Resumen de la Ponencia:
Encontros on-line são, de alguma forma, tipos de comunidade. Entre as redes sociais digitais, o Facebook tem chamado a atenção pelas possibilidades de estruturação de novas conexões e amizades. Neste trabalho, em parte baseado em nossa tese de doutorado, o foco recai sobre uma das comunidades abrigadas no Facebook, o grupo Direitos Urbanos | Recife. Tal grupo foi um dos responsáveis pela articulação do Movimento Ocupe Estelita, que surgiu no rastro de outras ações coletivas que se espalharam pelo mundo nas últimas décadas, como a Primavera Árabe, os Indignados da Espanha e o Ocupe Wall Street. Todas utilizaram as redes sociais digitais para informar, organizar e mobilizar. Aqui, o grupo Direitos Urbanos | Recife é estudado como um fenômeno interativo/comunicacional, que, como comunidade on-line, orbita entre a lógica da rede e a experiência da comunidade. Constatamos que as comunidades do Facebook, apesar de estarem estruturadas em um site de redes sociais, ofereceriam um espaço coletivo onde é possível experimentar o diálogo, o entendimento mútuo, a dimensão participativa/deliberativa, a solidariedade. A rede viabiliza o “contágio”, mas é a experiência comunitária que possibilita a ação coletiva.
Introducción:
A ideia de que os encontros on-line são tipos de comunidade existe desde os primórdios da internet, após seu surgimento em 1969. Os antigos Bulletin Board Systems (BBS), sistemas como Usenet e Well, grupos de e-mail, fóruns, blogs, wikis, mundos virtuais, jogos on-line e as redes sociais digitais são exemplos de ferramentas capazes de criar lugares de comunidade e cultura, como já sugeria Howard Rheingold ao cunhar, em 1987, o termo comunidade on-line. Entre as diversas redes sociais digitais disponíveis na atualidade, o Facebook tem chamado a atenção pelas amplas possibilidades de estruturação de novas conexões e amizades. No mundo, são 2,9 bilhões de usuários (META, 2022).
Neste trabalho, em parte baseado em nossa tese de doutorado (Batista, 2015), o foco recai sobre uma das comunidades abrigadas no Facebook, o grupo Direitos Urbanos | Recife (DU). Tal grupo, que reúne pessoas interessadas em debater a questão urbana na cidade do Recife, Brasil, foi um dos responsáveis pela articulação do Movimento Ocupe Estelita, que entre os anos de 2012 e 2019 lutou contra a construção de um projeto imobiliário de luxo composto por 13 arranha-céus em área histórica – o projeto Novo Recife. O movimento surgiu no rastro de outras ações coletivas que se espalharam pelo mundo nas últimas décadas, como a Primavera Árabe, os Indignados da Espanha e o Ocupe Wall Street. Em comum, a utilização das redes sociais digitais para informar, organizar e mobilizar para ações off-line.
Aqui, o Facebook é estudado como uma esfera pública que dá suporte a diversas formas de sociabilidade, como um lugar de racionalidade estratégica e de individualismo, aspectos realçados pela modernidade, porém aberto ao agir comunicativo, modelo de ação proposto por Jürgen Habermas, no qual as pessoas interagem tendo a linguagem como meio possível de entendimento. Já o grupo Direitos Urbanos | Recife é estudado como um fenômeno interativo/comunicacional, que orbita entre a lógica da rede e a experiência da comunidade. Normalmente, esses movimentos costumam ser estudados muito sob o ponto de vista do ativismo/ciberativismo (por exemplo, HARVEY et al, 2012; CASTELLS, 2013; MARICATO et al, 2013; HARVEY, 2014), não aprofundando, ou mesmo negligenciando, a questão da comunicação, que é a base das redes sociais digitais.
Cada vez mais, a antiga suposição de que o crescimento do uso das novas tecnologias da informação e comunicação (TICs) diminuiria a interação social, presente em muitos dos primeiros trabalhos sobre sociabilidade na internet, vai ficando para trás. O recorte que apresentamos da pesquisa empírica mescla netnografia com observação participante e entrevistas em profundidade com o objetivo de investigar a força dos laços, a ordem e o controle social exercido em comunidades on-line como o DU. Até que ponto essas comunidades podem intensificar relações existentes e ajudar a criar novos laços? Debruçamo-nos, ainda, sobre a conversação entre os membros e o trabalho de moderação, no intuito de compreender como ocorre, na prática, a ação comunicativa no interior do grupo.
Constatamos que as comunidades do Facebook, apesar de estarem estruturadas em um site de redes sociais, ofereceriam um espaço coletivo onde é possível experimentar o diálogo, o entendimento mútuo, a dimensão participativa/deliberativa, a solidariedade. A rede viabiliza o “contágio”, mas é a experiência comunitária que possibilita a ação coletiva. Essa abertura à ação comunicativa que enxergamos nas comunidades on-line seria algo fundamental para se conseguir quebrar a rigidez do sistema tecnológico que, sob certos aspectos, usa-nos, vigia-nos e manipula-nos, elimina nossas subjetividades e reduz a comunicação a meros fluxos informacionais.
Desarrollo:
Marco teórico
Em uma concepção ampla, comunidades são grupos de pessoas que vivem em um território físico e partilham interesses e objetivos comuns, atividades e governança (Preece, 2000). Porém, Johnson (1997, p. 45) lembra que o termo comunidade pode assumir “numerosos significados, sociológicos e não sociológicos”. Pode ser um grupo de indivíduos com algo em comum, como, por exemplo, a comunidade hispânica, que partilha a língua espanhola; pode ser um senso de ligação com outras pessoas; ou, ainda, um grupo de pessoas com trabalhos relacionados, como em “comunidade acadêmica”, que podem ou não compartilhar um mesmo território geográfico. Quando falamos “comunidade judaica”, também estamos falando de grupos que não estão, necessariamente, compartilhando o mesmo espaço geográfico.
As comunidades on-line comportam a maioria dos atributos relacionados às comunidades off-line. Uma distinção é o território, que é sempre simbólico e as pessoas participam apenas virtualmente, isto é, desprovidas de seus corpos físicos. Entretanto, não possuir um espaço físico comum não diminui a importância desse tipo de comunidade. Segundo Haesbeart (2007, p. 20), o território possui essa dupla conotação, material e simbólica, desde sua origem. Significa dizer que território “não deve ser confundido com a simples materialidade do espaço socialmente construído” (Haesbeart & Limonad, 2007, p. 42). Quando apropriado socialmente, o espaço se torna território, apropriação que é tratada por Haesbeart como algo ligado não apenas ao poder tradicional, concreto, mas também ao poder simbólico.
Para Rheingold (2000, p. xx), comunidades virtuais são “agregações sociais que emergem da internet quando uma quantidade suficiente de pessoas leva adiante discussões públicas por tempo longo o suficiente, com suficiente sentimento humano, para formar teias de relações pessoais no ciberespaço”. Nesses espaços, as pessoas conversam, discutem, vendem coisas, jogam, trocam conhecimentos, compartilham apoio emocional, flertam, apaixonam-se, encontram e perdem amigos etc.
Kozinets (2012), a partir de Rheingold, infere que a quantidade mínima para que um grupo on-line passe a ser considerado uma comunidade seria de 20 pessoas, sendo que o máximo se situaria entre 150 e 200 integrantes, a fim de garantir a eficiência da comunicação. Além desse número, os grupos tendem naturalmente a se dividir, objetivando manter a atmosfera de proximidade de uma comunidade. Já a expressão “tempo longo o suficiente”, para Kozinets, pressupõe relações contínuas, com contatos interativos repetidos. Finalmente, a expressão “suficiente sentimento humano” teria relação com o sentido subjetivo de contato autêntico entre membros, incluindo questões emocionais como apoio recíproco e confiança.
Definimos comunidade como um grupo de pessoas que compartilham interesses, valores, afetos e compromisso mútuo, que é o que gera um sentimento de pertença (Batista, 2015). Já nosso conceito de comunidade on-line se refere a um grupo de pessoas que, na internet, compartilham interesses, valores, afetos e compromisso mútuo com intensidade e de forma contínua. Esse conjunto de coisas, ao longo do tempo, é o que vai gerar o sentimento de pertença.
Os encontros on-line seguem as regras básicas de funcionamento dos grupos que se encontram face a face, o que também inclui o desenvolvimento de normas internas e da identidade de grupo. Há, ainda, a afirmação de valores comunitários, episódios de conflito, hierarquias e modelos de poder (Hine, 2000). Já a anonimidade (poder usar pseudônimos e fotos não pessoais, por exemplo) e a acessibilidade seriam características exclusivas das comunidades on-line. Isso, para Kozinets (2012), pode criar oportunidades para que se estabeleça um estilo diferente de interação.
Tanto na literatura quanto na pesquisa de campo constatamos que é falsa a ideia de que a internet estimula apenas os laços fracos. Para Kozinets (2000), comunidades on-line podem não só intensificar relações existentes como também ajudar a criar e a manter novos relacionamentos. No entanto, acreditamos que a comunicação mediada pela tecnologia pode limitar as interações, podendo reduzir os processos interacionais a uma mera troca de informações. E trocar informações não é, exatamente, comunicar-se, principalmente quando consideramos que comunicar é partilhar algo por meio da linguagem, que é o que nos diferencia de outros seres vivos (Heidegger, 2005, p. 8). Máquinas, por exemplo, não se comunicam, apenas trocam informações.
O que perguntamos é em que medida podemos romper esses limites impostos pela tecnologia, apropriando-se dela e transformando-a em um instrumento para a agência coletiva, tendo na linguagem um meio possível de entendimento? Sabemos que o espaço de comunicação oferecido por plataformas de redes sociais como o Facebook é automatizado e sujeito a ruídos que podem comprometer a decodificação das informações e dos conteúdos simbólicos. Então, como tantos movimentos sociais, o DU entre eles, vêm conseguindo se apropriar desses espaços para articular e mobilizar milhares de pessoas em torno de uma causa comum?
Em sua Teoria da Ação Comunicativa (TAC), Habermas (2012a, 2012b), defende que o sujeito não pode ser mais compreendido sem que as relações com outros sujeitos sejam consideradas. A TAC propõe pensarmos em formas de solidariedade em que o diálogo pode se tornar a própria fonte e razão dos laços sociais. A ação comunicativa, uma alternativa à ação racional estratégica, seria uma opção pela interação simbolicamente mediada, uma das formas de emancipação do ser humano e também de transformação da realidade em que vivemos. De acordo com Habermas, a ação comunicativa
refere-se à interação de pelo menos dois sujeitos capazes de falar e agir que estabeleçam uma relação interpessoal (seja com meios verbais ou extraverbais). Os atores buscam um entendimento sobre uma situação da ação para, de maneira concordante, coordenar seus planos de ação e, com isso, suas ações. (Habermas, 2012a, p. 166)
A ação comunicativa proposta por Habermas também é racional, mas não instrumental. Diferentemente da ação racional e estratégica, regida por normas técnicas, ela se orienta por normas sociais e tem a linguagem como meio de entendimento. Para que esse tipo de ação se realize, é preciso que pelo menos dois sujeitos entendam e reconheçam essas normas. Para Habermas, a esfera pública, enquanto “rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões” (Habermas, 1997, p. 92), seria o lugar privilegiado do agir comunicativo.
Neste sentido, pode-se dizer que o Facebook, enquanto esfera pública, fornece-nos essa rede para criação e circulação de conteúdos, posições e opiniões. Nas comunidades abrigadas nessa plataforma, parece haver um espaço, ainda que mínimo, para a democracia, a liberdade e a solidariedade, do contrário, como prosperariam?
Metodologia
Para compreender a dinâmica interacional existente na página do DU no Facebook, os fluxos comunicacionais e o comportamento dos membros utilizamos a abordagem qualitativa, optando pelo método netnográfico com observação participante. Assim como Kozinets (2012), preferimos utilizar o termo netnografia ao invés de etnografia virtual, webnografia ou etnografia digital por entendermos que é preciso considerar toda a experiência de indivíduos ou grupos, e não apenas a experiência on-line. Com a netnografia, compreendemos que os mundos sociais estão se tornando digitais, exigindo que a pesquisa etnográfica seja adaptada de modo a incluir a influência da internet, como um todo, no nosso cotidiano.
A observação participante foi feita entre novembro de 2013 e novembro de 2014 na página do DU no Facebook. Ao longo desse tempo, acompanhamos e participamos das discussões, identificamos quem eram os administradores da página, coletamos fotos e postagens para análise e fizemos entrevistas. Registramos as observações de maneira mais ou menos sistematizada em um diário de campo. Também pudemos nos familiarizar com as pautas, regras de moderação e eventos off-line realizados pelo grupo.
As entrevistas foram realizadas entre os meses de abril e agosto de 2014. Abordamos inicialmente onze membros do DU, selecionados a partir de análise de conteúdo e análise de redes sociais feitas em 40 postagens coletadas na página do grupo. Os atores selecionados foram aqueles que mais publicaram, os que mais receberam “curtidas” e comentários em seus posts e também os que mais “curtiram” e comentaram postagens de outros membros. Ao final, conseguimos entrevistar nove membros, dos quais seis eram administradores do grupo.
Segundo Poupart (2008, p. 216), a entrevista é um “instrumento privilegiado de acesso à experiência dos atores”, um jeito de explorar o mundo da vida dos informantes. Utilizamos um roteiro semiestruturado e as entrevistas foram realizadas pelo chat do próprio Facebook (Messenger), com duração variando entre 1h07 e 2h55 devido às peculiaridades do método baseado na comunicação (web-based), tendo a internet como ambiente de coleta de dados e utilizando um método de comunicação síncrono (Bryman, 2008). Aqui, as falas são transcritas em sua íntegra, mantendo inclusive os erros de digitação e de português.
Na análise das entrevistas foi utilizado um método misto de análise de conteúdo em sua dimensão semântica (Bauer, 2002, p. 192-193), momento em que observamos a relação entre as palavras e os sentidos denotativos e conotativos, e também análise de discurso. Na análise de discurso, procuramos identificar as práticas discursivas em seus níveis macro (intertextualidade e interdiscursividade) e micro (textos) e a prática social da qual o discurso é parte integrante (Fairclough, 2001, p. 282).
Análise e discussão de dados
No início do trabalho de campo, em novembro de 2013, a comunidade do DU possuía pouco mais de 14 mil membros e ela dobrou de tamanho ao longo de um ano, passando a contar com mais de 29,5 mil integrantes. Interpretamos essa evolução como um reflexo do aumento do interesse das pessoas na medida em que o grupo promovia, sozinho ou em conjunto com outros coletivos, ações off-line do Movimento Ocupe Estelita. Entre 2012 e 2014, foram realizados pelo menos 15 eventos do DU na cidade do Recife, envolvendo uma ampla mobilização pelas redes sociais digitais. O maior deles foi o Ocupe Estelita 2014, conhecido como “Ocupaço”, iniciado na noite em que começou a demolição dos armazéns do Cais José Estelita. Durante 50 dias (de 21 de maio a 10 de julho), manifestantes permaneceram no local, mesmo após a reintegração de posse do terreno, que envolveu uma ação violenta por parte da polícia militar.
Evidentemente, não há como manter um “clima de comunidade” com tanta gente, tenha o grupo 14 mil ou 30 mil integrantes. Como pontua Kozinets (2012), com mais de 150 ou 200 membros, o grupo tende a se dividir. No “grupão” do DU estão pessoas que apenas curtiram a página, mas não acompanham as discussões; possíveis “olheiros” (tanto por parte do poder público, que chancelou a construção do complexo imobiliário, quanto das empreiteiras); supostos perfis falsos etc. Com isso, assumimos que no DU predominam os laços fracos, ainda que os laços fortes também existam em menor número. Segundo Granovetter (1973), isso não é exatamente um problema, pois são os laços fracos que conectam os grupos e trazem sempre novidades, já que estão conectados a outras redes.
Já os laços fortes são aqueles que, de acordo com o autor, apresentam duração no tempo e intensidade na ligação. Mas como identificá-los em um grupo tão grande e heterogêneo como o DU? Recorremos às entrevistas na tentativa de identificar membros do DU que conheciam outros membros pessoalmente antes da formação do grupo. Um dos entrevistados revelou que o DU possui uma espécie de “núcleo duro”, responsável pela concepção e operacionalização das ações e reuniões públicas, formado por cerca de 50 pessoas. Uma parte desse núcleo também responde pela moderação na comunidade (no início da pesquisa eram 13 administradores, número que subiu para 20 ao final da coleta de dados). Haveria, ainda, um grupo mais amplo, de cerca de 200 pessoas, que são os membros que participam mais ativamente das ações off-line, como os ocupes, e que frequentam as reuniões. Aparentemente, os membros desse “núcleo duro ampliado” se conhecem pessoalmente.
RudRa: sou moderador do grupo e conheço os demais,mas não se resume a isso.as ações e reuniões públicas tb propiciaram esses encontros. acho q conhecia só 2 pessoas q atuam mais no operacional do grupo,hj devo conhecer quase todos (que deve ser na faixa de uns 50) e do grupo como um todo dou um chute de 200
Outro aspecto que a fala de RudRa deixa transparecer é que a comunidade on-line funciona como um suporte para as discussões e divulgação das atividades do grupo. Muitos encontros (inclusive aqueles em que decisões são tomadas) são realizados off-line. Isso propicia que as pessoas se conheçam face a face, interajam, criem e fortaleçam laços de forma ainda mais intensa.
Para tentar entender a força dos laços existentes no DU, indagamos aos entrevistados se eles conheciam outros membros pessoalmente antes da formação do grupo e se a participação na comunidade on-line os aproximou ou distanciou mais. Três dos nove entrevistados se conheciam pessoalmente antes do momento fundacional do grupo (uma audiência pública realizada no dia 22 de março de 2012). À primeira vista, essas relações parecem ter se fortalecido a partir do DU, como mostram os depoimentos abaixo:
AnaPaP: aproximou, sim, trouxe novos assuntos para as conversas, identificamos mais interesses comuns e nos encontramos mais, nas atividades do DU.
EdiAl: eu conhecia antes 4 pessoas do DU. mas a minha relação com elas ficou mais próxima depois do DU.
MarSo: Aproximou sim. Pessoas que já conhecia do passado, mas que estava distante. De repente, nos aproximamos de novo. Não viraram meus melhores amigos, mas são pessoas que sempre encontra em bares. Sempre rola uma conversa boa e uma camaradagem.
Os demais entrevistados contaram ter conhecido o DU em outros momentos, seja através de outros membros, porque ouviram falar ou porque leram alguma postagem compartilhada por algum contato no Facebook. Após a entrada no grupo, algumas das novas relações que foram surgindo também parecem ter ganhado consistência ou, pelo menos, apresentam potencial para tanto.
AnaPaP: Construí novas relações de amizade tão verdadeiras e profundas quanto às anteriores, há um vínculo bem forte entre nós, muito afetuoso. Compartilhamos muito a vida nesses três últimos anos. Esse é um dos grandes ganhos do DU, ao qual nos referimos como o componente do amor: pela cidade, pelas pessoas e uns pelos outros, entre nós.
EdiAl: considero que fiz amigos sim. alguns têm potencial pra vir a ser
Falas como a de AnaPaP dão um pouco de sentido ao que postula Maffesoli (2006): que estamos testemunhando um declínio do individualismo e a ascensão de formas mais empáticas de sociabilidade, fundadas no sentimento de pertença, no afeto, no prazer de estar junto. É neste sentido que podemos pensar o DU como uma família ampliada, mesmo que de modo fluido, pontual e que se mantenha coesa em função de determinados interesses, que são as questões urbanas da cidade do Recife. Mesmo que o individualismo e a racionalidade estratégica sejam a essência das redes sociais, cujas bases foram lançadas por Georg Simmel (Batista, 2015).
Na “família” Direitos Urbanos, como em outras comunidades, há direitos e deveres, regras e rituais, cujo objetivo é garantir que os interesses individuais não se sobreponham aos do grupo (Simmel, 1964). Também há consensos, dissensos e disputas pelo poder. Mas existe uma pauta a ser seguida, daí a importância do papel desempenhado pelos moderadores. Eles agem como patrocinadores de um possível consenso a fim de manter o controle e a ordem (Smith & Kollock, 1999). Consenso que raramente chega, uma vez que a tensão está presente na maioria das situações. Recordemos que, de acordo com Habermas (1981; 1989), nem sempre existe a possibilidade de consenso. No caso das comunidades on-line, o processo de compreensão e interpretação também acaba prejudicado pelos ruídos característicos da comunicação mediada pela tecnologia.
No DU, verificamos que o dissenso, muitas vezes provocado por esses ruídos, não deixa de ser um elemento importante para a manutenção da coesão da comunidade. O grupo não se mantém coeso apesar dos dissensos, mas com os dissensos. É no dissenso que algumas pautas são colocadas em suspenso, enquanto outras são expurgadas, ajudando a fomentar coalizões e a fortalecer o discurso hegemônico do grupo. Quando olhamos mais de perto, percebemos tensões, ironias, xingamentos, mal-entendidos, preconceitos, intolerância, desinformação e muitas críticas, algumas à gestão da cidade, mas outras também à atuação do próprio DU. Toda essa movimentação é acompanhada de perto pelos moderadores e moderadoras.
Já dissemos que o grupo do DU no Facebook funciona como um suporte para as discussões e divulgação das ações off-line. As decisões são tomadas em outros lugares, tanto em encontros face a face quanto em mensagens trocadas reservadamente pelos administradores e administradoras. Este foi o segundo indicativo de que a ferramenta de grupos dessa rede social é importante para o DU, porém insuficiente. O primeiro indicativo foi a criação de um blog (www.direitosurbanos.wordress.com) que tem a função de organizar melhor as discussões e hospedar arquivos, armazenando informações que precisam ser retidas para utilização posterior, como artigos, documentos e estudos.
A existência concomitante de ações e relações on e off-line indica que há, no DU, uma alternância entre o espaço de fluxos e o espaço de lugares (Castells, 1999), ou seja, a utilização tanto da internet quanto de encontros face a face, de forma complementar. Essa alternância não deixa de ser percebida pelos administradores, como avalia este entrevistado:
LeoCi: [o DU] é uma comunidade, mas aí não exatamente o DU-espaço-de-discussão-no-facebook e sim o movimento como um todo, nas suas dimensões online e offline. tem uma troca de vivência e de conhecimento que é fundamental..
O mesmo entrevistado também confirma a existência de conversas reservadas entre os moderadores para deliberar sobre as ações do grupo, evidenciando que, por mais que se coloque como uma comunidade horizontal, existe, sim, hierarquia dentro do DU.
LeoCi: tem conversa permanente dos moderadores. algumas ações são articuladas em grupos fechados antes de sair pro mundo, como os Ocupes, p.ex.
Em outros depoimentos percebemos que não deixa de haver uma tensão entre o que é discutir em um fórum virtual e conseguir tirar as ideias da tela, isto é, conseguir influenciar concreta e positivamente no cotidiano da cidade. O ingresso de ações na justiça e pedidos de informações junto a órgãos públicos por parte do DU enquanto coletivo são considerados avanços, possibilitando conquistas como o impedimento da construção de viadutos na avenida Agamenon Magalhães; o tombamento da Fábrica da Torre; e o próprio atraso de mais de três anos na construção do projeto Novo Recife, além da conscientização de um grupo maior de pessoas sobre o direito à cidade. É sair do sofá e provocar mudanças concretas. Como bem coloca Castells (2008, p. 80), movimentos sociais urbanos acabam sempre produzindo algum significado não apenas para os atores envolvidos, mas para toda a comunidade. Vejamos:
LeoCi: este debate sobre a cidade tem essa possibilidade de virar realidade, de sair da mera discussão, de mudar alguma coisa, nem que seja, por baixo, sua vivência da cidade (passar a andar de bicicleta, p.ex)
MarSo: [o principal ganho foi] Trazer a consciência das pessoas que elas têm o direito à cidade e de decidir os caminhos para ela, mesmo que a aliança poder público iniciativa privada seja contra.
A mudança de comportamento também pode ser constatada nos depoimentos dos próprios membros da comunidade. Outros enxergam na atuação do DU uma oportunidade de lutar pelo bem comum sem esperar mais pela política tradicional, reivindicando mais transparência e mais mecanismos de participação popular. Lévy (1993; 1999) é um dos autores que acreditam que as TICs podem ampliar a participação política, o contato social e o empoderamento, aspecto que é ressaltado no depoimento a seguir:
ClaTaM: participar do du e do movimento#OcupeEstelita me confirmou o sentimento e de que a gente pode se empoderar, como comunidade, coletivo e lutar pelo bem comum sem esperar mais pela política institucional e tradicional para resolver nossos problemas. não contamos mais com as eleições, nem apenas em votar e ficar de braços cruzados esperando que resolvam nossos problemas. a gente agora faz acontecer, ao menos tentamos, exercer a democracia direta - buscando transparencia e mais mecanismos de participação popular.
Sem dúvida, as redes sociais digitais amplificaram o alcance dessas lutas. Ainda que não sejam espaços 100% autônomos, são espaços importantes. De uma maneira geral, as falas realçam a importância dessas ferramentas, embora também fique claro que, para produzir mudanças no mundo off-line, é necessário ir além. Ao não se encerrar no virtual, a ação de grupos como o DU ultrapassa a ideia neoliberal do “ativismo de sofá”, essencialmente individualista. Traz consequências concretas para o cotidiano da cidade, posto que é, fundamentalmente, uma ação coletiva e, ao mesmo tempo, comunicativa.
Conclusiones:
Partindo da experiência de comunidades on-line como o grupo Direitos Urbanos | Recife, observamos a convivência do individualismo e da racionalidade estratégica, que formam a base das redes sociais, com formas de sociabilidade mais próximas da empatia, da solidariedade, do prazer de estar junto. A comunicação viabiliza essa convivência, tornando possível a interação social, ainda que a tecnologia imponha seus limites. Constatamos, assim, que as comunidades não desapareceram completamente, elas subsistem e convivem com outros arranjos sociais, ainda que sejam arranjos fluidos e momentâneos.
Enquanto comunidade, o DU intensificou alguns laços que já existiam no mundo off-line a ajudou a criar e manter novos laços entre seus membros, principalmente quando pensamos em um “núcleo duro”, formado por cerca de 50 integrantes. Ou mesmo nesse núcleo mais ampliado, composto por aproximadamente 200 pessoas, que são aquelas que ajudam a pensar e articular as ações off-line do movimento, caracterizadas sobretudo por ocupações de espaços públicos, com formas de mobilização muito semelhantes àquelas utilizadas por outros movimentos urbanos recentes ao redor do mundo.
É isso que nos leva a refletir sobre a necessidade de repensarmos a dimensão comunitária da vida. Não conseguimos viver mais sem as redes, mas a comunidade faz parte do mundo da vida e dela não podemos prescindir, tampouco menosprezar sua relevância para as sociedades contemporâneas. Do ponto de vista da comunicação, percebemos mal-entendidos, desinformação e tensões, muitas delas provocadas pela própria tecnologia. Porém, percebe-se também um esforço por parte dos membros do DU no sentido de buscar um entendimento, compartilhar e aprender coisas, o que evidencia a importância do modelo de ação comunicativa defendido por Habermas para os estudos de comunidade, incluindo sua versão on-line.
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Palabras clave:
Redes Sociais; Facebook; Comunidades on-line