Resumen de la Ponencia:
Este artigo examina o lugar e o impacto das produções científicas de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre em seus locais de produção, Cuba e Brasil respectivamente. Os trabalhos de Ortiz e Freyre propõem uma concepção de “cultura nacional” que busca integrar agentes sociais antagônicos, o que, para os autores, conformaria uma ordem social “harmônica” e “democrática”. Ao caracterizar essas culturas nacionais, Ortiz e Freyre consideram a mistura racial e cultural como um aspecto virtuoso das dinâmicas sociais em Cuba e Brasil. De tal sorte que os bens culturais, biológicos, psicossociais e a organização social formadas a partir do entrelaçamento étnico ocorrido nesses países, sinalizavam a uma identidade e a uma unidade nacionais em que a modernidade seria um processo viável. Observa-se, portanto, uma afinidade no sentido, no significado, na motivação que os levam a estudar as formações sociais e culturais em seus países. Esse sentido comum seria exatamente o de compreender os caminhos para a harmonia social. Caminhos para se construir uma “nação harmônica” em países latino-americanos, que passaram pela experiência do colonialismo e da escravidão. A constatação de afinidade no sentido nos leva a indagações sobre os efeitos, as intenções e finalidades dos referidos intelectuais e o papel que desempenharam em seus contextos. Ou seja, considerando que Fernando Ortiz e Gilberto Freyre elaboraram propostas normativas a suas respectivas sociedades com conteúdo semelhantes, pergunta-se: essas propostas guardariam também correspondência em relação aos efeitos sociais e impactos políticos produzidos no contexto em que estavam inseridos? Para responder a essa pergunta buscou-se compreender a dinâmica entre contexto histórico e produção intelectual. Assim, foram analisadas as elaborações dessas propostas a partir de suas obras sociológicas do período, suas atividades em instituições de pesquisa e cultura, e suas relações com sujeitos sociais e políticos, considerando a interlocução do contexto de produção e realização dessas atividades com o conteúdo interno das obras. A análise demonstra que apesar do sentido semelhante a relação desses intelectuais com o contexto social de produção originou perspectivas analíticas e propostas normativas específicas. Isso faz com que os projetos intelectuais produzam efeitos sociais diferentes. Ademais, verifica-se que as ideias desses intelectuais em seus países atuam como forças sociais, mas em sentidos opostos: o projeto intelectual de Gilberto Freyre em um sentido conservador e o de Fernando Ortiz em um sentido de resistência cultural. Dessa forma, procura-se pontuar entendimentos correntes e formas presentes de compreender a realidade social que guardam semelhanças com a interpretação dos cientistas sociais em tela.
Introducción:
O objetivo deste artigo é analisar os entrelaçamentos da produção científica de dois cientistas sociais, Fernando Ortiz (1881-1969) e Gilberto Freyre (1900-1987), com a vida política de seus países. Parte-se do pressuposto de que em Cuba, como no Brasil, se estabeleceu uma relação urgente entre formação da cultura e formação da nação. De tal forma que, como aponta Gildo Marçal Brandão (2010) para o caso brasileiro, a literatura, a cultura e a ciência possuem dimensão política relevante e os intelectuais papel de protagonismo na sociedade. Estudar Fernando Ortiz e Gilberto Freyre nos permite acessar concepções que se enraizaram como representações populares da realidade. De tal forma, que compreender a construção dessas concepções, o sentido político em seus contextos e seus possíveis efeitos, é uma forma de entender como as ideias se tornam forças sociais e como podem ser mobilizadas para a manutenção ou para a transformação social. A comparação permite avaliar a força dos ajustamentos sociais nas interpretações sociológicas ou nos projetos intelectuais. Ademais, a comparação contribui para identificar com mais clareza as estruturas mentais arraigadas que são mobilizadas como perspectivas políticas, jogando novas luzes aos dilemas culturais e políticos dessas sociedades.
Examinando a produção bibliográfica, o papel desempenhado em instituições, as atividades de promoção artística e científica, e o entrelaçamento com agentes que fornecem recursos ao trabalho intelectual, observa-se que expressam ações racionais fundamentadas no exercício do poder ideológico[1]. A sistematização dessas ideias e ações, no caso de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre, se configuraram como projetos intelectuais. Nesse sentido, entendo por projeto intelectual o empenho intelectual de forma unificada, quando forma um conjunto sistemático de ideias e ações voltadas a exercerem o poder ideológico (transmitindo ideias, ensinamentos, visões de mundo) com o intuito de intervir na sociedade, seja por meio de proposições pragmáticas ou normativas.
O sentido dos projetos intelectuais de Ortiz e de Freyre, elaborados nas décadas de 1930-1940, é o mesmo: inventar uma “cultura nacional” capaz de harmonizar os conflitos sociais, mantendo a diversidade cultural. Nesse período, elaboraram interpretações sobre a formação sociocultural de seus países sugerindo que se constituem como um “caldo cultural” capaz de integrar agentes sociais antagônicos e propiciar uma ordem social harmônica. Este elemento comum em suas interpretações aponta para uma afinidade no sentido, no significado, na motivação que os levam a estudar as bases de uma cultura nacional. Entretanto, partem de condições sócio-históricas específicas, portanto, constroem perspectivas analíticas e proposições normativas distintas.
Partindo dessa afinidade no sentido, pergunto: esses projetos teriam também semelhanças em relação ao impacto social e político em suas sociedades? Neste trabalho, propomos responder e avançar em reflexões a respeito desta pergunta. Para tal intento, serão analisadas as perspectivas analíticas[2] e as proposições normativas desses projetos intelectuais, entrelaçadas com a vida política. A partir de então, busca-se avançar nas reflexões sobre os efeitos dos projetos intelectuais.
[1] De acordo com Norberto Bobbio, cabe aos intelectuais exercer o poder ideológico, atuando “sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra” (BOBBIO, 1997, p.11).
[2] Como Karl Mannheim (1941), entendo que o objeto do conhecimento das ciências sociais não pode ser considerado como um elemento isolado e indiferente ao pesquisador, ao contrário, sua existência está intimamente ligada com os sujeitos do conhecimento e sua situação histórico-social. Dessa maneira, a produção do conhecimento nas ciências sociais ocorre a partir da “infiltração da posição social do pesquisador” na própria análise social, de tal modo, que o conhecimento, nessa área da ciência, realiza-se a partir da perspectiva do sujeito. É nesse sentido que se faz necessária a compreensão das perspectivas analíticas de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre.
Desarrollo:
Nos anos de 1930, Fernando Ortiz elabora seu segundo projeto intelectual, o qual tem como princípio fundamental a ideia de transculturação. O primeiro foi o da primeira geração republicana de regeneração nacional, fundamentado na Antropologia Criminal. Ortiz foi abandonando esse projeto em finais dos anos vinte. Um novo projeto intelectual foi se formando no decorrer dos anos 30, principalmente em suas atividades na Institución Hispanocubana de Cultura e na Sociedad de Estudios Afrocubanos, seus estudos científicos, sobretudo em Antillas, Los factores humanos de la cubanidade e Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar.
Considero que a perspectiva analítica que orienta o segundo projeto intelectual de Fernando Ortiz se cristaliza no conceito de transculturação, elaborado pelo autor em 1940, em Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940).
Entendo que transculturação além de ser um termo, segundo o próprio Ortiz, mais adequado que aculturação, para expressar os processos de contato cultural, pois expressaria as várias fases do processo de transição de uma cultura a outra, é também a perspectiva analítica, uma forma de ver o mundo, o ponto de vista a partir do qual Ortiz analisa a sociedade cubana.
Destaco dois aspectos da transculturação como perspectiva analítica.
a ideia de transculturação em Ortiz mantém uma concepção essencialista da cultura, que se alicerça em preceitos evolucionistas (que ainda estariam arraigados em Fernando Ortiz. Arcadio Díaz-Quiñones fala dessa persistência evolucionista nas ideias de Ortiz).
O que se constata no entendimento das tradições folclóricas como a “cultura base” que guarda valores “autenticamente cubanos” e nas mudanças sociais como processos orgânicos, evolutivos, sem rupturas radicais com o passado.
É exatamente por essa concepção que os processos sociais entendidos pelo viés das transculturações se orientam à amenização dos conflitos sociais, à harmonização social.
2. Transculturações como processos de trocas e transformações cooperativas.
Opondo-se, portanto, aos processos de aculturação, de imposição e dominação cultural. Ortiz valoriza os complexos culturais que permitam a realização por completo dos processos de transculturações. O que descarta a interação com complexos culturais que buscam a dominação cultural. É nesse sentido, que Ortiz não fala, por exemplo, em transculturações do açúcar. Refere-se à “História do açúcar” (conservador e capitalista) e das “transculturações do tabaco” (libertador e revolucionário). As transculturações, portanto, podem ser entendidas como estratégias de resistência cultural e política operacionalizada pelos “saberes subalternos” nos capitalismos periféricos.
Como uma perspectiva analítica, as análises pelas transculturações permitem, interlocuções com o contexto político. Nesse aspecto, observa-se que muitos dos temas debatidos na Constituinte de 1936-40 foram colocados por Ortiz desde o início dos anos 30.
De forma sintética, as propostas normativas do Projeto Intelectual de Ortiz eram:
1) A afirmação da cultura afrocubana como parte fundamental da cubanidade e os negros como principais portadores da cubanía (a cubanidade consciente).
2) A promoção de uma integração étnica e cultural.
3) o antirracismo
4) Autonomia nacional no campo econômico e político, que passava pela valorização dos pequenos produtores rurais, portanto, por uma reforma agrária.
Nascido em mil e novecentos, é em Casa-grande & senzala de mil novecentos e trinta e três que Gilberto Freyre lança as diretrizes fundamentais de um projeto intelectual. A obra sociológica de Gilberto Freyre nos anos de 1930 afirma que a formação da sociedade brasileira se processou através de um sistema patriarcal. Esse sistema seria o responsável por regular as relações sociais no âmbito regional, mantendo um tenso equilíbrio inter-regional de forças, através de relações familiares e interfamiliares, não dependendo, portanto, de mecanismos advindos do Estado. Essas famílias, denominadas nos trabalhos de Gilberto Freyre como “a família brasileira”, possuíam grandes propriedades rurais, formando núcleos fechados de poder político e econômico nas regiões em que se situavam.
A integração das regiões seria garantida, segundo Freyre, pelo fato de conservarem uma “unidade básica nacional”, a tradição luso-brasileira (Cf. FREYRE, 1945). Essa tradição, diz o autor, foi formada a partir da miscigenação entre portugueses, negros e indígenas que teria formado um novo tipo humano, o luso-brasileiro. O qual exprimia uma nova forma de cultura, adaptada às novas condições de vida e de ambiente. Uma forma de cultura e de organização social que se expressava no sistema patriarcal (Cf. FREYRE, 2002 [1933], p. 11-12).
Para Freyre essa “tradição luso-brasileira”, construída nos tempos coloniais, na região Nordeste do Brasil, no seio das famílias patriarcais (rurais e aristocráticas), seria capaz de equilibrar os antagonismos sociais, os conflitos étnicos e regionais, e manter uma coesão social. Deve-se apontar, entretanto, que o sistema patriarcal funcionou como um mecanismo de seleção racial e cultural que selecionou os elementos mais adaptáveis para serem ajustados à tradição aristocrática luso-brasileira.
A partir de uma análise que tem como centro a região, Gilberto Freyre entende as mudanças sociais do século XX como processos que poderiam desarticular a ordem e a “autoridade” que normatizavam o convívio social na sociedade brasileira. Para evitar esse processo de fragmentação e fortalecer o equilíbrio social seria necessário manter algumas prerrogativas da “tradição luso-brasileira”. Nesse âmbito, seu projeto intelectual buscava transmitir as seguintes significações normativas:
1) A afirmação da herança cultural lusitana como princípio estruturante e predominante da organização social brasileira, portanto, da “cultura nacional”.
2) A valorização das tradições culturais regionais em âmbito nacional.
3) A legitimação da autoridade da família tradicional na vida política.
Além disso, procura 4) comprovar que a “democracia étnica e social” é um legado da formação brasileira que se faz presente nas relações sociais no país.
Conclusiones:
Região e transculturação são perspectivas analíticas mobilizadas como formas de resistência cultural, econômica e política aos imperialismos. Fernando Ortiz e Gilberto Freyre viam a necessidade em valorizar e conservar os elementos culturais próprios frente aos anseios políticos, econômicos e culturais das nações imperialistas, como também, harmonizar os conflitos sociais internos. Com esse intento, os projetos intelectuais dos referidos cientistas sociais procuram fortalecer a ideia de “cultura nacional” (cubanía em Ortiz, cultura luso-brasileira ou luso-tropical em Freyre) como meio de ampliar e solidificar uma coesão social entre os diversos grupos sociais da nação, mantendo a diversidade cultural.
Gilberto Freyre recupera a herança colonial portuguesa como modelo de orientação de conduta política e administrativa, realçando o papel de uma elite aristocrática tradicional na vida política do Brasil. Esse modelo teria se formado na região Nordeste, onde ainda permaneceria seus traços mais fortes. Nesse sentido, “resistir” aos imperialismos culturais significava valorizar as tradições portuguesas, que se expressaria em elementos culturais regionais, como fundamento para a unidade nacional. Assim, o projeto intelectual de Freyre privilegia a herança cultural portuguesa frente às demais culturas e aponta que a manutenção dessas tradições portuguesas é chave para a modernidade no Brasil. Inclusive, nesse sentido, se opunha à universalização de direitos sociais advindos da modernidade ocidental, como democracia política e educação, vistos como males modernos.
Em Fernando Ortiz, a transculturação, apesar de perpassada por um certo essencialismo da cultura e pela amenização dos conflitos, amplia o horizonte de pesquisa ao buscar um certo equilíbrio entre as culturas afro-cubanas, indo-antilhanas e hispânica. Na verdade, amplia a visão da cultura nacional como uma cultura que se integra e dialoga com as diversas possibilidades culturais no mundo moderno, ainda que sempre precise retomar, na visão de Ortiz, “o essencial”, “o autenticamente cubano”. Esse olhar mais amplo em Ortiz acontece por entender que apesar de elementos essenciais as transculturações existem na fluência do tempo, em uma dinâmica de transformações. Além disso, a amenização dos conflitos sociais não significa, em Ortiz, o apagamento da diversidade cultural ou a subalternização de um grupo étnico-cultural a outro.
A abordagem de Fernando Ortiz sugere reconhecimento e autonomia às culturas populares. Suas pesquisas sobre as transculturações em Cuba promove a emersão e inclusão de grupos sociais e formas culturais populares marginalizadas ou periféricas. Além disso, pensar as culturas a partir das transculturações possibilita: promover experiências de alteridade; reforçar o sentimento de inclusão e participação sociocultural dos setores, grupos, etnias marginalizados ou subalternizados; potencializar a cooperação na construção de saberes culturais compartilhados. Ou seja, a perspectiva das transculturações amplia a possibilidade para a construção de uma resistência àquilo que Paulo Freire chamou de “invasão cultural”. Considerando que: “(...) a invasão cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão” (FREIRE, 2018, p. 205)[1].
Dessa maneira, o projeto intelectual de Fernando Ortiz permite a construção de uma consciência política e social no sentido emancipatório e de conquistas de direitos, abrindo possibilidades para se pensar em categorias, entendidas como elementos constitutivos de processos sociais, que subvertem os mecanismos de reprodução social engendrados pelas estruturas coloniais. A transculturação no projeto intelectual de Ortiz guarda esse potencial. Podendo, assim, ser mobilizada nesse sentido.
O projeto intelectual de Freyre, por sua vez, encaminha um posicionamento passivo dos setores populares, submisso à “autoridade” de uma elite tradicional. Elite tradicional que durante a ditadura militar (apoiada por Freyre) foi submissa aos interesses norte-americanos, capitalistas, e opressora dos movimentos populares, negros e indígenas.
A valorização da região e das culturas populares não assumem um sentido de resistência cultural em Freyre, porque essas categorias são mobilizadas como elementos legitimadores de uma tradição luso-brasileira. Ou seja, a heterogeneidade é valorizada enquanto legitimadora de uma homogeneidade, a tradição luso-brasileira. Assim, nota-se uma subordinação, em tese, das culturas populares regionais à forma social instituída pela “tradição luso-brasileira”. Fundada pela família tradicional aristocrática, essa tradição luso-brasileira construiu, predominantemente, ações culturais antidialógicas, no sentido que Paulo Freire atribui ao termo[2]. Tanto que Gilberto Freyre entendia a necessidade de manter uma parcela de analfabetos, pois garantiriam a diversidade cultural. Ainda há que se lembrar que Freyre vincula essa tradição ao imperialismo português do século XX.
Destarte, apesar de contribuir para ampliar uma consciência nacional, como mencionado anteriormente, o projeto intelectual de Freyre, se constitui em obstáculo a uma consciência política e social mais ampla. Ou seja, não oferecendo possibilidades para se pensar em categorias no sentido da emancipação dos sujeitos e transformação das estruturas sociais que impedem essa emancipação. Nesse sentido, atua como inibidor de uma consciência política e social moderna, que seguindo os princípios da modernidade, se orienta à emancipação humana e às conquistas de direitos aos cidadãos.
As ideias que compõem os projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre parecem compor o substrato da memória social de cubanos e brasileiros. Isso porque ambos realizam uma leitura em profundidade das realidades sociais, com apelo à memória sentimental-afetiva. Parece que essas ideias funcionam como repositórios de memórias, de atitudes, comportamentos que vez por outra são mobilizados pelos sujeitos e instituições sociais para justificarem identidades temporárias, posicionamentos e ações políticas, formas de se relacionar com as diferenças, modos de se relacionar com os conhecimentos científicos e tradicionais, maneiras de enfrentar os problemas sociais. Nesse sentido, suas ideias são mobilizadas politicamente e atuam como forças sociais. Mas há que se atentar: são mobilizadas com direcionamentos políticos diferentes.
No caso do projeto intelectual de Freyre, fica evidente a mobilização política em um sentido conservador. Isto porque inventa uma tradição de permanência do intolerável na sociedade brasileira ao legitimar uma elite aristocrática como dirigente de uma ordem social que visa a continuidade das desigualdades, discriminações e hierarquias, ao mesmo tempo, que busca “harmonizar os conflitos sociais” com o intuito de promover o silenciamento das classes populares e dos grupos subalternos. Vale lembrar ainda que essa “tradição de manutenção do intolerável” tem se pronunciado às claras no debate político contemporâneo brasileiro, sobretudo nos discursos e práticas oficiais de autoridades governamentais.
Já o projeto intelectual de Fernando Ortiz é mobilizado como uma tradição de resistência na cultura, impulsionada pelos processos de transculturação. Uma tradição de resistência que possui um potencial de radicalidade. Verificado, sobretudo, no entendimento de Ortiz de que as vegas e os trabalhadores do tabaco possuem um potencial revolucionário em Cuba.
[1] E assim prossegue Paulo Freire: “Na verdade, toda dominação implica numa invasão, não apenas física, visível, mas às vezes camuflada, em que o invasor se apresenta como se fosse o amigo que ajuda. No fundo, a invasão é uma forma de dominar econômica e culturalmente ao invadido.
Invasão realizada por uma sociedade matriz, metropolitana, numa sociedade dependente, ou invasão implícita na dominação de uma classe sobre a outra, numa mesma sociedade.
Como manifestação da conquista, a invasão cultural conduz à inautenticidade dos segundos invadidos. O seu programa responde ao quadro valorativo de seus atores. A seus padrões, a suas finalidades” (FREIRE, 2018, p. 205-206).
[2] Paulo Freire (2018) caracteriza quatro aspectos da ação antidialógica: 1) conquista: processo de mitificação do mundo para produzir indivíduos passivos, aptos a se adaptarem à realidade dada (não problematizada); 2) divisão: busca criar cisões nos grupos dominados, enfatizam uma visão localista dos problemas sem apanhar a totalidade e pregando a harmonia social; 3) manipulação: elaboração de pactos das elites com as massas populares; 4) invasão cultural: que seria a imposição da visão de mundo dos opressores.
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Palabras clave:
Transculturação; região; resistência; Fernando Ortiz; Gilberto Freyre; pensamento social latino-americano.