Resumen de la Ponencia:
A partir de pesquisa empírica documental, desenvolve-se a hipótese da centralidade dos conceitos gramscianos no pensamento de Fernando Henrique Cardoso em três momentos do que chamamos por refração: i) entre 1964 e 1974, tese da hegemonia dependente da burguesia no Brasil, ii) entre 1974 e 1983, defesa do Estado brasileiro como Príncipe Moderno na análise da coalizão agrário-industrial-militar no pós-1964, e iii) de 1983 a 1988, formulação da noção de transformismo autoritário-esclarecido para explicar o comportamento das elites econômicas e militares brasileiras diante da pressão pela democratização do regime. A progressiva mobilização das ideias gramscianas por Cardoso, o qual converteu um insight analítico presente em seus ensaios dos anos 1960 - a ideia da ausência/impossibilidade de uma burguesia hegemônica no Brasil - em um conjunto de reflexões a respeito da impossibilidade de um "príncipe moderno" - um sistema partidário robusto - brasileiro e sua consequente substituição pelo Estado.Nos anos 1960, Cardoso usa o conceito de hegemonia de maneira retórica. Embora Cardoso cultivasse simpatias ideológicas pela experiência socialista, seus escritos analíticos e políticos revelam uma relação de distanciamento analítico progressivo do comunismo soviético e de suas fontes teóricas. A partir dos anos 1970, nosso autor escreve de maneira explícita a respeito das ideias e conceitos gramscianos reivindicando sua utilidade para pensar a realidade brasileira. Aqui a incorporação do léxico gramsciano é criativa, em particular do conceito de “príncipe moderno” que Cardoso incorpora explicitamente. Nos anos 1980, a dívida se torna mais explícita e o uso mais sistemático na tentativa de encontrar uma "terceira via" para a transição brasileira para a democracia.
Introducción:
A história da circulação e usos das ideias de Antonio Gramsci por intérpretes do Brasil geralmente é dividida em dois momentos: i) os anos 1930, marcados pela campanha pela libertação de Gramsci do cárcere fascista, em que há uma recepção e circulação espontânea e esporádica entre anarquistas e socialistas; e ii) a partir de meados dos anos 1960, em que os Cadernos do Cárcere recebe uma edição brasileira e são traduzidos ensaios de seus principais intérpretes italianos, é possível identificar uma apropriação consciente e substantiva, especialmente no ambiente comunista. Esse segundo momento é comumente ligado ao ambiente pecebista sob influência da política cultural dos comunistas italianos. O presente artigo contribui para complexificar essa narrativa ao reconstruir um percurso distinto de circulação das ideias gramscianas: a trajetória de circulação das ideias de Gramsci nos escritos de Fernando Henrique Cardoso nos períodos da a ditadura militar e a transição democrática brasileira (1967-1988), contexto em que o intelectual uspiano emergiu como expoente das análises marxistas da formação social brasileira, hegemonia burguesa, dependência e autoritarismo na América Latina, bem como liderança política de uma corrente intelectual liberal-democrática com forte presença no ambiente acadêmico.
A partir de pesquisa empírica documental, desenvolve-se a hipótese da centralidade dos conceitos gramscianos no pensamento de Cardoso em três momentos do que chamamos por refração: i) entre 1964 e 1974, tese da hegemonia dependente da burguesia no Brasil, ii) entre 1974 e 1983, defesa do Estado brasileiro como Príncipe Moderno na análise da coalizão agrário-industrial-militar no pós-1964, e iii) de 1983 a 1988, formulação da noção de transformismo autoritário-esclarecido para explicar o comportamento das elites econômicas e militares brasileiras diante da pressão pela democratização do regime. Nas próximas seções nos debruçaremos sobre cada uma das refrações identificadas, a fim de demonstrar a progressiva mobilização das ideias gramscianas por Cardoso, o qual converteu um insight analítico presente em seus ensaios dos anos 1960 - a ideia da ausência/impossibilidade de uma burguesia hegemônica no Brasil - em um conjunto de reflexões a respeito da inexistência/impossibilidade de um "príncipe moderno" - um sistema partidário robusto - brasileiro e sua consequente substituição pelo Estado.
Desarrollo:
Primeira refração: a hegemonia como (ausência de) liderança burguesa
Nesse primeiro momento, a presença de Gramsci não é explícita e se dá por meio do conceito de hegemonia que, em Cardoso, consolidaria um sentido analítico amplo, transitando entre as noções de: i) capacidade dirigente de um grupo ou classe social; ii) força de um determinado sistema político ou econômico; e iii) de peso político ou econômico de uma nação no plano internacional (potência). O uso deliberadamente livre do termo permitia, por um lado, o contraste com as análises pelos intelectuais comunistas brasileiros que reduziam o sentido do conceito ao lugar do proletariado na política nacional no século XX. Além disso, permitia ao sociólogo paulista o estabelecimento de formas de diálogo com correntes político-intelectuais que despontavam em universidades da América Latina, Estados Unidos e Europa na segunda metade dos anos 1960.
Foi com o sentido de "direção" e "capacidade de liderança efetiva" que o conceito de hegemonia apareceu pela primeira vez nos escritos de Cardoso, em Empresário industrial e desenvolvimento econômico, publicado em abril de 1964. A hegemonia era pensada pelo autor como função política de direção, liderança de classe. Ao investigar a "autoridade", entendida aqui como a função de "líder", do capitalista na estrutura de poder no mundo ocidental (CARDOSO, 1964, p. 16, 21), Cardoso concluiu que as possibilidades da "hegemonia burguesa", no caso brasileiro, eram limitadas pela combinação entre "o subdesenvolvimento e a sociedade de massas em formação" (CARDOSO, 1964, p. 175). Ou, ainda, de que o "risco da perda da hegemonia política" pressionava "o setor privado da economia nacional", impedindo um posicionamento resoluto entre "apoiar os movimentos populares que pressionavam no sentido da estatização dos setores básicos da economia ou associar-se aos capitais estrangeiros para tentar o desenvolvimento nos moldes clássicos" (CARDOSO, 1964, p. 175). Assim, a hegemonia política da burguesia no Brasil era apresentada como um projeto inconsistente, abandonado em nome do apoio à "estratégia de reação dos grupos dominantes tradicionais" de uso da força (CARDOSO, 1964, p. 178, 186).
Essa elaboração apareceria com maior destaque no artigo "Hégémonie bourgeoise et indépendance économique" de 1967 em que o autor oferece uma interpretação frontalmente antagônica à leitura pecebista, segundo a qual o esquema analítico da "Alliance pour le développement" nacional seria superficial e metodologicamente limitado aos termos da economia interna. Por esse motivo, seria incapaz de entender o problema da "vocation hégémonique" burguesa no Brasil (CARDOSO, 1967a, p. 661). Em outro artigo do mesmo período, Cardoso tratou o mesmo tema no plano latino-americano e apresentou a hegemonia como operação própria das elites políticas em um "system of alliances among groups that have the elites which constituted traditional society as the pivot" (CARDOSO, 1967b, p. 23). Essa interpretação proposta para a hegemonia, contudo, carecia de aprofundamento: se a burguesia brasileira não é capaz de alcançar uma vocação hegemônica (de direção) própria, como explicá-la politicamente?
Em artigo publicado em 1970, Cardoso tentou escapar da solução para esse problema baseada na perspectiva da escolha racional e egoísta dos agentes econômicos. A "inexistência de vocação hegemônica" não significaria a ausência de uma política de classe, mas sim a presença de uma "situação de dependência", de uma "política de interesses divididos com as demais classes dominantes" (CARDOSO, 1970a, p. 65). A hegemonia política se daria em uma coalizão de interesses na qual existiriam conflitos e oposições que, contudo, se expressariam mais "no nível econômico do que na esfera do poder" (CARDOSO, 1970a, p. 65). Embora o léxico gramsciano não fizesse parte da análise empreendida aqui, as conclusões analíticas que levavam Cardoso a propor a tese da "burguesia dependente" eram explicitamente derivadas do problema teórico da hegemonia apreendido do contexto linguístico nacionalista e comunista pré-1964: para ele, a opção burguesa pelo desenvolvimento associado não poderia ser interpretada como uma falta de consciência de classe, mas sim como o “reconhecimento da impossibilidade histórica de uma política hegemônica” própria; na realidade, a “situação de dependência” explicitava “que a estrutura da situação não contém necessariamente um projeto político de hegemonia nacional a ser cumprido pela burguesia industrial” (CARDOSO, 1970a, p. 68).
Nesse mesmo ano, Cardoso publicou com Enzo Falleto o ensaio Dependencia y desarrollo en América Latina: ensayo de interpretación sociológica, uma análise estratificada capaz de "diferenciar os diversos modos de subdesenvolvimento segundo as relações particulares que esses países mantêm com os centros econômica e politicamente hegemônicos" (CARDOSO e FALETTO, 2004, p. 38). A hegemonia, aqui, apareceu principalmente articulada às noções de "centro" - nação ou potência internacional - e de "grupos" sociais e econômicos. O conceito de hegemonia era desenvolvido em termos de "consentimento e obediência" de grupos econômicos ao redor de uma "ordem legítima", aproximando-se da concepção gramsciana de hegemonia como combinação entre direção e domínio. Aqui, a falta de hegemonia (direção) de um setor da classe dominante servia para explicar a aliança estabelecida entre grupos modernos e "oligarquias locais" (CARDOSO e FALETTO, 2004, p. 61, 77). A hegemonia (direção + domínio) era, agora, interpretada na chave de um "sistema dependente" capaz de redefinir as condições de funcionamento da economia e limitar a capacidade de "algún sector de la clase de ejercer hegemónicamente el rol de unificador político del conjunto" (CARDOSO, 1970b, p. 59). Apesar do conceito de dependência já circular entre analistas do subdesenvolvimento latinoamericano em meados dos anos 1960 (FRANK, 1992), o texto de Cardoso e Faletto parece ter sido o primeiro a usá-lo associado ao conceito de hegemonia. No Post-Scriptum, escrito em 1979 para a tradução do ensaio em língua inglesa, as referências à centralidade do conceito de hegemonia e à fonte teórica do mesmo seriam explícitas: segundo eles, devemos analisar a “contradição entre Estado-povo-nação e desenvolvimento” nos termos “do que Gramsci chamava de relação de hegemonia: a capacidade de dirigir, propondo modelos culturais próprios que pode ter uma classe com aspirações a exercer a dominação” (CARDOSO e FALETTO, 2004, p. 226).
Mesmo já estando em contato com o texto gramsciano desde a segunda metade da década de 1960, a referência explícita ao pensamento de Gramsci nos textos de Cardoso permaneceu pontual até o início dos anos 1970. Embora usado de maneira livre, o conceito de hegemonia parece se prender, ainda, a um quadro conceitual anterior, genericamente comunista ou associado a uma atualização da leitura tradicional das relações entre potências internacionais em chave centro-periferia. Nos anos seguintes, contudo, o intelectual sardo assumiria um lugar de destaque como ponto de apoio e fonte de inspiração e reflexão crítica constantes no pensamento do sociólogo brasileiro.
Segunda refração: o Estado como "príncipe moderno" no Brasil
Em Paris, entre meados de 1967 e março de 1968, Cardoso já tinha contato com os escritos carcerários de Antonio Gramsci. No livro Política e desenvolvimento em sociedades dependentes, publicado em 1971 na capital francesa logo em seguida ao ensaio realizado com Faletto, Cardoso cita a edição temática italiana Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo stato moderno publicada originalmente em 1949 pela Einaudi. Apesar de aparecerem com frequência os conceitos de hegemonia, consenso e sistema/situação de força, a referência direta a Gramsci ocorre uma única vez em uma nota de rodapé como comentário à interpretação do "primeiro ensaio" do livro, o que mostra a pouca familiaridade com a história dos escritos carcerários, compostos na verdade na forma de parágrafos e rubricas temáticas (CARDOSO, 1971, p. 11).
Nesse trabalho, Cardoso explorou especialmente a ciência política "sistêmica" de inspiração parsoniana, focando no pressuposto dessa literatura de que ainda que os sistemas políticos assumam formas muito variadas, eles possuem, em comum, o "modo característico de funcionamento como sistema político", ou seja, "sua capacidade de distribuir valores à sociedade e assegurar sua aceitação" (CARDOSO, 1971, p. 33). Assim, mesmo um sistema político como o brasileiro, marcado pela "situação de dependência nacional", poderia encontrar uma solução de equilíbrio sistêmico que, aliás, Cardoso chamaria por "desenvolvimento dependente" (CARDOSO, 1971, p. 53). Na análise histórica das diferentes formações estatais latino-americanas, o equilíbrio da situação de dependência encontraria mais dificuldades em condições nacionais nas quais a subordinação externa fosse aguda a ponto de configurar a formação de "enclaves externos" (como no México, Bolívia, Venezuela, Chile e países da América Central). Nesse caso, o sistema político seria substituído por um "anel de força" responsável por assegurar, "pela exploração quase diretamente ou diretamente sócio-política das classes dominadas, os recursos, as rendas, os meios de vida dos grupos dominantes" (CARDOSO, 1971, p. 74). Neste caso, Cardoso indicava uma redução drástica da capacidade do sistema político em "distribuir valores à sociedade e assegurar sua aceitação" e sua redução ao funcionamento coercitivo e estamental do "anel de força". Já países como Brasil, Argentina, Uruguai e Colômbia corresponderiam ao que Cardoso e Faletto haviam indicado como de "produção nacionalmente controlada", com maior capacidade interna das elites econômicas em "distribuir valores".
Essa reflexão e a referência a Gramsci seriam retomadas no artigo A questão do Estado no Brasil, escrito em abril de 1974 e publicado em seguida na revista Dados (CARDOSO, 1975). Enfrentando o debate teórico sobre a legitimidade do regime militar no Brasil pós-1964, Cardoso buscou criticar uma "interpretação liberal" do conceito gramsciano de hegemonia, já que em Gramsci toda situação política seria, também, correspondente a uma "relação de força" (CARDOSO, 1975, p. 194). Citando a edição Einaudi de 1966 do volume temático Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo stato moderno, Cardoso apresentou sua interpretação do conceito gramsciano: a coerção exercida pelo Estado não constitui um impedimento necessário à construção de sua legitimidade, pois pode integrar o próprio exercício de sua hegemonia: "a própria coerção exercida para resolver problemas de um dado grupo (ou da sociedade) gera, ao resolvê-los [...], as condições de existência dos valores, símbolos, conteúdos morais etc. que passam a integrar a ordem dominante" (CARDOSO, 1975, p. 195. Grifos no original). Aqui, o exercício da hegemonia em Gramsci se equivaleria à capacidade do Estado em formular e sustentar regras de exclusão social e política - contemplando, neste sentido, a esfera da coerção. Visando o convencimento e, portanto, o consenso, essas regras garantiriam retribuições materiais para grupos sociais específicos por meio do crescimento econômico e de espaços controlados de diálogo. Esses últimos Cardoso chamou de "anéis burocráticos" - recuperando a ideia do "anel de força" - definidos como "mecanismos mais flexíveis de incorporação e cooptação política" das classes médias na burocracia estatal (CARDOSO, 1975, p. 204).
Em artigo do mesmo ano na revista a Dados, ao analisar o governo de Castello Branco, Cardoso apresentou uma reinterpretação da noção gramsciana de que o "príncipe moderno", "elemento di società complesso nel quale già abbia inizio il concretarsi di una volontà collettiva riconosciuta e affermatasi parzialmente nell’azione" (Q 13, §1, p. 1558). Para Cardoso, no caso brasileiro o príncipe moderno seria o próprio Estado, e não um partido político; e o regime militar brasileiro não poderia ser considerado "fascista" dada a ausência de mobilização de massas (Estado = Sociedade Civil), mas sim um regime autoritário-burocrático (Estado = anéis burocráticos), hegemônico ao suprir “as funções de cimento simbólico do bloco de poder, bem como as de compatibilizar a crença dos membros do aparelho do Estado de que suas funções são gerais” (CARDOSO, 1975 [1974], p. 216).
Em dois textos publicados um pouco mais tarde - um como capítulo de livro e outro como artigo em periódico científico - Cardoso voltou ao problema da hegemonia e a Gramsci (CARDOSO, 1977a, 1977b). Meses antes, em novembro-dezembro de 1976, o historiador Perry Anderson publicara o importante ensaio "The Antinomies of Antonio Gramsci" na revista marxista inglesa New Left Review. Cardoso comentou com entusiasmo o texto de Anderson no artigo "Estado capitalista e marxismo" publicado em 1977 na revista Estudos Cebrap (CARDOSO, 1977b). Cardoso via, nesse ensaio, a confirmação de algumas das hipóteses interpretativas com as quais já trabalhava, como o uso de hegemonia não apenas para “explicar a capacidade de direção da classe operária”, mas para “enfatizar o 'momento de consenso', de perpetuação da 'direção cultural' da burguesia italiana frente às classes subalternas na época do Risorgimento” (CARDOSO, 1977b, p. 13).
Orientado pela interpretação de Anderson a respeito das "antinomias gramscianas", Cardoso criticou alguns aspectos do que considerava a "teoria" de Gramsci para a relação entre Estado e Sociedade Civil: o pressuposto de que, no "Ocidente", a Sociedade Civil necessariamente predominaria sobre o Estado; a ideia do equilíbrio das funções hegemônicas na relação entre Sociedade Civil e o Estado; e, por fim, o conceito gramsciano de Estado que abrangeria também a Sociedade Civil. Para Cardoso, existiria uma "indeterminação teórica" no pensamento de Gramsci ao desconsiderar as condições de exploração e as mediações que devem ser feitas através das instituições parlamentares em cada caso. Além disso, concluía, supor equilíbrio entre Estado e sociedade seria desconsiderar o poder da coerção estatal, de modo a menosprezar a significativa distinção entre lei e costume (CARDOSO, 1977b, p. 14). Para o autor, “a abordagem gramsciana [do Estado] coloca, neste plano, mais problemas do que pode resolver” (CARDOSO, 1977b, p. 14). Neste caso, seria mais vantajoso contar com abordagens analíticas que colocassem o monopólio da força e a centralidade da sociedade política como os elementos teóricos determinantes. Independente da precisão interpretativa dos textos e conceitos gramscianos, essa era uma constatação não apenas teórica, mas também política em um ambiente no qual a transição para a democracia passava a ganhar destaque.
Não obstante, ao contrário de Anderson - para quem o pensamento de Gramsci era ameaçado pelo "fantasma do reformismo" - Cardoso via nos "esforços teórico-práticos" do intelectual sardo um "enorme avanço para equacionar a política revolucionária em países nos quais a formação da Sociedade Civil se afasta muito do que ocorreu nas democracias ocidentais" (CARDOSO, 1977b, p. 30). A análise gramsciana seria até mais "útil" para a "análise da política nas sociedades dependentes" do que das "europeias ocidentais em geral" devido ao "papel maior do Estado" ocupado nas primeiras (CARDOSO, 1977b, p. 30). Esse raciocínio justificava a combinação entre aspectos da ciência política de abordagem sistêmica norte-americana e a análise gramsciana da hegemonia.
Terceira refração: o transformismo autoritário-esclarecido das elites
Com o advento do processo de redemocratização no Brasil, a questão da hegemonia burguesa colocou-se novamente. No início dos anos 1980, Cardoso reafirmou a tese da impossibilidade de hegemonia burguesa no processo de abertura política apontando três grandes razões: i) a falta de pioneirismo entre os empresários na reivindicação da abertura política impossibilitava que assumissem uma função dirigente no processo que se iniciava; ii) o apoio dessas elites a uma "ideia abstrata de abertura política" não resistiria diante das pressão dos setores populares; e iii) tal como em 1964, o empresariado industrial abrira mão de sua hegemonia de classe, agora frente ao fortalecimento da classe trabalhadora, privilegiando um projeto de transição proposto pelo próprio governo militar em um movimento de "transformismo autoritário-esclarecido" (CARDOSO, 1983). O eco aqui da interpretação gramsciana da revolução passiva na Itália do século XIX era evidente.
Retomando os temas gramscianos deixados em aberto, como problemas sem respostas, Cardoso propôs a existência de certo equilíbrio entre o Estado e a Sociedade Civil no qual: o Estado não enfraquece o suficiente para desfazer-se, nem a Sociedade Civil se organiza e fortalece o suficiente para “o desenvolvimento de uma estratégia de assalto ao núcleo do poder” (CARDOSO, 1983, p. 26). Por um lado, aumentavam as reivindicações político-partidárias, por outro, o regime abria espaços para que grupos sociais passassem a integrar o sistema decisório, a fim de cooptá-los. Neste processo, os grupos empresariais faziam e refaziam seu sistema de alianças, politizando-se por meio do que Cardoso chamou de “mecanismo de pinças”. Assim, paulatinamente “coloca-se para o empresariado industrial um problema que, em linguagem gramsciana, seria o equivalente de uma tentativa de superação da crise orgânica do Estado pela busca de novas formas de hegemonia burguesa” (CARDOSO, 1983, p. 11, grifos adicionados).
Cardoso ia além: existiam duas opções para a superação da crise orgânica aberta no contexto da crise derradeira do regime militar iniciado em 1964. A primeira delas seria o rompimento com o autoritarismo e a restauração da democracia através da transformação das bases sociais do Estado. A segunda alternativa, a escolhida pelo empresariado, seria a da aceleração do "transformismo autoritário-esclarecido" do Estado, estimulando a ampliação das “alianças de classe constitutivas do sistema de dominação” e promovendo transformações restritas o suficiente para manter
[...] o controle do Estado pelo núcleo autoritário ancorado nas Forças Armadas e, em especial, na chamada "comunidade de informações", ambos plenamente convencidos de que segurança nacional só existirá com desenvolvimento econômico e este só é possível através das grandes unidades de produção, estatais e privadas, associadas às empresas multinacionais. (CARDOSO, 1983, p. 26).
Dentre as várias leituras desse período, Cardoso se dedicou a desconstruir especialmente aquela que afirmava a emergência de poder hegemônico popular como decisivo para a transição para a democracia. Nesse sentido, criticou quem sobrevalorizava e idealizava iniciativas políticas extra-institucionais ao mesmo tempo em que se recusava a pensar o Estado no Brasil. Em resposta a esse tipo de análise e em curiosa consonância com a política e análise pecebista, argumentou que a democratização da vida social seria insuficiente para apresentar uma alternativa à crise de hegemonia: “a hegemonia e o momento da liberdade (as ideias, os intelectuais, as grandes instituições reguladoras) não podem ser pensados separadamente da sociedade política." (CARDOSO, 1988, p. 53). Num cenário em que a crise de hegemonia não era capaz de ser solucionada em suas "bases sociais", Cardoso voltava para a noção gramsciana da hegemonia como capacidade de direção dos processos políticos pelas classes subalternas. Em outras palavras, uma direção que se daria a partir da apresentação de um projeto alternativo cultural-ideológico, construído de fora para dentro do Estado, em oposição ao projeto hegemônico implementado pelo governo vigente. Uma marcha democrática para dentro das instituições brasileiras.
Na tentativa de identificar os desafios dessa nova direção política, Cardoso sugeriu, sem desenvolver, que o processo de abertura brasileira impulsionado pelos de cima por meio de espaços controlados, produziria um código hegemônico novo: “O ‘partido hegemônico’ do capitalismo oligopólico, especialmente nas situações de dependência, é o Estado como burocracia, como produtor associado às multinacionais ou às empresas locais e como governo em última ratio de base militar” (CARDOSO, 1993 [1981], p. 269). Essa formulação, contudo, parece estar em construção em seu pensamento. Em nota de rodapé, faz a ressalva de que não se trataria plenamente da hegemonia gramsciana, por esta apresentar maior sensibilidade às questões da direção e do convencimento. O sociólogo questionou se a noção de hegemonia como direção política ainda poderia ser usada quando o parlamentarismo liberal-democrático deixou de existir como princípio legitimador nas sociedades avançadas: “não estaria a noção de Gramsci contraposta, mas presa ao horizonte do liberalismo?” (CARDOSO, 1993 [1981], p. 269). Por fim, como que pensando em voz alta, sugeriu que o novo código hegemônico seria “manipulador” e não liberador, mas, de qualquer forma, “a hegemonia burguesa clássica tampouco era liberadora” (CARDOSO, 1993 [1981], p. 269).
Frente a isso, as forças sociais poderiam aceitar a democratização e aproveitar as liberdades de seus espaços extra institucionais e dos espaços vazios oferecidos pelo regime, tal como os movimentos basistas estariam propondo; ou, no sentido oposto, poderiam transformar e democratizar a sociedade por dentro do Estado caindo, contudo, "no que queriam evitar, na vida política e partidária. Entretanto, esta proposta nestes termos é inaceitável: ela oferece mais do que riscos, certezas, de burocratismo em vez de democracia; de estatismo, em vez de socialismo” (CARDOSO, 1993 [1981], p. 271). A situação era a de um beco sem saída.
Conclusiones:
Nos anos 1960, o uso das ideias de Gramsci por Cardoso, em particular do conceito de hegemonia, assume tom retórico, sem referência aos textos originais. Embora Cardoso cultivasse simpatias ideológicas pela experiência socialista, seus escritos analíticos e políticos revelam uma relação de distanciamento analítico progressivo do comunismo soviético e de suas fontes. A partir dos anos 1970, nosso autor escreve de maneira explícita a respeito das ideias e conceitos gramscianos reivindicando sua utilidade para pensar a realidade brasileira. Aqui a incorporação do léxico gramsciano é criativa, em particular do conceito de "príncipe moderno", pois ao mesmo tempo em que Cardoso incorpora ativa e explicitamente conceitos e noções desse autor em suas análises, tece críticas e emenda correções. Já nos anos 1980, a dívida se torna mais explícita e o uso mais sistemático, particularmente na tentativa de encontrar uma "terceira via" para a transição brasileira para a democracia, evitando tanto o "jacobinismo" da esquerda radical emergente, como o burocratismo autoritário do poder militar. Uma leitura que de alguma forma antecede e orienta o que viria a ser a longa discussão sobre a revolução passiva no Brasil conduzida no ambiente intelectual acadêmico nos anos 1990 e 2000.
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Palabras clave:
Antonio Gramsci; Fernando Henrique Cardoso; Pensamento Político; Hegemonia