Resumen de la Ponencia:
O trabalho distingue duas perspectivas sobre a memória da violência sexual contra mulheres indígenas no conflito armado na Guatemala, praticado pelas forças militares, entre 1962 e 1996: a perspectiva estatal e uma perspectiva feminista comunitária das mulheres indígenas. O período de Guerra Fria na América Latina e no Caribe, foi marcado pela emergência de ditaduras, a maior parte civis-militares, cujo impacto resultou em graves violações de direitos humanos. O surgimento do conflito interno guatemalteco foi o resultado do acúmulo de múltiplos fatores estruturais, enraizados na história do país, o que resultou, segundo estimativas, em 200 mil mortos, 45 mil desaparecidos, além de mais de 100 mil deslocados. As variáveis raça e gênero não foram devidamente consideradas para o levantamento do número estimado de vítimas desses massacres. São crimes de violência, realizados por parte do Estado, que terminaram em assassinatos e desaparecimentos, e que, contudo, não deveriam ser classificados apenas como genocídio. A teoria social afirma que, na Guatemala, o Estado praticou uma política de terra arrasada, cujo ápice ocorreu em 1982, com massacres dos povos indígenas. Logo, este estudo realiza um recorte de gênero e raça, especificando a violência sexual contra a mulher indígena, a partir dos conceitos de femigenocídio e pedagogia da crueldade de Rita Segato e ainda traz críticas sobre a inefetividade dos instrumentos internacionais para a reparação às mulheres, mesmo após a justiça de transição. Em resposta aos massacres, em 1994, implementou-se a Comisión para el Esclarecimiento Histórico (CEH) no país, que publicou seu Relatório Final “Guatemala: Memoria del Silencio", em 1999. Este trabalho analisou tal documento oficial, concluindo pela ausência de instrumentos mais sensíveis e capazes de identificação da violência de gênero e a presente invenção femigenocida do próprio Estado, além da violência continuada diante da impunidade dos responsáveis pelos massacres. Por não serem representadas adequadamente na CEH, as sobreviventes se organizaram em movimentos, dos quais destaca-se coletiva Actoras de Cambio, composta por mulheres ativistas preocupadas com os danos e a cura das mulheres indígenas. O diálogo com elas é objeto central do estudo, que busca compreender a dimensão dos danos da guerra sob o corpo das mulheres.
Introducción:
O documento da Comissão da Verdade e Reparação da Guatemala, decorrente da guerra civil guatemalteca, iniciada na década de 1960 e com término nos anos 1990, é o ponto de partida do presente estudo, em especial, em sua parte que trata da violência contra as mulheres. Dele se extrai o legado de morte e violência extrema, que a teoria social chama de ‘política de terra arrasada’, principalmente contra as populações indígenas. Afirma-se que neste episódio, 42 mil pessoas foram vítimas de diferentes tipos de violência, sendo que 85% delas eram indígenas (CEH, 1999).
Especificamente, a partir da década de 1960, e à luz do impacto da Revolução Cubana de 1952, observa-se na região centro-americana a aparição de grupos de luta armada contra o regime da terra e do latifúndio historicamente amparados em governos ditatoriais, em processo continuado do fenômeno do colonialismo interno.
A história guatemalteca não foi indiferente a esta tendência, pois a partir dos anos 1960, intensos enfrentamentos marcam o início da luta armada sob comando da Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) que articulou militantes de esquerda com movimentos rurais de camponeses e indígenas, contra as Forças Armadas e o governo, que os oprimiam e usurpavam suas terras e sua cultura.
A luta entre a guerrilha e o Estado se estendeu por mais de trinta anos, entre 1962 e 1996, havendo um agravamento da violência principalmente a partir da década de 1980, quando ocorrem os episódios de maior violência, resultando em mortes e o desaparecimento de cerca de 200 mil pessoas.
Em 1987, o governo guatemalteco criou a Comissão Nacional de Reconciliação da qual emergiram os Acordos de Oslo (1990) entre o governo e a URNG, colocando um fim ao conflito armado vivido na Guatemala.Posteriormente, os Acordos de Paz culminaram na criação da Comisión para el Esclarecimiento Historico (CEH), que teve como propósito analisar não apenas o momento de maior influxo da violência no país, como também buscou resgatar todo o período do conflito, iniciado em 1962 com o golpe de Estado, até 1996, data da assinatura definitiva dos Acordos de Paz.
Em 1999, a CEH divulgou seu Relatório final “Guatemala: Memoria del Silencio” (CEH, 1999). Este documento forma parte de um conjunto de mecanismos políticos e jurídicos desenvolvidos pelo direito internacional e é um suporte fundamental para a justiça transicional, por isto, é também um dos instrumentos oficiais de um Estado na retomada da democracia e da paz social e política depois de períodos de graves violações aos direitos humanos.
Assim, o seu propósito não é apenas trazer à tona a verdade e a memória dos acontecimentos, identificar as vítimas e os violadores, como também elaborar recomendações para remediar as violações e prevenir sua repetição.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1988, sancionou obrigações fundamentais do Estado que estão na base jurídica da Justiça de Transição, entre elas, estão: realizar investigações profundas quando violações foram cometidas; impor sanções adequadas aos responsáveis das violações; e garantir a reparação das vítimas.
Sob esta base de princípios e obrigações, os registros oficiais da CEH trouxeram que o conflito armado no território guatemalteco provocou 42.275 vítimas, das quais 83% eram mayas, pertencentes a alguma das 22 etnias existentes na Guatemala, e 17% eram ladinos (Gamarra, 2018, p. 17). Além disso, o Exército da Guatemala foi responsável por 85% das violações registradas pela CEH, seguidos pelos grupos de Autodefesas Civis (18%), os comissários militares (11%), outras forças de segurança do Estado (4%) e as organizações de guerrilha (3%) (CEH, 1999, Volume II, p. 317).
A partir da análise dos documentos da Comissão como uma narrativa formal da violência - narrativa impulsionada pelos mecanismos internacionais de direitos de onde advém seus alcances e suas limitações - atentemo-nos à narrativa das sobreviventes de um tipo específico de violência na Guerra Civil guatemalteca, a violência sexual contra as mulheres indígenas, resgatando assim as críticas que estas realizam acerca do processo de Paz.
Essa violência não deixa de existir após os Acordos de Paz, ela continua a ser sentida nos corpos precarizados, racializados e castigados, ou seja, nos corpos colonizados, principalmente nos corpos das mulheres, que são sexualizados e assediados ao mesmo tempo. E todas essas violências são uma manifestação das relações de poder que vêm sendo exercidas entre colonizadores e colonizados.
Assim, ao buscar tratar nesta pesquisa sobre a memória dos acontecimentos ocorridos de forma violenta contra as mulheres indígenas no período do conflito armado na Guatemala, tentamos ressignificar o olhar sobre as violações, a partir da perspectiva das próprias mulheres sobreviventes. De forma que, ao procurar visibilizar suas perspectivas e vozes por meio do texto aqui transmitido, também atuamos em conjunto para transgredir, tomar consciência e buscar a emancipação para desafiar a ordem colonizadora estabelecida.
Isto posto, este artigo está constituído em seis capítulos principais, sendo que, o primeiro destes foi esta Introdução, na qual insere-se o assunto a ser elaborado ao longo do estudo; o segundo capítulo refere-se aos aspectos mais conceituais acerca do processo de Justiça de Transição; o terceiro capítulo busca dar conta do processo de invisibilização dos crimes ocorridos contras as mulheres indígenas; o quarto capítulo aborda os limites do sistema internacional de proteção às vítimas de direitos humanos; o quinto capítulo traz mais especificamente o olhar das mulheres indígenas guatemaltecas acerca das violações ocorridas, a partir da conexão com a Coletiva Actoras de Cambio; e por fim, o sexto e último capítulo, realiza as considerações finais acerca do tema abordado neste artigo.
Desarrollo:
2. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
Compreende-se por Justiça de Transição um conjunto de medidas adotadas para enfrentar um passado ditatorial.
Ou seja, após o restabelecimento da normalidade institucional, devem ser adotadas todas as medidas necessárias para garantir a paz e impedir que as violações ocorridas nos períodos de exceção se repitam. Tais medidas baseiam-se, sobretudo, no direito à verdade, à memória e à efetivação da justiça, com a identificação e punição dos agentes responsáveis por tais violações. A crítica trazida pelo sistema interamericano de direitos humanos é que a justiça transicional tem sido prejudicada por leis de anistia que acabam banalizando as violências cometidas pelo Estado militarizado e “perdoando” os contra insurgentes a em Estado opressor e injusto.
A história da Guatemala, assim como de outros países da América Latina, está marcada pelo legado de colonialidade (Quijano, 2005) nas relações de produção, modelo que se arrasta desde o século XIX até os dias atuais. A visão dos povos indígenas como uma “raça miserável” e inferior, força de trabalho compulsória, é comum no imaginário social e político não indígena.
Diante de um cenário de conflito, sob o governo de liberais, a Guatemala, a partir da década de 1960, se torna um território marcado por intensos enfrentamentos entre as Forças Armadas estatais e grupos insurgentes.
A partir da década de 1990, o desgaste dos governos militares, em conjunto com campanhas internacionais e o apoio das Nações Unidas, além da atuação da cúpula da Igreja Católica, resultaram em pressões por redemocratização. Depois de um longo processo de diálogo, instaurou-se o Acuerdo sobre el Establecimiento de la Comisión para el Esclarecimiento Histórico de las Violaciones a los Derechos Humanos y los Hechos de Violencia que han Causado Sufrimiento de la Población Guatemalteca - a CEH -, de 1994.
Em seu Relatório Final, a CEH concluiu que no auge do enfrentamento, entre 1981 e 1983, cometeram-se atos de genocídio contra as etnias Maya em Huehuetenango e Rabinal (CEH, 1999, Volume II, p. 422). A Comissão indicou que os massacres de aldeias desencadearam a fuga massiva de comunidades e famílias mayas. Cerca de 150 mil pessoas buscaram sua segurança no México.
Dessa forma, os relatos trazidos pela CEH marcam o fim do conflito armado na Guatemala e a instauração da Justiça de Transição.
Ao pensarmos sobre os processos de transição de uma ditadura para uma democracia, observa-se que estes normalmente são marcados pela abertura de caminhos para os direitos humanos e demandas por verdade, justiça e memória, sendo que ambos os processos se apoiam.
A Justiça de Transição é um tema de estudo que ainda passa por construções teóricas e metodológicas. Um dos seus mecanismos principais são as Comissões da Verdade, caracterizadas por serem órgãos temporários, estabelecidos por meio de um mandato oficial, com a finalidade de investigar violações de direitos humanos, identificar os padrões e causas dos processos de violência e publicar um relatório final por meio de um procedimento politicamente autônomo.
Em seu relatório final, as Comissões da Verdade formulam um conjunto de recomendações visando atingir os principais objetivos da Justiça de Transição, quais sejam: verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. Este último direito tem como principal finalidade garantir a manutenção da paz.
Assim, nos cenários de pós-conflito há três dimensões importantes que devem ser trabalhadas: a legitimidade, eficiência e a segurança. Cabe destacar que as reformas das áreas de Segurança e Defesa constituem pilares fundamentais das Comissões da Verdade.
3. INVISIBILIZAÇÃO DA VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER INDÍGENA
Na tese doutoral de Amandine Fulchiron, que resulta do diálogo com a Coletiva “Actoras de Cambio” e com as indígenas guatemaltecas, trata-se das consequências da negação de direitos humanos (Fulchiron, 2020, p. 74), por meio de uma sentença judicial que tratava de estupros de mulheres indígenas durante os anos do conflito
A humilhação e a exclusão persistem em Sepur Zarco após a decisão do tribunal, enquanto a vergonha da comunidade e o silenciamento masculino que dela decorre continuam a culpar as mulheres em Libertad..
A violação sexual, principalmente em cenários de conflitos armados, é um dos maiores silêncios da história dos conflitos de alta intensidade.
A CEH afirma que os estupros contra mulheres foram uma prática incluída no treinamento militar, já que havia prostitutas para acostumar o soldado a essa prática. Logo, a objetificação a que foram submetidas as mulheres era de desumanização absoluta, o que permitiu que elementos do Exército as atacassem com total impunidade.
Assim, observando-se alguns casos repetitivos e gravíssimos de violência sexual e feminicídios contra as mulheres indígenas na América Latina, nota-se que há uma prática genocida, ou femigenocida, conforme categoria trazida pela antropóloga Rita Segato (2014) e denunciada em documentos históricos e peticionamentos junto à organismos internacionais e da anistia internacional, que afeta mais gravemente as mulheres de origem indígena.
O ataque a essas comunidades, lhes restringe ou afasta possibilidades de sobrevivência futura. Segato (2016b) relata o caso Sepur Zarco, por exemplo, ocorrido em uma pequena comunidade Q'equchi Maya na Guatemala ao longo dos anos 80, no meio de um conflito armado interno e com uma forte política de repressão militar.
Essa comunidade foi atravessada por uma história de conflitos agrários, apesar de serem ocupantes da terra desde a era colonial. Suas lideranças, na tentativa de oposição à usurpação das terras que sofriam, foram criminalizadas. Sofreram assassinatos, torturas e desaparecimentos, e suas mulheres, sofreram submissão à escravidão sexual e doméstica na própria base militar constituída no local. A escravidão sexual a que foram submetidas as mulheres da comunidade nos anos 80 cedeu em uma sociedade profundamente patriarcal, isso somado à repressão estatal, criou um ambiente de silêncio, tabus, preconceitos e estigmas.
A destruição do tecido comunitário, portanto, é um método, facilitado pela destruição dos corpos femininos, com humilhação a toda a sociedade, sobretudo a partir dessa violência sexual utilizada como tortura. Seu propósito violento é de terror e portanto, de crueldade intensa.
Observa-se assim que a pedagogia da crueldade tem duas consequências nos vitimadores e nas vítimas: a primeira consequência se refere a quem recebeu treinamento do estupro e que concretiza sua lição na rapina dos corpos femininos ou feminizados, convertidos em territórios ocupados. Esta prática naturaliza em longo prazo formas de dominação e práticas socioculturais cruéis na violência cotidiana contra a mulher.
É importante definir que Segato (2021,p.13) nomina de “pedagogías de la crueldad” a todos os atos e práticas “que enseñam, habitúan y programan a los sujetos a transmutar lo vivo y su vitalidad en cosas”.
Explica que esta pedagogía“enseña algo que va mucho más allá del matar, enseña a matar de una muerte desritualizada, de una muerte que deja apenas residuos en el lugar del difunto”.
Na Guatemala de hoje, bem como em outros países submetidos ao femigenocídio, como El Salvador, o crime organizado nas periferias das cidades ainda utiliza o estupro das mulheres dos inimigos derrotados.
As mulheres estupradas costumam afirmar que foram separadas dos seus corpos, que não mais lhes pertence ou não mais lhes permite o gozo. Que elas perderam sua força vital e suas possibilidades de felicidade. O estranhamento do próprio corpo tem um resultado em longo prazo, pois reafirma as posições de gênero na comunidade. A violência sexual coloca as vítimas como estranhas nas suas famílias, repudiadas regularmente pelos companheiros ou pela comunidade.
Relatam sentimentos como "Trataram-nos pior que os animais" , como expressão partilhada pelas mulheres mayas da Guatemala, para falar do sofrimento vivido e caracterizar a desumanização a que foram submetidas.
As injustiças sociais se expressam como sofrimento porque coincidem com uma convicção interior de que não é justo o que lhes fizeram, apesar do discurso ideológico patriarcal e racista da guerra tentar normalizar e justificar os acontecimentos criminosos. As injustiças sociais constituem então em dano moral, porque são uma transgressão do que é considerado como um tratamento justo, de como deve ser tratado.
Segundo os relatos apresentados em Fulchiron (2021, p. 207), as sobreviventes costumam relatar "Eu sou uma pessoa", e questionam "O que eles fizeram conosco está certo? Fizeram tudo conosco, nos estupraram, nos assustaram, nos deixaram com muita dor [...]. É muito dano o que eles nos fizeram".
A forma como as mulheres descrevem os danos que o estupro causou em suas vidas vai de encontro a uma abordagem da injustiça como um ataque social a demandas por reconhecimento. A partir de Fulchiron (2021, p. 208), as sobreviventes expressam frases como: "Ninguém me ouve", "não acreditam em nós", "me batem", "me maltratam", "zombam de mim", "me criticam", "nos chamam de putas", " ninguém nos reconheceu, ninguém nos ama", "eles me lembram de novo". Estas são as palavras usadas para nomear seu sofrimento associado ao estupro e às injustiças de humilhação, silenciamento e exclusão que desencadeou na vida delas.
No caso dos crimes sexuais na guerra, não se trata apenas da falta de respeito pela integridade e valor dos corpos e espíritos das mulheres indígenas afetadas, mas também pela intenção de aniquilamento perpetrada pelas forças militares do Estado.
A expressão usada pelos sobreviventes "Estou morta em vida", ilustra a intencionalidade da violação sexual na guerra e a dimensão da destruição que isso significou em suas vidas. A injustiça do estupro consiste não apenas na brutal invasão, uso, tortura e destruição dos corpos das mulheres, mas também no sofrimento gerado pela interpretação patriarcal colonial que transforma o crime em algo “desejado” pelas mulheres e vítimas de tortura sexual, transformando-as em "prostitutas", por meio da interpretação patriarcal. Isso gera uma cadeia contínua de humilhações, agressões físicas e sexuais e uma dinâmica de exclusão social que as leva a desaparecer socialmente.
Dessa forma, a injustiça do estupro está também na morte social e subjetiva das mulheres. Sem compreender a especificidade e dimensão da injustiça social dos crimes sexuais e os danos morais que eles acarretam, não podemos entender por que a justiça formal e processual não responde às expectativas de reconhecimento e reparação dos danos que fundamentam os anseios da justiça para sobreviventes.
Com isso, alinhamo-nos à proposta de Segato (2021), a qual sugere que sejam concebidas contra pedagogias da crueldade, que sejam capazes de resgatar a sensibilidade acerca dos sofrimentos e afastar a crueldade banalizada contra os corpos das mulheres.
A autora propõe uma contra pedagogia do patriarcado, elencando a baixa empatia, o mandato de masculinidade e o corporativismo masculino, por exemplo, como alguns dos elementos que reforçam o patriarcado, que por sua vez, é a primeira pedagogia do poder e expropriação de valor. Segato propõe que essa política não seja utópica e sim, pragmática, preservadora da vida no cotidiano.
4. LIMITES DO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS DE ESTRUPO
O viés, extremamente limitado da legislação guatemalteca na interpretação da violência sexual, corroborando a invisibilização das agressões, da dominação de gênero e raça, e da rapina sexual sofrida pelas mulheres indígenas, motivou em 2014 a CIDH a manifestar sua profunda preocupação com a negação do genocídio.
Some-se a isto a fragilidade das instituições democráticas atuais na Guatemala.
Desde a Constituição de 1985, introduziu-se no Congresso o Projeto de Lei 5.377 cujo propósito seria alterar a Lei de Reconciliação Nacional, de 1996, anistiando os crimes políticos entre 1960 e 1996. Dessa forma, extinguir-se-ia a responsabilidade criminal relacionada ao conflito armado interno, dando condições para aplicar o princípio da não retroatividade da lei.
O Estado da Guatemala, indiferente à existência de um sistema de proteção internacional de direitos humanos, não teve pudor em inserir em seus documentos oficiais a autorização da violência sexual, como prática militar, realizando treinamentos nesse propósito.
De fato , somente em 1946, no pós-Segunda Guerra Mundial, o estupro passou a fazer parte das discussões de crimes de guerra e violações de direitos humanos no Tribunal para Crimes de Guerra de Tóquio. Adotando em 1949 as Convenções de Genebra para as situações de guerra, e entre elas, o destaque para a previsão de que “as mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer ataque à sua honra, e particularmente contra violação, prostituição forçada ou qualquer forma de atentado ao seu pudor" (CICV, 2016, p. 173).
Desde aquele momento, a negociação de compromissos e de acordos internacionais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW (ONU, 1980) tem incidido diretamente sobre a legislação e as políticas públicas nos países-membros do tratado.
As conferências mundiais sobre a mulher, por seu turno, constituíram marcos inquestionáveis nesse processo. A IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, em setembro de 1995, foi sem dúvida a maior e a mais importante delas: pelo número de participantes que reuniu, pelos avanços conceituais e programáticos que propiciou e pela influência que continua a ter na promoção da situação da mulher. Intitulada “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, a Conferência de Pequim partiu de uma avaliação dos avanços obtidos desde as conferências anteriores (Nairobi, 1985; Copenhague, 1980; e México, 1975) e de uma análise dos obstáculos a superar para que as mulheres possam exercer plenamente seus direitos e alcançar seu desenvolvimento integral como pessoas.
Em seus objetivos estratégicos destaca que as imagens de violência contra a mulher que aparecem nos meios de comunicação, em particular as representações de estupro ou de escravidão sexual, assim como a utilização de mulheres e meninas como objetos sexuais, inclusive a pornografia, são fatores que contribuem para a prevalência dessa violência, prejudicial à comunidade e, em particular, às crianças e aos jovens.
Todavia, para além da perspectiva de gênero, faz-se necessário compreender as políticas e práticas racistas, que ainda excluem diversos povos originários, na América Latina e Caribe, do real acesso à justiça e à dignidade humana.
As violações sofridas por mulheres em situações de conflito armado constituem violações dos princípios fundamentais dos direitos humanos internacionais e do direito humanitário. A violação maciça dos direitos humanos, especialmente sob a forma de genocídio, de depuração étnica como estratégia de guerra e suas consequências, o estupro, inclusive o estupro sistemático de mulheres em situações de guerra, que criam o êxodo em massa de refugiados e de pessoas deslocadas, são práticas vigorosamente condenadas e os perpetradores de tais crimes devem ser punidos.
Também em âmbito regional interamericano essa preocupação se acentua, ao menos formalmente. Em “Situación de derechos humanos en Guatemala”, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos indica a vulnerabilidade de mulheres e indígenas em relação a “delitos [que] se atribuyen a las maras, los carteles del narcotráfico y el crimen organizado” (CIDH, 2017, p. 14). E muito embora a maior parte da violência sexual contra as mulheres ainda seja doméstica, a teoria social considera errado o tratamento desta violência como problema de foro privado.
Constatando que a cultura do estupro ainda não teria sido superada, Segato (2016a) qualifica a esta nova etapa da violência pós-conflito, como a sexualização extensiva da violência, como uma forma de guerra interna nos bairros periféricos ou regiões em que poderes paraestatais estruturam os poderes locais e de culturas de violência paraestatal. A Guatemala era o terceiro país em violência de gênero na América Latina em 2016: duas mulheres morriam por dia em situação de feminicídio.
Dessa forma, apesar de, atualmente, tanto o Brasil quanto a Guatemala se adequarem às normas internacionais de Direitos Humanos, reconhecendo direitos específicos dos povos originários, as populações indígenas ainda compõem um dos setores da população com os menores níveis educativos, com menos acesso à terra, saúde e justiça, e que estão menos representados em instituições democráticas. Dentro desse grupo, são as mulheres indígenas as mais afetadas pelas brechas de equidade.
A lista de problemas que os povos indígenas têm sofrido durante muitas gerações é longa e se mantém até nossos dias, incluindo: a exploração mineira e florestal de terras que afetam seu sustento, a redução dos seus territórios ancestrais devido a projetos de diversas finalidades, a destruição do meio ambiente por causa de construções públicas ou privadas e a violência contra dirigentes indígenas que lutam pelos direitos das suas comunidades.
Além disso, o racismo continua sendo parte da realidade da sociedade guatemalteca, e afeta especificamente populações indígenas. A herança colonial busca homogeneizar, branquear e ladinizar as mentes e corpos dos povos originários.
Apoiados no conceito da colonialidade do poder, introduzido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005), e de colonialidade de gênero, desenvolvido em um refinamento da ideia Quijano, pela filósofa feminista María Lugones (2008), argumenta-se que a violência sofrida durante os conflitos armados, principalmente por homens e mulheres indígenas, tem sua origem num padrão de poder com origem colonial. A colonialidade impôs relações de inferioridade e superioridade entre os seres humanos baseadas na raça resultando a marginalização, exploração e a dispensabilidade das vidas de homens e mulheres indígenas ao longo da história dos países latino americanos.
5. QUANDO A REPARAÇÃO NÃO DÁ CONTA DA SANACIÓN
Para tornar visível o estupro cometido contra as mulheres durante a guerra e para contribuir para quebrar o círculo da impunidade, a Unión Nacional de las Mujeres de Guatemala, e o Equipo de Estudios Comunitarios y Acción Psicosocial - de direitos humanos- se organizaram no pós-guerra. Dessa aliança surgiu, em 2003, a Coletiva “De vítimas de violencia sexual a actoras de cambio: la lucha de las mujeres por justicia” em sua forma abreviada, “Actoras de Cambio”.
Para as mulheres guatemaltecas, pelo que se viu, não houve uma reparação efetiva, inclusive nos casos em que a justiça avançou na punição dos culpados, como em Sepur Zarco. Nesse caso, por exemplo, a reparação econômica não foi uma resposta adequada ao imenso dano moral e social que o estupro gerou.
Diante deste cenário, as mulheres organizadas em coletivas têm apostado em formas diferentes e mais sensíveis daquilo que, resgatando sua memória ancestral, chamam de sanación.
Para Actoras de Cambio, la sanación es una capacidad que está dentro de cada una de nosotras, y una vez logramos sanar, podemos acompañar a otras, para que ellas pueden hacer lo mismo.
A Coletiva é pioneira em processos comunitários de recuperação da memória histórica a partir da voz e da experiência de mulheres sobreviventes de estupro durante o período de conflito armado na Guatemala.
Esses grupos de mulheres tornaram-se o único ambiente social no qual elas se sentiram validadas em seus relatos, sendo então denunciada toda a injustiça perpetrada contra elas. A partir disso, são criadas condições para que suas existências sejam reconhecidas, começando um processo de acreditar em si mesmas e de ter suas próprias palavras e experiências aceitas como legítimas.
Realizam festivais de memória comunitária, que depois são levados a âmbitos regionais e nacionais: o primeiro festival regional de memória, “Sobrevivi. Estoy aquí. Estoy viva", levava um nome que sintetizava seu propósito e utopias. Nesse evento também ocorreu o primeiro fórum público na história do país que se realizou em Huehuetenango, em novembro de 2008, quando as sobreviventes quebraram o silêncio em torno dos crimes sexuais que vivenciaram na guerra.
Desde então, e como uma das iniciativas de justiça social, de forma a criar espaços de verdade para as mulheres, de dignidade e um caminho de não repetição da violência, as sobreviventes organizam anualmente seus próprios festivais de memória em suas comunidades na região Mam e na região de Chuj de Huehuetenango, sob o nome de "Festivales comunitarios por la voz, la memoria y la libertad de las mujeres” (Fulchiron, 2020, p. 27).
Apesar do horror que compartilham, as mulheres se escutam e se validam. Em grupo, elas não se julgam, não desconfiam, porque sabem que os relatos são verdadeiros. Compartem o mesmo sofrimento e legitimam as experiências umas das outras. Suas vozes e sofrimentos encontram então um espaço de escuta.
Conclusiones:
A violência perpetrada no regime ditatorial Guatemalteco gerou danos continuados, em especial, às mulheres mayas. O presente artigo chamou a atenção para dois aspectos indissociáveis dessa violência de extrema crueldade: o propósito de dizimar o tecido social indígena Maya a partir da violência sexual contra as suas mulheres, o que evidencia a violência majorada por duas interseccionalidades, raça e gênero.
O estupro foi massivamente utilizado pelo exército guatemalteco contra as mulheres mayas como política de guerra e genocídio entre os anos de 1978 e 1985, visando massacrar as suas comunidades. Esta é uma tragédia humana cujas raízes estão no centro do contrato sexual colonial sobre o qual se fundam os Estados colonizados da América Latina, e que se torna brutalmente visível durante as guerras.
A impunidade nos casos das violações sexuais na Guatemala, tanto em tempos de "paz" quanto de guerra, é quase total. A justiça formal não é justa para as mulheres sobreviventes, e ainda mais quando se trata de mulheres mayas. A culpabilização e a estigmatização, a interpretação patriarcal e racista da lei, a impunidade e a proteção dos agressores imperam no processo de Justiça de Transição para as sobreviventes de tortura sexual.
O relatório da Comisión para el Esclarecimiento Histórico (CEH) estima o número de pessoas executadas no período de massacres, mas negligencia as variáveis raça e gênero. E mesmo quando há dados relativos à morte de indígenas, não precisa especificamente de quais comunidades e etnias esta população era originária. Com isso foi fortalecido o sentimento de descrença das vítimas quanto à vontade e interesse, ou competência do Estado para desenvolver os mecanismos de reparação material e simbólica.
Apesar da assinatura de normativas de direitos humanos pelo Estado da Guatemala para proteger, prevenir e reparar as mulheres vítimas, as recomendações da CEH recebiam muitas críticas quanto à efetividade.
Nesta pesquisa foi possível identificar que as conclusões, a despeito das estatísticas apresentadas e das violações nomeadas, não foram sensíveis para captar o sofrimento psíquico, físico, sexual e espiritual das mulheres mayas violadas sexualmente na Guatemala. Tampouco, receberam reparação, e quando o fizeram, não foram de modo justo nem para restituir sua dignidade.
O processo de descolonização nos motiva a pensar quem somos, onde estamos e até onde queremos ir. Assim, ao pensar nas atrocidades causadas às comunidades indígenas guatemaltecas, em especial as mulheres dessas comunidades, buscamos observar os fenômenos de violência além dos parâmetros normativos, judiciais, formulados pelos Estados.
Considerando tudo o que expressam a Coletiva “Actoras de Cambio” a partir do trabalha que desenolvem com as mulheres sobreviventes dessas violências, percebemos que a justiça interna e o sistema internacional de direitos humanos ainda estão muito distantes de sentir a real dimensão dos traumas continuados de mulheres vítimas de violência sexual.
Para além da impunidade dos agentes estatais e do quase inexistente comprometimento do Estado da Guatemala com a reparação dessas mulheres, os dados oficiais de documentos internos e internacionais ainda revelam a barreira linguística e a negligência sobre os dados que se referem às mulheres indígenas, deixando de descrever quais etnias, que línguas falam e muito menos traduzindo os seus documentos ou disponibilizando tradutores para elas.
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Palabras clave:
Conflitos armados
Violência sexual
Reparação