum grau de insegurança alimentar e nutricional no mundo, e que 811 milhões de pessoas efetivamente passaram fome, o que representa um aumento de mais de 15% em relação ao ano anterior. Nesse cenário o estudo alerta ainda que é pouco provável que a região da América Latina e do Caribe alcance as metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 (ODS-2) e da respectiva Agenda 2030 que busca erradicar a fome e garantir o acesso de todas as pessoas à segurança alimentar e nutrição até o ano de 2030, embora a lógica de acumulação e concentração de capital seja um obstáculo estrutural.
Segundo a Rede Penssan (2021), durante o ano de 2020, 116,8 milhões de brasileiros conviveram com insegurança alimentar moderada ou grave, sendo que 19 milhões de brasileiros enfrentaram efetivamente a fome. Estudo mais recente divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir do processamento de dados coletados entre agosto e novembro de 2021 pelo Gallup World Poll, revelam um cenário ainda mais sensível acerca da insegurança alimentar no Brasil
“O Brasil, que figurava com níveis de insegurança alimentar inferiores a 75% dos 141 países pesquisados em 2014, atingiu, em 2021, um nível menor que 52% desses e passou, pela primeira vez desde o início das séries em 2006, a ter níveis de insegurança alimentar piores que a média mundial”. (NERI, 2022, p.5).
A feminização da fome é outra tendência apontada pelo estudo da FGV, uma vez que foi possível identificar crescente e acentuada assimetria de insegurança alimentar entre mulheres e homens no Brasil
“O salto de segurança alimentar de homens e mulheres entre 2014 e 2021 foi desigual, sugerindo feminização da fome. Se entre 2014 e 2019 os aumentos coincidiram em 13 pontos percentuais para ambos os sexos, de 2019 a 2021 houve queda de 1 ponto para os homens (cai de 27% para 26%) e aumento 14 pontos percentuais para as mulheres (aumenta de 33% para 47%)”. (NERI, 2022, p.3).
Como conclui o segundo relatório publicado pela Rede Penssan (2022), considerando que a crise sanitária provocada pela Covid-19 no Brasil se sobrepôs à crise econômica e política do país e que, em meados de 2022, é possível identificar que 33,1 milhões de brasileiros estão passando fome. Vivendo mais da metade da população, 125,2 milhões de pessoas, com algum grau de insegurança alimentar, é necessário maior monitoramento e acompanhamento da situação de insegurança alimentar dos brasileiros, especialmente com recortes específicos que lancem luz às desigualdades de gênero, raça, cor, escolaridade e local
“O atual contexto, em que uma crise sanitária se sobrepôs à crise econômica e política que lhe é anterior, impõe a necessidade de monitoramento frequente da condição alimentar e nutricional da população brasileira (…) evidenciar os diferentes níveis com que se verificou esse agravamento entre os vários segmentos sociais – recortados por gênero, raça/cor, escolaridade e local de moradia – é, ao mesmo tempo, complementar as informações necessárias para uma melhor compreensão e atuação em uma sociedade com elevadas desigualdades sociais como a brasileira. Devemos assinalar aqui lacunas que ainda permanecem pela ausência de informações sobre povos indígenas e outras comunidades e populações tradicionais” (REDE PENSSAN, 2022, p.6).
Para além do sentido fisiológico apresentado por Rowntree, o Banco Mundial (1980) ampliou o entendimento acerca do conceito de pobreza absoluta ao considerar também a questão da educação e da saúde. Assim, pobreza absoluta pode ser compreendida também como
“uma condição de vida de tal modo caracterizada pela subnutrição, analfabetismo e doença que fique abaixo de qualquer definição razoável de decência humana” (WORLD BANK, 1980, p. 32).
Sobre os aspectos de educação o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2021) alerta sobre os impactos diretos do fechamento prolongado das escolas e da suspensão de aulas presenciais no processo de aprendizagem escolar, especialmente entre os alunos mais vulneráveis. Segundo o Banco Mundial (2021), a pandemia da Covid-19 pode ter desencadeado a maior ruptura histórica do processo educacional na região da América Latina e Caribe (LAC)
“LAC could be the region with the second largest absolute increase in learning poverty: the share of children that are not able to read proficiently when reaching late primary schooling could rise from a baseline of 51 percent to 62.5 percent, roughly representing an additional 7.6 million of learning poor”. (WORLD BANK, 2021, p.7).
A UNICEF estima que na América Latina e Caribe cerca de 114 milhões de estudantes ficaram sem aulas presenciais e considera que milhões de crianças e adolescentes podem abandonar de forma permanente a escola devido à pandemia. No Brasil, até outubro de 2020, 3,8% das crianças e adolescentes, cerca de 1,38 milhão, deixaram de frequentar a escola, de forma ora remota ora presencial (UNICEF et al. 2021). A tabela abaixo refere de modo preciso por regiões a quantidade de crianças e adolescentes brasileiras (6 a 17 anos) em 2020, com ensino médio incompleto, que declararam não frequentar a escola ou que a frequentavam, mas estavam sem atividades escolares.
Nesse contexto, é importante pontuar ainda que as atividades do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) também tiveram interrupção e contribuíram para aumento da insegurança alimentar entre crianças e adolescentes. O PNAE é um programa do governo brasileiro de alimentação em escolas que oferecia refeições saudáveis e equilibradas a quase 50 milhões de estudantes em todo o Brasil
“A falta de orientações precisas sobre estratégias para utilizar o PNAE, como recurso alimentar para crianças e adolescentes em atividades escolares remotas, resultou em prejuízos importantes para sua AS [segurança alimentar] (...) dados mostram que de fato o PNAE não conseguiu suprir, minimamente, as necessidades das famílias com crianças em idade escolar, neste período da pandemia”. (REDE PENSSAN, 2022, p.6).
Apesar de o ensino à distância ter-se mostrado eficaz para alguns grupos para mitigar a evasão escolar, ele revela disparidades entre as redes escolares e desigualdades no acesso à educação, fato que exige imediatamente reflexão crítica acerca da associação da escola como oportunidade de ascensão social, tal como o fazem Bourdieu e Passeron (1970). Essas questões lançam luz ao segundo escopo identificado por Sen (1992) acerca das desigualdades associadas à estrutura social, as quais podem ser compreendidas à luz da questão da privação da liberdade e da pobreza relativa, a qual não pode ser entendida senão como o efeito gerado pela acumulação de riqueza por alguns em detrimento da maioria, sobretudo pobre.
O relatório "Las juventudes latinoamericanas y caribeñas y la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible: una mirada desde el sistema de las Naciones Unidas" (UN, 2021), ao reconhecer as especificidades das exclusões sociais e desigualdades sociais, lança luz à complexidade da questão enfrentada por jovens da região, em que
“(...) las personas jóvenes son jóvenes, pero también son mujeres, indígenas, migrantes o afrodescendientes, habitan en zonas rurales, tienen orientaciones de género diversas, viven con VIH o tienen alguna discapacidad (...) la pertenencia a cada una de estas categorías implica estar expuesto o expuesta a dinámicas de exclusión que son propias de cada uno de esos ámbitos (…) estas dinámicas de exclusión se van superponiendo y alejan cada vez más de las posiciones de inclusión social a las personas que pertenecen a una o varias de estas categorias”. (UN, 2021:73).
Considerando que, na ótica de Sen (1992, 1999), as diferentes liberdades se inter-relacionam, podendo reforçar-se mutualmente, o desenvolvimento pressupõe, além da eliminação dos elementos que limitam as escolhas e as oportunidades econômicas, políticas, civis e sociais, a garantia de acesso a políticas públicas direcionadas, inclusive com capacidades participativas da população. No contexto da pandemia da Covid-19, o Relatório da ONU destaca a questão do acesso às políticas públicas ao afirmar que
“La necesidad de emprender acciones en esta dirección se ha visto precipitada por la pandemia de COVID-19, pues esta ha venido a exacerbar la situación de exclusión de los grupos más vulnerables, los desafíos relacionados con la gobernabilidad, así como la apremiante necesidad de pensar una recuperación centrada en la protección del medio ambiente para alcanzar un desarrollo que sea sostenible”. (UN, 2021, p.74).
Assim, à luz da referida reflexão crítica em torno das externalidades da pobreza e considerando os efeitos da Covid-19, tal impediu ou dificultou o acesso aos direitos e agravou a privação de recursos, comprometendo assim as liberdades substantivas que possibilitem e capacitem processos de desenvolvimento. Pelo contrário, o que ocorreu foi um empobrecimento de parte considerável dos cidadãos/ãs, de modo algum compensados com eficazes políticas públicas. Mais precisamente, em termos de desenvolvimento humano sustentável, a pandemia da Covid-19 veio agravar enormemente uma situação já desigual em termos de desigualdades de classe, de género e étnico-raciais, aumentando o grau de pobreza relativa e mesmo absoluta na América Latina, nomeadamente no Brasil perante um governo incapaz de fazer frente com um plano de emergência reforçado em termos sanitários e sociais.
Conclusiones:
O debate sobre os fenômenos multidimensionais da pobreza e da exclusão social ganhou novos contornos trazidos pelas consequências das medidas econômicas, sociais e políticas adotadas a partir de março de 2020 que visaram combater a pandemia causada pela disseminação do vírus da Covid-19. À luz da pluridimensionalidade da pobreza e de como ela está relacionada com a perspectiva de exclusão e desigualdade social, este artigo oferece um contributo aplicado não linear ao debate sobre aspectos do fenômeno multidimensional da pobreza e da privação de recursos que potenciem as capacidades, especialmente no quadro dos impactos da pandemia da Covid-19 que vieram dificultar ou impedir o acesso a direitos e reduzir liberdades substantivas em diversas dimensões da vida das pessoas na América Latina e Caribe, especialmente do Brasil.
As medidas econômicas, políticas e sociais adotadas, em vez de combater com eficácia alguns efeitos da pandemia Covid-19, foram responsáveis por intensificar privações no acesso a recursos com efeitos negativos nas oportunidades em termos econômicos, sanitários e educacionais. Sob o enfoque da subsistência biológica, relacionada com aspectos nutricionais, a região foi marcada pela crescente insegurança alimentar e nutricional, em que milhões de pessoas efetivamente não tiveram acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para assegurar a própria sobrevivência. As medidas de combate à Covid-19 também permitiram um cenário de aumento da privação das potencialidades, limando do indivíduo a capacidade para satisfazer suas necessidades subjetivas como, por exemplo, educacionais, econômicas, culturais ou sociais, fato este que reforçou a desigualdade estrutural e a própria exclusão social, seja dos padrões de vida, dos costumes, seja das atividades correntes da sociedade. Por fim, a privação de recursos em prol do desenvolvimento das capacidades impactou diretamente as externalidades, ou seja, os efeitos da pobreza na sociedade. O sentimento crescente de mal-estar social com relação às principais dimensões que estrutura a vida social tende a condicionar a pobreza na região a um círculo vicioso com efeitos discriminatórios que se autoreforçam no âmbito da discriminação social, política, econômica e legal por parte de classes e grupos sociais providos em relação aos mais desprovidos.
O debate contemporâneo sobre as diversas perspectivas da Teoria do Desenvolvimento contempla tendências que pavimentam trilhas de questionamentos envolvendo, no contexto da globalização e do desenvolvimento regional/local, as relações e as interações tradicionais acerca do objetivo do desenvolvimento, como os temas significativos de cooperação intersetorial, diversidade social, segurança humana, gênero e meio ambiente, e mudanças na reforma estrutural e na cooperação para o desenvolvimento. O aprimoramento deste debate será de importância fundamental no período pós pandemia para reforçar a crescente relevância científica e social da complexidade e da pluridimensionalidade da pobreza, especialmente sob a perspectiva da busca pelo desenvolvimento humano sustentável.
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Palabras clave:
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