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Resumen de la Ponencia:
O desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação que acompanhamos nas últimas décadas contribuiu com as metamorfoses do trabalho e tais mudanças incidiram sobre a saúde dos indivíduos. Neste sentido, sob a égide do capitalismo contemporâneo, a saúde dos trabalhadores que realizam trabalho mediado por plataformas digitais se mostra um objeto de estudo necessário. Este artigo tem como objetivo discutir a inter-relação entre as condições de trabalho e a saúde de motoristas e entregadores por aplicativos no contexto da plataformização do trabalho. Nossa proposta de investigação considera o trabalho informal e flexível relacionado à precariedade e às condições de trabalho que se constituíram numa conjuntura política e econômica neoliberal, que se favorece de estruturas legais e de novas tecnologias digitais para explorar, ao máximo, o trabalho humano. A discussão proposta tem como principais métodos de investigação: pesquisa bibliográfica relacionada ao tema e os resultados de pesquisas empíricas recentes que foram desenvolvidas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Projeto Fairwork Brasil, as quais obtiveram resultados provenientes de levantamentos de dados de diversos estados do país. As autoras deste artigo, inclusive, fazem parte da equipe de pesquisadores do Projeto Fairwork no Brasil. Por fim, a partir das formas de regulação e de gestão deste modelo de trabalho plataformizado, foram identificados aspectos que acentuam o desgaste do trabalho como a intensificação da jornada de trabalho, a insegurança e violência urbana, a exposição aos riscos biológicos das atividades, riscos de acidentes de trabalho, a ausência de proteções e seguros sociais, entre outros.
Introducción:
No decorrer da história, as formas de acumulação de capital passaram por diversas transformações. O capitalismo mantém-se vivo por meio da competitividade e da concorrência e, principalmente, do controle sobre o trabalho e de trabalhadores (Antunes, 2009). Do industrialismo manufatureiro ao padrão de acumulação taylorista/fordista, da consequente crise da forma de organização e gestão da produção e do trabalho taylorista/fordista ao toyotismo. A partir da década de 1970, acompanhamos um processo de reestruturação produtiva que inaugurou o modelo de acumulação flexível constituído por processos de produção voltados à demanda e à flexibilização das relações e condições de trabalho.
Hoje, diante da dinâmica concorrencial capitalista, se constituiu uma articulação que possibilita um formato novo e mais atualizado do toyotismo por meio das plataformas digitais. As plataformas digitais têm abrigado inúmeros trabalhadores e trabalhadoras, porém elas operam como mediadoras e não como empregadoras. Desta forma,identificamos a constituição de um novo modo de trabalho no contexto das recentes transformações tecnológicas, que chamaremos aqui de trabalho mediado por plataforma digital (ou por meio de plataformas digitais).
É sabido que em todos os modelos de organização e gestão do trabalho encontram-se formas de controle sobre o trabalho que impactam as condições de trabalho e o processo de trabalho. A partir da reestruturação produtiva ficaram evidenciados os sinais de mal-estar dentro e fora dos locais de trabalho em razão da flexibilização de contratos e do processo de trabalho, do aumento da intensidade e do ritmo de trabalho, etc. Os crescentes índices de doenças relacionadas ao trabalho, como doenças osteomusculares e transtornos mentais, denotam a precariedade que assola o mundo do trabalho e saúde dos trabalhadores (Praun, 2016; OIT, 2013).
Ainda, pesquisas recentes demonstram que por meio do controle e do gerenciamento do trabalho e da ausência da relação de trabalho, tornou-se possível expropriar ainda mais força de trabalho e elevar a lucratividade a níveis altos (Srnicek, 2017; Slee, 2017; Abílio, 2020; Antunes, 2018). Partindo do ponto de vista que as transformações nos sistemas produtivos tendem a também reconfigurar as formas de acidentes e de adoecimento recorrentes do trabalho (Uchôa-de-Oliveira, 2020), entendemos que existe uma relação entre o trabalho mediado por plataformas digitais e o adoecimento dos trabalhadores.
Tendo tudo isso em vista, este artigo tem como objetivo discutir a inter-relação entre as condições de trabalho e a saúde de motoristas e entregadores por aplicativos no contexto da plataformização do trabalho. A discussão proposta tem como principais métodos de investigação: pesquisa bibliográfica relacionada ao tema e os resultados de pesquisas empíricas recentes que foram desenvolvidas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Projeto Fairwork Brasil, as quais obtiveram resultados provenientes de levantamentos de dados de diversos estados do país. As autoras deste artigo, inclusive, fazem parte da equipe de pesquisadores do Projeto Fairwork no Brasil. Por fim, a partir das formas de regulação e de gestão deste modelo de trabalho plataformizado, serão apresentados aspectos que acentuam o desgaste do trabalho como a intensificação da jornada de trabalho, a insegurança e violência urbana, a exposição aos riscos biológicos das atividades, riscos de acidentes de trabalho, a ausência de proteções e seguros sociais, entre outros.
Desarrollo:
O trabalho mediado por plataformas digitais
Nos últimos anos acompanhamos uma crescente adesão de consumidores, usuários e trabalhadores às plataformas digitais, porém existem diferentes modalidades e formas de atuação das plataformas. A Organização Internacional do Trabalho [OIT] (2021) apresentou em relatório duas grandes categorias que as plataformas digitais podem ser enquadradas: as de location-based, cuja a determinação da atuação e das atividades depende da localização geográfica e das dinâmicas territoriais; e as web-based, plataformas que concentram suas atividades apenas de modo on-line, na internet. As atividades de ambas as modalidades perpassam por serviços digitais e produtos para usuários individuais, facilitação e mediação entre diferentes usuários e plataformas de mão de obra. Algumas plataformas podem ser consideradas “híbridas”, possuem mais de uma dessas características. Nick Srnicek (2017) distingue tipos mais específicos de plataformas: plataformas de publicidade, plataformas de produtos, plataformas de nuvem, plataformas industriais e plataformas enxutas. As plataformas de publicidade extraem e analisam informações de usuários com intuito de vender ao espaço publicitário. As plataformas de produtos oferecem bens e serviços acessíveis para assinantes. Plataformas industriais transformam a fabricação de produtos tradicionais em processos baseados na internet. Plataformas de nuvens alugam armazenamento de dados. E, por fim, as plataformas enxutas são caracterizadas por não possuírem os bens materiais dos quais lucram.
A Uber e 99Pop no ramo de transporte de passageiros, iFood e Rappi no setor de entregas, entre outras, que destacam-se no mercado nacional, podem ser consideradas plataformas de mediação, location-based (OIT, 2021), bem como enquadradas por plataformas enxutas (Srnicek, 2017). Esses modelos de plataformas digitais as quais nos referimos possuem três partes de execução importantes: quem realiza o trabalho; quem solicita o trabalho; e a plataforma que intermedeia a oferta e a demanda (Schmidt, 2017). Desta forma, a plataforma como “intermediária” é capaz de transferir a maioria dos custos, riscos e responsabilidades para as duas outras partes. Porém, quem presta os serviços, ou melhor, a parte que trabalha significa também a parte mais prejudicada desse triângulo (usuário-plataforma-trabalhador).
É evidente nesse modelo de plataforma que o trabalho é central para a realização do serviço final e ele, mesmo essencial, não é diretamente reconhecido. Por isso o trabalho é mediado pelas plataformas. O trabalhador constitui uma parte em desvantagem nesta relação, pois uma vez que a plataforma possui total acesso e controle dos dados, processos e regulamentos, fica evidenciada a assimetria de poder (Schmidt, 2017). Esta disparidade constitui uma das bases desse modelo de negócio.
Assim como se evidenciou nas últimas décadas, os aspectos gerenciais e organizacionais herdados da reestruturação produtiva aumentaram a precarização das condições de trabalho. O trabalho mediado por plataformas pode ser considerado, portanto, mais uma dessas formas e meios para a exploração da força de trabalho.
O cenário do mercado de trabalho brasileiro se construiu historicamente de maneira instável. Os trabalhadores oscilam entre ocupações formais, informais, contratos temporários e pequenos negócios familiares. O trabalho subordinado às plataformas aparece hoje como uma novidade, tendo em vista também a conjuntura recente do período de pandemia e pós-pandemia, estes setores de serviços intermediados por canais de tecnologia cresceram em número de usuários, trabalhadores e mercado.
O exercício do controle do processo de trabalho pelas plataformas demonstra que os mecanismos de gerenciamento algorítmico, dataficação e gamificação, além das novas configurações do trabalho, tornam os trabalhadores cada vez mais dependentes das plataformas para obter recursos para a sobrevivência.
Neste setor, os trabalhadores são considerados autônomos pelas empresas de plataforma porque não possuem qualquer vínculo empregatício reconhecido. No entanto, consideramos que o caráter de autonomia é fictício, pois os trabalhadores são subordinados às regras e às demandas previstas e impostas pelas plataformas. De um lado a plataforma propõe flexibilidade de trabalho, e, de outro, o trabalhador encontra na flexibilidade uma forma de ampliar a renda e conciliar o trabalho com outras tarefas do cotidiano. A forma como o trabalhador mediado por plataformas organiza o seu próprio processo de trabalho, o qual também está sujeito às interferências das plataformas, é chamada pela socióloga Ludmila Abílio (2019) de autogerenciamento subordinado.
Estima-se que aproximadamente 1,5 milhão de pessoas trabalharam no setor de transportes no fim de 2021, com entrega de mercadorias ou transporte de passageiros. Diante desse número, 61,2% são representados motoristas de aplicativos ou taxistas. Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), os profissionais vinculados às plataformas são em maioria homens, pretos e pardos, com idade inferior a 50 anos, com escolaridade variada. Por exemplo, entre os mototaxistas 60,1% não possuem ensino médio completo. Entregadores de mercadorias com moto e motoristas de aplicativo e taxistas encontram-se mais concentrados na região Sudeste e mototaxistas se concentram nas regiões Nordeste e Norte do país (Goés; Firmino; Martins, 2022).
Saúde do trabalhador no contexto da plataformização do trabalho
Segundo Cristina Laurell (1976), as diferentes formações sociais apresentam perfis patológicos também diversos, as quais dependem do modo particular que se desenvolvem as forças produtivas e as relações sociais de produção. Neste sentido, entendemos que o trabalho mediado por plataformas está inserido no processo de produção capitalista e suas estruturas organizacionais e gerenciais são determinantes para a compreensão do processo saúde-doença dos trabalhadores deste contexto.
Para contribuir à discussão utilizamos duas categorias analíticas de Laurell (1993) para contribuir ao debate: cargas de trabalho e processo de desgaste.
Cargas de trabalho dizem respeito aos elementos do processo de trabalho que podem alterar os processos corporais e psíquicos. Classificados em dois principais grupos de cargas. As que possuem materialidade externa ao corpo (físicas, químicas, biológicas e mecânicas) e as que adquirem materialidade através do corpo humano (fisiológicas e psíquicas). Os dois grupos põem em movimento a capacidade de adaptabilidade do corpo e da psique expressadas pelos seus processos.
O desgaste é entendido pela perda da “capacidade biológica e psíquica, efetiva e/ou potencial” (Laurell, 1993, p. 21). Deste modo, através da apreensão dos processos biopsíquicos, o desgaste da saúde, de modo geral, afeta o desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas de cada um. De maneira analítica, podem ser identificados “padrões de desgaste” dos trabalhadores por meio das formas da utilização da força de trabalho no processo de trabalho.
A partir disso, a seguir exporemos de maneira generalizada aspectos das cargas de trabalho e do processo de desgaste de entregadores e motoristas por aplicativo com base em pesquisas recentemente realizadas por alguns grupos de pesquisas, como o Fairwork Brasil e a Central Única dos Trabalhadores e o Instituto Observatório Social.
Inicialmente, destacaremos alguns resultados da pesquisa mais recente divulgada pelo Fairwork Brasil. O Projeto Fairwork tem como interesse a investigação do trabalho mediado por plataformas digitais. O projeto desenvolve uma pesquisa-ação sobre trabalho decente e condições do trabalho mediado por plataformas digitais. É coordenado pela Universidade de Oxford (UK) e possui uma equipe de pesquisadores de várias universidades do país. Inclusive, as pesquisadoras autores deste artigo integram o projeto.
No início de 2022, foi publicado o primeiro Relatório Anual Fairwork Brasil 2021. O relatório descreve o contexto do trabalho por plataformas no Brasil e elencou, por meio de pontuações, algumas plataformas que atendem aos princípios de trabalho decente elaborados pelo Fairwork (2022). As plataformas digitais deveriam cumprir os cinco princípios para serem consideradas promotoras do “trabalho decente'', que são eles: remuneração justa, condições justas, contratos justos, gestão justa, representação justa. As plataformas poderiam ter sido pontuadas de 0 a 10, sendo que quanto mais evidências sobre o cumprimento dos princípios fossem levantados, maior seria a pontuação.
O objetivo da pesquisa é estimular as plataformas e as instituições do Estado a avaliar e melhorar as condições do trabalho mediado por plataformas. As plataformas Uber e 99Pop na área de transportes e a iFood e UberEats, no ramo de delivery, foram analisadas pelo projeto. A plataforma iFood recebeu 2 pontos ao atender alguns requisitos no que se refere à clareza dos termos e condições aceitos pelos usuários e no âmbito representação, pois apresentou meios de diálogo com trabalhadores e garantia de liberdade de associação.
Dentre as plataformas citadas, apenas a 99Pop evidenciou que os motoristas vinculados à plataforma atingem ao menos um salário mínimo local (R$1.212,00 ao mês em 2021), no qual calcula-se os descontos com custos e recursos para o trabalho que são administrados pelos motoristas.
Diante do resultado da avaliação sobre as condições de trabalho, Uber e 99Pop demonstraram ações voltadas à proteção dos trabalhadores. Durante o período mais ávido da pandemia de Covid-19, as plataformas ofertaram equipamentos de proteção individual e garantias de ganhos proporcionais aos que seriam trabalhados no caso de contaminação e necessidade de afastamento. No entanto, os trabalhadores das plataformas, tanto da área de transporte quanto de delivery, apontaram para aspectos comuns de saúde e segurança, como falta de infraestrutura de acesso à banheiros, água potável e lugares de descanso. Além disso, das queixas mais recorrentes, destacam-se o risco de acidentes de trânsito, a violência, a exposição ao sol, dores e desenvolvimentos de problemas crônicos nas costas, estresse e sofrimento psíquico.
Entregadores
Os entregadores atuam no transporte de mercadoria, frete de produtos ou de alimentos. O ramo de delivery de alimentos possui uma grande expressão no mercado e de adesão de trabalhadores, sendo que as principais plataformas deste setor no Brasil são: iFood, Rappi, ZéDelivery, James, entre outras. Essa atividade é realizada com moto ou bicicleta, por isso também os trabalhadores podem ser identificados como bikeboys ou motofretistas.
Com incentivo da OIT, a Central Única de Trabalhadores e o Instituto Observatório Social desenvolveram uma pesquisa (CUT, 2021) sobre as condições de trabalho de entregadores da cidade de Brasília (Distrito Federal) e Recife (Pernambuco). Esta pesquisa teve também o intuito de compreender os impactos das recentes reformas previdenciária e trabalhista sobre a atividade dos trabalhadores mediados por plataformas.
O processo de trabalho de bikeboys e motofretistas possui inúmeras nuances sobre saúde e segurança que precisam ser levadas em consideração. Inicialmente, foi possível identificar cargas materializadas externamente ao corpo, como o excesso de exposição ao sol e às chuvas; vulnerabilidade a acidentes de trânsito, assaltos e violência; e também a inalação de pós e gases presentes nas ruas das grandes cidades.
Uma característica muito importante do trabalho de entrega é o tempo e a gestão do tempo. Segundo a pesquisa, há um caráter heterogêneo dos arranjos adotados por cada trabalhador em relação à jornada de trabalho. O tempo de trabalho e a forma de organização do tempo por dia e por semana são variáveis, pois uma das principais características desta atividade é a flexibilidade de horário e isto constitui um dos fatores que torna o trabalho atrativo para os interessados em ingressar no ramo.
Na pesquisa, constatou-se que há uma despadronização da jornada de trabalho, notada pela perda de referência no modelo antes convencional de 8 horas por dia, 5 dias na semana, e 40 a 44 horas semanais de trabalho. Neste sentido, há inúmeros relatos de extensão dos horários de trabalho, pois mesmo que o entregador trabalhe e fique disponível a plataformas durante 8 horas diárias, muitas vezes estas horas estão espaçadas por longos períodos em que não há demanda. Por exemplo, um entregador que trabalha das 12h às 15h, durante o horário de almoço com maior demanda e das 18h às 23h, seguindo a mesma lógica de maior número de pedidos. Às vezes, as 3 horas entre os períodos de maior atividade não necessariamente são destinadas ao descanso. Entende-se que esta extensão da atividade, podendo ser chamada de invasão, se sobrepõe aos tempos dedicados ao descanso e a outras atividades, até alcançar situações-limite e que, praticamente, consomem todo o dia e todos os dias da semana (CUT, 2021). Ademais, a dinâmica de trabalho prescrita à atividade resulta, segundo a pesquisa, em certa tensão constante do tempo de entrega. Este tempo é determinado algoritmicamente através da avaliação, metas, até mesmo através da sugestão de um tempo máximo para entrega que algumas plataformas propõem.
É importante salientar que a relação prolongada do indivíduo com o trabalho e seu envolvimento revela processos de tensionamento fisiológicos e psicológicos que podem estar vinculados ao processo de desgaste da saúde do trabalhador (Laurell & Noriega, 1989). Neste caso, o desgaste não fica tão visivelmente compreendido, porque depende das características e mobilizações subjetivas dos indivíduos aliadas ao prolongamento da exposição às cargas fisiológicas e psicológicas. Como por exemplo a tensão e a apreensão que são acometidos entregadores pela possibilidade de serem lesados fisicamente por um acidente, pelo risco de perda do trabalho, pelo medo e risco de assaltos, violência ou assédio.
As condições precárias dos lugares de uso para pausa e descanso (calçadas, praças, postos de gasolina e shoppings) também se enquadram como cargas do âmbito fisiológico e psíquico que prejudicam a viabilidade do desenvolvimento das capacidades biopsíquicas dos indivíduos. Muitas vezes, eles não encontram água, nem banheiros, ou tomadas para recarga da bateria de energia do celular.
Especificamente sobre a saúde mental destes trabalhadores relaciona-se ao medo de bloqueios, pois as plataformas utilizam das regras de avaliação e punições de restrição ao trabalho nas plataformas que confere certa pressão sobre qualidade do trabalho e cumprimento das regras prescritas pelas plataformas. A intenção do trabalhador sempre será de não ser atingido por bloqueios para não prejudicá-lo financeiramente e emocionalmente.
Os relatos dos trabalhadores demonstram também que no momento da entrega do produto, os entregadores podem passar por situações preconceituosas, discriminatórias e humilhantes, tanto de usuários do serviço quanto por outros indivíduos envolvidos no processo, como os porteiros, seguranças, etc.
Consideramos que todas as cargas descritas se relacionam ao processo de desgaste vivenciado pelos entregadores.
Motoristas
No caso do serviço ofertado pelas plataformas do setor de transporte de passageiros, o valor das viagens corresponde a um preço baseado no tempo e na distância, a um custo fixo variável dependendo da região e um valor dinâmico que é determinado pela oferta e demanda. Quando finalizada uma viagem, uma parcela é destinada à empresa de plataforma e o restante ao motorista. Assim como é feito com as entregas de mercadorias. Embora o valor de uma viagem, mesmo com os aspectos já citados, seja determinado pela plataforma e não pelo motorista, tais empresas se abstém da possibilidade de haver um vínculo empregatício na relação entre o motorista e a empresa. A empresa Uber defende que “não emprega nenhum motorista e não é dona de nenhum carro” (Uber, 2020), pois oferece “uma plataforma tecnológica para que motoristas parceiros aumentem seus rendimentos e para que usuários encontrem uma opção de mobilidade” (Uber, 2020).
O processo de trabalho dos motoristas indica cargas de trabalho muito parecidas com os bikeboys e motofretistas, principalmente na relação com as plataformas, as características da gestão e autogerenciamento do trabalho. Contudo, as características da atividade se modifica dependendo do meio de transporte, motoristas possuem uma exposição menor ao sol, frio e chuvas porque se protegem em seus carros. Mas possuem os mesmos problemas para paradas para descanso, acesso a banheiros públicos, alimentação, etc. O que se repete também é a extensão da jornada de trabalho, que chegam até 16 horas por dia ou mais.
Os trabalhadores motoristas por aplicativos no Brasil submetem-se a longas, exaustivas e inseguras jornadas de trabalho. Muitas vezes esta atividade de trabalho possibilita a obtenção única ou complementar de fonte de renda, acessar bens de consumo e cumprir com questões básicas para a reprodução da vida. Desta forma acabam ficando expostos a acidentes e ao adoecimento (Fairwork, 2022).
O Relatório do Projeto Fairwork divulgou o seguinte relato de um motorista por aplicativo:
Pedro tem ensino médio completo, se declara pardo, tem uma filha e mora em Porto Alegre (RS). O trabalho como motorista por meio da plataforma é a sua principal fonte de renda: “é uma coisa que eu preciso pra sobreviver”, conta. As jornadas intensas de trabalho de 8 a 12 horas contínuas por dia não são prazerosas, mas necessárias. Ele diz que a atividade muitas vezes não permite pausas para ir ao banheiro, nem conversar com colegas. “Tenho metas se eu não trabalhar eu não recebo. A Uber cria um vínculo querendo ou não”. Pedro reconhece que não é o próprio patrão e compreende que os algoritmos são uma forma de controle da plataforma sobre o trabalho. “O próprio sistema te manipula”. Cita como exemplos os bloqueios feitos pela plataforma ou a não autorização a participar de promoções que a plataforma organiza. “A Uber se comporta como se o carro fosse dela, mas é meu”. Não é possível cancelar uma corrida por escolha, mesmo com os motivos, de falta de segurança na região, passageiros sem máscaras, crianças sem cadeirinhas de viagens (Fairwork, 2022, p. 20).
Várias camadas do processo de trabalho de inúmeros motoristas destacam-se neste relato. Primeiro, o excesso de horas trabalhadas pela necessidade de alcançar metas pré-estabelecidas, mas que também são calculadas de acordo com as necessidades. Essas necessidades podem ter relação com possíveis dívidas, uma renda ideal a ser alcançada, também a necessidade de arcar com os altos custos do próprio trabalho como carro, combustível, manutenção e etc.
Outra afirmação importante é que, no caso dos motoristas, eles possuem pouca interação com colegas, pois não possuem ponto de encontro e também o encontro um com os outros não faz parte da atividade (entregadores tem locais de espera para retirada de pedidos em restaurantes e cozinha de delivery que acabam compartilhando da rotina com outros trabalhadores). Embora haja a interação com passageiros, o trabalho como motorista pode ser solitário. Aliás, há o fato de que os usuários das plataformas de transporte possuem autonomia nas avaliações sobre os motoristas, as quais podem acabar gerando banimentos se não estiverem no nível de qualidade exigido pela plataforma. Isso faz com que os motoristas estejam sempre em estado de atenção para atender as demandas da plataforma, além da atenção necessária no trânsito.
As plataformas também não têm controle sobre o comportamento dos passageiros; por mais que demonstrem “educar” seus usuários, é de responsabilidade dos motoristas alertar ao uso de máscaras (quando obrigatório) e até a necessidade de cadeirinha de viagem para crianças e o uso do cinto de segurança. O atrito ou conflito com passageiros também pode acarretar em bloqueios e penalidades, impedindo a atividade de trabalho de motoristas. Isso pode ser muito preocupante se a única fonte de renda possível ao trabalhador é a plataforma. Muitas vezes não há comunicação, nem direitos ou garantias com as plataformas (Fairwork, 2022).
Conclusiones:
A Câmara de vereadores da cidade de São Paulo divulgou no início de dezembro de 2022 um relatório com dados, questionamentos e recomendações referentes à atuação das plataformas digitais de transporte de passageiros e delivery na cidade, além de destacar as condições de saúde e segurança que os trabalhadores vêm enfrentando. Segundo a investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que deu origem ao relatório, a iFood afirma que 49% dos entregadores trabalham mais de 10 horas por dia. Além disso, destaca-se o relato da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), cuja o dado diz que ao menos 28% dos motociclistas que morreram em 2021 envolvidos em acidentes de trânsito atuavam como motofretistas. Muito relevante também se mostrou o dado do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, que diz que 70% das pessoas em estado grave que entraram ou estiveram internadas no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas nos últimos anos são vítimas de acidentes de moto (São Paulo, 2022).
O que se percebe é um mesmo Estado atingido pelos prejuízos dos casos de acidente e de sua ausência, e evidentemente, contraditoriamente, responsável. A atuação das instituições públicas é essencial para a promoção de melhores condições de trabalho por plataformas. É preciso implementar e ampliar legislações de trânsito que diminuam casos de acidentes, controlar as atuações das plataformas, voltar-se à segurança e às condições de trabalho, e atender as demais garantias que escorrem entre os dedos daqueles que de fato necessitam.
Ainda assim, são inúmeros os relatos e evidências de resistência da classe trabalhadora. A exemplo, há o projeto e manifesto também coordenado pela CUT e pelo Observatório Social com apoio da OIT: A gente não se entrega. Esta iniciativa tem como objetivo ampliar o debate sobre as pautas da classe, dar voz às lutas por direitos e fortalecer a organização dos trabalhadores. A própria pesquisa apresentada neste artigo é divulgada e constitui uma ferramenta de contestação às empresas e ao Estado (CUT, 2021). Além disso, outros modelos de trabalho no campo crescente das plataformas digitais possuem meios alternativos como o cooperativismo de plataforma, cuja a proposta se baseia na autogestão, na horizontalidade e na copropriedade entre trabalhadores (Grohmann, 2018; Scholz, 2016).
Por fim, a partir dos aspectos levantados, entendemos que as atividades exercidas por entregadores e motoristas apresentam aspectos de insegurança, não somente em relação ao controle do trabalho, mas também porque estão expostos à violência urbana, aos acidentes de trânsito, e às doenças de longa exposição e infectocontagiosas. Além disso, os trabalhadores estão sujeitos a danos fisiológicos e psíquicos que não se materializam no corpo, mas afetam diretamente os “modos de andar a vida” (Laurell & Noriega, 1989). As cargas psíquicas e as cargas de trabalho de modo geral apresentam relação com os crescentes números de transtornos mentais relacionados ao trabalho. É urgente, portanto, problematizar a relação entre o modelo de gestão e organização do trabalho de entregadores e motoristas de modo a contribuir com a discussão sobre o processo saúde-doença e as condições de trabalho no contexto do trabalho mediado por plataformas.
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Palabras clave:
Condições de trabalho; Entregadores; Motoristas de aplicativo; Plataformas digitais; Saúde do trabalhador.