Resumen de la Ponencia:
Este trabalho é um recorte do projeto de tese intitulado “Itinerários das pessoas com diagnóstico de transtorno mental que buscam acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoa com deficiência, na cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) concebido pela Constituição Federal brasileira de 1988, é considerado o maior Programa de Transferência de Renda do Brasil em termos monetários, por garantir um salário mínimo mensal para idosos(acima de 65 anos) e pessoas com deficiência, que tenham renda familiar per capita até 1/4 de salário mínimo, desvinculados da necessidade de contribuição direta. A respeito dessa demanda, dados do Portal da Transparência indicam que até julho de 2020 havia a manutenção de 4.840.000 beneficiários (deficientes e idosos), dentre esses 53,3% concedidos à pessoa com deficiência e 43,2% a idosos. Contudo, para acessar o benefício na busca da cidadania, o requerente necessita primeiramente, submeter-se a um processo de ajustar-se a uma ordem de pobreza, que se coadunam com a desqualificação social, que se refere a um status de pobreza, no qual os indivíduos vivem em condições precárias e seus modos de vida são vistos como ameaça à coesão social. A pessoa com diagnóstico psiquiátrico e solicitante do BPC é enquadrada como pessoa com deficiência. Este trabalho é uma síntese teórica produzida por meio de uma revisão da literatura a qual, procedeu-se com análise de algumas categorias que surgiram como justificativa para a propositura do projeto, sendo estas: estigma; desqualificação social e pobreza. Buscou-se aporte teórico para a compreensão dessas categorias em Erving Goffman, Michel Foucault e Georg Simmel. Para Goffman (1988) o estigma corresponde a um atributo diferenciado, profundamente depreciativo, sobre o status moral de alguém, propiciando vários tipos de discriminação e marcas internas que podem sinalizar uma diferença de identidade social. As pessoas com transtornos mentais carregam consigo o estigma decorrente do diagnóstico psiquiátrico. Para Foucault (1999), o “louco” era visto como um indivíduo desajustado, perturbado, perigoso e inapto para o sistema de produção. Essa definição levou a exclusão de milhares de pessoas, relegando-as a exclusão da vida produtiva e a pobreza. Na concepção de Simmel (1998),a condição sociocultural nominada de "pobre", compreende o ato de ser assistido por políticas sociais ou da caridade, sem que haja condições de igualdade e reciprocidade frente aos demais, a qual posiciona o agente em uma camada socialmente desvalorizada, caracterizada pela desigualdade e dependência da assistência. Nessa perspectiva, pressupõe-se que a pessoa com transtorno mental que busca o acesso ao BPC, poderá usufruir de um estatuto social duplamente desvalorizado em razão da sua deficiência e sua situação de pobreza. Todavia, a pesquisa está em desenvolvimento e novas questões podem ser levantadas no processo de análise dos dados empíricos.
Introducción:
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) concebido pela Constituição Federal de 1988, é considerado o maior Programa de Transferência de Renda do Brasil em termos monetários, por garantir um salário mínimo mensal para idosos (acima de 65 anos) e pessoascom deficiência, que tenham renda familiar per capitaaté 1/4 de salário mínimo, desvinculados da necessidade de contribuição direta, integrando assim a política nacional de assistência social. A respeito dessa demanda, os dados presentes no Portal da Transparência indicam que até julho de 2020 havia a manutenção de 4.840.000 beneficiários (deficientes e idosos), dentre esses, 53,3% concedidos à pessoa com deficiência e 43,2% a idosos (Brasil,2021).
O BPC para as pessoas com transtornos mentais, objeto deste estudo, destina-se a proteger os indivíduos que se encontram em situação de pobreza, haja vista que essa condição favorece a privação de necessidades e carências de bens e serviços que obstaculizam a garantia de um bem-estar-mínimo, e, no que lhe concerne, produzem vulnerabilidades. Constituindo-se um importante instrumento no campo dos direitos sociais,o qual alberga fundamentos expressivos para a dignidade da pessoa humana, sua autonomia, cidadania, dentre outros.
A despeito da prevalência dos transtornos mentais, estudos realizados por França et al., (2021) revelam que cerca de 20,3% da população brasileira possuem algum diagnóstico psiquiátrico, que correntemente se encontram afiliadasaos sofrimentos ou incapacidades significativas que afetam atividades sociais, profissionais ou outras atribuições expressivas.
Além disso, os autores aindasalientam, que as pessoas com transtornos mentais carregam consigo o estigma que “[...] cria uma barreira, de modo que o diagnóstico psiquiátrico já é o suficiente para rotulá-lo, criandoum estereótipo negativo...” (França et al., 2021,p. 1329).
Para acessar o benefício na busca da cidadania, inclusão social e autonomia cidadã, o requerente necessita, primeiramente, submeter-se a um processo, assim como assumir e vivenciar regramentos ou violências simbólicas que o legitimam a uma ordem de pobreza, um status de pobreza, no qual os indivíduos vivem em condições precárias e seus modos de vida no estigma da subcidadania (Sousa, 2018).
Ademais, os requerentes com diagnóstico de transtorno mental que buscam o BPC para tornar-se elegíveis ao benefício necessitam realizar movimentos que vão de encontro com a luta cotidiana do movimento antimanicomial[1], uma vez que a avaliação é realizada de modo a legitimar o requerente enquanto pessoa com deficiência, num sentido de falta de autonomia, necessidade de supervisão e incapacidade para realizar atividades cotidianas simples. Legitimando para as instituições e seus profissionais a condição de pobreza e de deficiência incapacitante.
Para Goffman (1988) o estigmacorresponde a um atributo diferenciado, profundamente depreciativo, sobre o status moral de alguém, propiciando vários tipos de discriminação e marcas internas que podem sinalizaruma diferença de identidade social, ou seja, refere-se a uma identidade social deteriorada por uma ação social. O estigma não é característica da atitude da pessoa, mas uma consequência da aplicação das normas sociais.
Os dados e particularidades apresentados acerca dos transtornos mentais demostramuma alta prevalência desse tipo de diagnóstico no Brasil, bem como expressam a magnitude do problema no âmbito social, haja vista que apoiada nos fundamentos de Goffman, as aludidas alterações podem ocasionar um grau de sobrecarga acentuada para as pessoas com transtornos mentais, assim como, discriminação e desigualdade social,capazes de excluí-los do ordenamento da sociedade.
Ademais, Paugam e Schulteis (1998, p. 18) aditam ao debate que “[...] quando a pobreza é combatida e julgada intolerável pela coletividade no seu conjunto, seu estatuto social é desvalorizado e estigmatizante”. Pois, os indivíduos pobres são impelidos a viver seu status de pobreza no isolamento. “A humilhação os impede de desenvolver o sentimento de pertencimento a uma classe social” (Paugam & Schulteis, 1998, p. 18). Nessa perspectiva, a pessoa com transtorno mental que busca o acesso ao BPC, poderá usufruir de um estatutosocial duplamente estigmatizante em razão da sua deficiência e sua situaçãode pobreza.
Na concepção de Pereira (2012),embora o BPC constitua um direito fundamental legítimo e um instrumento capaz de promover a inclusão social e a cidadaniadas pessoas com transtornos mentais, a inconsistente legislaçãoe o excesso de burocracia empregada pelos ÓrgãosPúblicos incumbidos de operá-lo têm atravancado e/ou negado o acesso dos cidadãos ao benefício.
Em razão disso, os requerentes frequentemente precisam recorrer ao Poder Judiciário para que esse direito prenunciado seja efetivado. Corroborando com esse pensamento, Cunha e Barreto(2020, p. 278) declaram que o respectivo benefício “[...]não é garantido a todasas pessoas com deficiência pobrese incapazes para o trabalho, mas, somente, a parte dos casos mais graves daqueles que o requerem”.
Sobre desqualificação social é importante compreender que Paugam utiliza o termo “desqualificação social” para tratar de uma situação conjuntural específica na França, o qual, diante da crise econômica vivida à época, parcela importante da sociedade francesa passou por um processo de desqualificação social devido a uma mudança de status sócio econômico. Aqui neste texto, estamos utilizando o termo desqualificação para tratar da mudança de padrão de cidadania adquirida pelas pessoas com transtornos mentais inseridas em um processo de reforma psiquiátrica, forjado a partir do final da década de 1970 de onde vem-se trabalhando a busca pela autonomia, emancipação e cidadania.
No contraponto, a pessoa acometida pelo transtorno mental que busca acessar o BPC precisa submeter-se há um processo de autodesqualificação social e cidadã, necessitando demonstrar a perda de autônoma e dependência em relação a terceiros, expondo-se à situações onde o tratamento e a busca por alcançar de terminado direito andam na contramão da perspetiva de autonomia e cidadania versada pela reforma psiquiátrica.
Metodologia
Este trabalho é uma síntese teórica produzida por meio de uma revisão narrativa da literatura, a qual buscou a partir da literatura respostas teóricas para as questões pesquisadas. O texto é fruto das leituras iniciais remetidas ao projeto de tese intitulada “Itinerários das pessoas com diagnóstico de transtorno mental que buscam acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoa com deficiência, na cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil”.
Procedeu-se a partir da análise de algumas categorias que surgiram como justificativa para a propositura do projeto, sendo elas: estigma; desqualificação social e pobreza. Buscou-se aporte teórico para a compreensão dessas categorias em Erving Goffman, Michel Foucault e Georg Simmel, na busca de melhor compreender os conceitos de Estigma, Loucura, Controle e Pobreza.
Por fim, a análise é apresentada sinteticamente a partir dos 04 (quatro) importantes eixos: o primeiro onde foi tratada a questão da loucura à saúde mental, onde buscou-se realizar um resgate da construção dos movimentos sanitários e luta antimanicomial, a partir da mudança de perspectiva sobre “louco” e “loucura” na compreensão foucaultiana de controle dos corpos e estigma; num segundo momento o “BPC e sua relação com a pobreza”, sendo tratado de forma conceitual e dando destaque aos mecanismos de acesso e limitações de acesso a partir de critérios de elegibilidade ao benefício, utilizando-se do conceito de pobre, em Simmel e Dagnino, com colaboração de Jessé Sousa, somando-se a Pires e Lotta, acerca do conceito de subcidadania.
Em sequência trouxemos a discussão sobre “pobreza e estigma” a partir da leitura acerca da exclusão social em Sposati e estigma em Goffman, com importante finalização em Parker a partir da compreensão de estigma enquanto construção social, histórica e conceitual promovedora da exclusão social; e por fim o detalhamento da relação da “doença mental com estigma” tendo em vista de um possível duplo processo de estigmatização, partindo de Weber, e buscando enfatizar a dificuldade de inserção no mercado de trabalho devido ao questionamento da capacidade dessa parcela da população.
[1] O Movimento antimanicomial brasileiro teve seu início ao fim da década de 1970, contando com a participação dos pacientes e seus familiares junto aos trabalhadores da saúde mental, culminando no processo da reforma psiquiátrica. O objetivo deste, era dar voz as necessidades de autonomia na escolha de tratamento e condução de vida dos “pacientes”, transpassado pelos conceitos de cidadania, direitos humanos e direitos sociais (Santos & Leão, 2018).
Desarrollo:
Da loucura à saúde mental
A Saúde Mental no Brasil iniciou a sua estruturação em 1970, a partir dos movimentos sanitários e de luta antimanicomial que culminaram na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e no projeto de reforma psiquiátrica. Este último, com êxito no que se refere aos avanços nos mecanismos de autonomia e ao fechamento de instituições psiquiátricas manicomiais, as quais eram utilizadas precipuamente para o exercício e manutençãodo poder sob os corpos, como instrumento de disciplinarização, repressão e exclusão social,empregados no intuito de proteger uma sociedade e seu território do que lhe é considerado anormal (Foucault, 1978).
Nessa acepção, o “louco”era visto como um indivíduo desajustado, perturbado, perigoso e inapto para o sistema de produção, e, por conseguinte, para participar da sociedade, uma vez, que ele apresentaria dificuldades de se agregar aos grupos sociais, haja vista que sua condiçãoperturbava a estruturasocial e a ordem estabelecida. Pois, o “louco” era concebido como “[...] aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros:pode ocorrer que sua palavraseja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdadenem importância [...]” (Foucault, 1999, pp. 10-11).
A respeitoda loucura, Foucault(2007; 2010) aindaressalta que até meados de século XIX, a psiquiatria não se afiguravacomo uma particularidade do saber médico, mas como um dispositivo de higiene pública, cuja finalidade era propiciar a proteção social contra os perigos trazidos pelas pessoas acometidas por doença mental na sociedade. De modo que, a psiquiatria categorizou a loucura em duas configurações: patologizou a loucura, atribuindo o caráter de doença, deixando-a sob a responsabilidade do saber médico e conferiu ao doente mental o atributo de “pessoa perigosa” e “inapta para o convívio” em sociedade, que associado ao direito, o saber médico pôde atuar como higiene pública,qualificando aqueles que deveriam viver em confinamento nas instituições psiquiátricas. Todavia, Foucault (1978) não tratou a loucura como uma doença, mas como uma construção históricae cultural.
Corroborando esse pensamento, Szazz (1978) declarou que o processo de exclusão foi promovido pela hospitalização em asilos; pelo advento da psiquiatria e dos psiquiatras, os quais passaram a ser os tutores dos indivíduos considerados doentes mentais. Sobre essa questão,é importante destacarque esses eventossucederam a partir das imposições de produção do sistema capitalista, que reforçam a rotulação, a estigmatização e a exclusão social daqueles que não atendem as demandas de produtividade.
Para Birman e Serra (1988), o indivíduo ao ser qualificado como doente mental,priva-se do domínioda responsabilidade, do poder de decisão e se tornadependente do especialista e da família,ou seja, perde sua cidadania. É uma submissãoocasionada pela sujeiçãoao saber e ao poder que, acabaintervindo na vida e destinodo indivíduo, bem como influenciando e exercendo controle nas rotinas da família do doente mental.
Nessa perspectiva, “[...] só é cidadão quem é normal; a cidadania só é adquirida a partir da condição de normalidade social, orgânica e mental” (Maciel, 2008, p. 118). Assim, a estigmatização da doença faz com que a pessoa perca a sua cidadania, sofra preconceitos e seja segregado da sociedade.
Apesar dos avanços das reformas com o fechamento das instituições manicomiais, é importante compreender a imposição da manutenção do poder dentro da lógica do capital, como sugeriu Foucault (2005) e que esta lógica não se extingui junto aos manicômios, mas se reconfigura na sociedade a partir de novos dispositivos de controle, agora não mais na perspectiva de território, mas sim, do controle da população, “Fazer viver ou deixar morrer” (Foucault, 2005, p. 1).
Portanto, observa-se que mesmo com os progressos obtidos nas últimasdécadas no campo da saúde mental, na contemporaneidade, sob a ótica social, a doença mental permanece complexae hermética, haja vista que ela ainda se encontra vinculada aprocessos de exclusãoe controle que impelem o isolamento dos agentes, cujos comportamentos são apreendidos como fora dos padrões habituais aceitos, e, são estigmatizados como doentes mentais e incapazes de conviver na sociedade.
OBenefício de Prestação Continuada (BPC) e a pobreza
O BPC foi concebido pela Constituição Federal em 1988, em seu artigo203, inciso V, institui a “[...] garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
No entanto, o referido benefício foi implantado somente em 1996, a partir do Decreto n. 1744/1995, que o regulamenta, tendo como base organizacional a Lei 8.742/1993, denominada de Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a qual normatizou a assistência social e instituiu uma política pública. Apesar de o alusivo benefício ser de caráter assistencial, o mesmo é operacionalizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a partir de leis, decretos e preceitos de execução da atinente autarquia.
Para conferiro benefício às pessoas com deficiências, os requerentes deverão submeter-se a avaliação do grau de incapacidade, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), a qual baseia-se numa abordagem psicossocial que introduz os componentes de saúde nos níveis corporais e sociais (Cunha & Barreto, 2020). A avaliação do grau de incapacidade é empreendida pela perícia médica e pelo serviço social do INSS “[...]que vai definir se a pessoa é elegível ou não para a concessãodo benefício [...] (Cunha & Barreto, 2020, p. 271).
Para aquisição do BPC, é importante que o postulante tenharenda per capta deaté ¼ de salário mínimo e atenda aos condicionantes das políticas da Seguridade Social (Política da Saúde, Políticada Assistência Sociale Política Previdência Social), como: laudo médico e/ou acompanhamento em rede de saúde, Cadastro Único da Assistência (CADUNICO) e requisitos de acesso ao INSS. Para tanto, faz-se necessário conectar-se aos canais remotos (internetou central telefônica 135) e contatara Agência da Previdência Social (APS), a fim de acompanhar o processo, inserir documentações, realizaravaliação social e perícia médica.
Os indivíduos com transtornos mentais requerentes do BPC pertencem a segmentos populacionais vivendo em situação de pobreza. De acordo com Santos (2011), esses são historicamente excluídos do padrão de produção capitalista, o qual divide os seres humanos pela sua capacidade de produção em “produtivos” e “nãoprodutivos”.
Na concepçãode Simmel (1998),a condição sociocultural nominada de "pobre", compreende o ato de ser assistido por políticas sociais ou da caridade, sem haver condições de igualdade e reciprocidade frente aos demais, a qual posiciona o agente em uma camada socialmente desvalorizada, caracterizada pela desigualdade e dependência da assistência.
É importante salientar, que a análise de Simmel (1998) não tratou estritamente da pobreza e dos pobres, mas da relação de assistência existente entre os indivíduos em situação de pobreza e a sociedade em que estão inseridos (Paugam, 2001). Para Dagnino (2004, p. 14), “os alvos dessas políticas não são vistos como cidadãos, com direito a ter direitos, mas como seres humanos“carentes”, a serematendidos pela caridade,pública ou privada”.
Para Sousa (2018), assim como para Pires e Lotta (2019) os alvos dessa política são os subcidadãos, pessoas que vivem um status social estigmatizado e estigmatizante, em decorrência de um processo permeado de condicionalidades que promove a afirmação de sua condição por meio da humilhação, da violência simbólica exercida pelo Estado, diante do processo de implementação das políticas.
Pobreza e estigma
Concebe-se a pobreza a partir da diferenciação entre pobreza e exclusão social, trabalhada por Sposati (1998), onde a primeira refere-se à uma condição humana relativa ou absoluta, a qual está em um processo de autogeração, enquanto a exclusão alcança dimensões, culturais e atitudinais. Desta forma, ser pobre envolve o processo de exclusão, mas também pode ter em si outros processos discriminatório e excludentes relacionados ao abandono, a perda de vínculos, o entre outras situações que não se limitam a retenção de bens.
A pobreza tem, em si, e em seu processo de autogeração e a estruturação das práticas de opressão, que buscam o enfraquecimento, da população, por meio da estigmatização e humilhação. Essas práticas de opressão e podemos aqui dizer de violência simboliza, demonstram que a pobreza tem em si uma base social importante, aprisionando o indivíduo em um ciclo, tratado por Moura Jr e Serrierra (2016), como ciclos de autodepreciação e enfraquecimento.
As práticas de opressão aqui sinalizadas, tem o objetivo de enfraquecer os mais pobres, estigmatizando-os e humilhando-os. Dessa maneira, entende-se que essas práticas sociais opressoras de discriminação da pobreza têm uma base social, mas atuam em camadas simbólicas, subjetivas e objetivas do indivíduo, aprisionando-o em situação de pobreza como uma espiral de autodepreciamento e enfraquecimento.
A dimensão simbólica está baseada na possibilidade de compreensão diferenciada da realidade como sendo constituída de oportunidades que antes não eram encontradas de maneira usual. Assim, a pessoa em situação de pobreza pode ter um novo paradigma de realidade que está fincado em oportunidades possíveis e reais para o enfrentamento de sua situação e para fomento de sua capacidade de agência e de questionamento à realidade de dominação. (Moura Jr & Sarrierra, 2016, p. 17)
É de extrema importância a existência perene e sólida das oportunidades por meio das políticas públicas. As políticas públicas voltadas ao público em situação de pobreza são indispensáveis para viabilização de novas possibilidades de existência, partir de um simbolismo e pragmatismo existente em si, quando funciona a partir de programas de transferência de renda.
Acerca do estigma tem-se em Goffman (1988) a coexistência de três diferentes tipos de estigmas, o primeiro envolve marcas físicas consideradas deformidades ou deficiências, o segundo seriam as questões que envolvem caráter individual, com questões que transitam desde a honestidade a crenças; e o último seriam os estigmas tribais de raça, nação, religião, crenças falsas, entre outras situações.
Goffman (1988) fornece elementos essenciais para se entender a “identidade”, onde se cruzam três elementos: o pessoal, o social e o ego, chamando a atenção para o que ele considera a singularidade de cada um - nossa identidade social é o que os outros acham que somos em virtude das nossas filiações a determinados grupos e nosso ego (autoidentidade) refere-se ao que pensamos sobre nós mesmos. Destaque-se, ainda, que os estigmatizados e os “desviantes normais”[1] não constituem opostos, mas, talvez, formem um continuum e que “a manipulação do estigma é uma característica geral da sociedade, um processo que ocorre sempre que há normas de identidade” (Goffman, 1988, p. 141).
Há uma importante interseção entre preconceitos, discriminação, estigma, e desigualdade social de acordo com Parker (2013), que implicam diretamente no acesso às políticas públicas. A interseção ocorre a partir da perspectiva de que estigma, preconceito e discriminação são construções sociais e culturais imbricadas no funcionamento das desigualdades sociais a partir das violências estruturais, diretamente conectadas as estruturas de poder e dominação, com enfoque na saúde e direitos humanos; e enfoque na saúde e justiça social.
O estigma tem papel fundamental nas relações de poder e controle, com desdobramentos que reverberam na construção de grupos desvalorizados e valorizados no que se refere às práticas discriminatórias, estando íntimos ao desenvolvimento das desigualdades sociais. A relação que Parker (2013) faz em seu texto remete a saúde, colocando como exemplo as práticas de discriminação ligadas ao HIV e a Aids ou qualquer outro aspecto da saúde, aqui trazemos a análise para outros aspectos políticos e sociais, a partir da reflexão ampliada acerca do processo de exclusão de alguns indivíduos e grupos, e as forças que operam sobre esse processo nos mais diversos contextos, uma vez que se tratam de processos imbricados na história em suas significações culturais, bem como sistemas de poder e dominação.
Trata-se de conceitos e práticas constituídos historicamente para desenvolver as desigualdades sociais, que geram rotulagens, estereotipias, rejeição social. Tais características são colaborativas a processos estruturais importantes, como a escravidão, além de indicadores sociais que demonstram o aumento da morbidade e mortalidade em determinadas camadas da população, justamente devido à desigualdade social construída a partir da estigmatização, preconceito e discriminação, que impedem ou limitam os acesso da população a determinados segmentos da sociedade, diante da desvantagem sistemática dentro das relações de produção existentes que corroboram para a construção estrutural da pobreza e exclusão econômica.
A construção da imagem histórica sobre a pobreza, por muito tempo, desconsiderou o contexto social e as relações de poder que estão imbricadas no fenômeno e responsabilizando a pessoa que vive em situação de pobreza pela sua construção. Compreende-se que há a visão de uma identidade social estigmatizada de pobre, como vagabundo, sujo, criminoso, conformado, religioso e causador de mazelas sociais (Moura Jr, 2012).
O preconceito vivido por essas formas de reconhecimento estigmatizadas das pessoas em situação de pobreza tem em sua vivência a violência, desigualdade de poderes e discriminação (Paluck & Green, 2009). Discriminação que se relaciona com a posição de poder exercida entre a pessoa em situação de pobreza e alguém que a humilha por considerar que está em local social privilegiado em relação ao outro.
Estigma e doença mental
Agrega-se a discussão sobre o estigma e pobreza, nesse artigo, a dimensão do estigma relacionado a doença mental, foco deste trabalho, uma vez que a pessoa com diagnóstico de transtorno mental, carrega o estigma em seu cotidiano, uma barreira importante de vida, sofrendo processos de afastamento familiar e comunitário, em especial nas situações consideradas mais graves para a sociedade, situação que reverbera nos demais âmbitos da sociedade, como escola e trabalho.
À pessoa com diagnóstico de transtorno mental comumente nega-se a inserção no mercado de trabalho, ou a continuação do espaço de trabalho quando o acometimento da situação de saúde ocorre durante ou em decorrência da vivência laboral.
O Relatório Mundial de Saúde Mental da OMS, publicado em junho de 2022, mostra o aumento de 25% no número de pessoas que viviam com transtorno mental em 2019, o número que era até aquele momento de 1 bilhão tem seu dado acrescido de um quantitativo vertigino, que teve como impulsionador colaborativo o cenário pandêmico do COVID-19, significa que atualmente, conforme o documento, uma em cada oito pessoas no mundo está vivendo com transtorno mental. O relatório destaca ainda que os transtornos mentais são as maiores causas de anos vividos com incapacidade, sendo um em casa seis pessoas convivendo com situações incapacitantes, uma encontra-se na vivência por transtorno mental.
O estigma cria um processo cíclico que envolve a exclusão social e a discriminação, tendo como consequências o desemprego, autoestima diminuída, perda de laços familiares, a perda do sentimento de cidadania, falta de moradia própria e o pouco o inexistente suporte social, tem sido importantes entraves a recuperação das pessoas acometidas por transtorno mental.
Nas últimas décadas emergiu um importante debate, em trânsito, que circundam as pessoas com diagnóstico em transtorno mental, acerca dos paradigmas de atenção a saúde, ou seja, entre o paradigma biomédico e o paradigma psicossocial (Weber, 2012). Dicotomia que versa sobre conflitos marcadamente ideológicos e que estão evidentes no acesso a BPC, com a mudança de mecanismos de avaliação que a partir de 2009 passou a considerar parte da avaliação como de competência do Serviço Social Previdenciário, utilizando-se de instrumento de avaliação social que busca um olhar para barreiras de acesso, que estão dispostos da estrutura social em que a pessoa está inserida e não apenas a doença de forma isolada.
Apesar dos avanços relacionados a assistência e a compreensão da vivência da pessoa com transtorno mental, a imagem construída permanece ligada às pessoas violentas, incapazes, pessoas que tem dificuldades com regras, funcionamentos sociais, valores morais, situação que reverbera nas relações de aceso ao requerimento do BPC.
O atrelamento de conceitos como inclusão social, cidadania, estigma, relacionados a pessoa com diagnóstico de transtorno mental e ao acesso às políticas públicas destinadas à sua assistência, é um dos fatores que contribuem para o desenvolvimento de perspectivas melhores de atenção as necessidades dessa parcela da população.
As pessoas com transtornos mentais apresentam perspectivas diferente de incapacidade para atividades de vida diária e social. Quando consideradas pessoas com algum grau de incapacidade, são classificadas como pessoas com deficiência, classificação utilizada a fim de construção e execução de políticas públicas afirmativas (Weber, 2012).
No entanto, como já sinalizado, comportamentos desviantes (patológicos) podem ser reconhecidos ou não como negativos em uma dada sociedade, levando à reflexão sobre o estigma sobre a doença mental. Ser diagnosticado com transtorno psicótico grave, em um dado momento, num certo contexto sociocultural, na busca de um determinado benefício oriundo de uma política pública, pode significar estigmatização e consequentemente exclusão social (Martin, 2012).
[1] Goffman considera que o desviante e o normal tem comportamentos semelhantes diante de seus estigmas, por essa ser uma característica geral da sociedade, desta forma os mecanismos de tratar com a situação, diante da sociedade, são semelhantes.
Conclusiones:
Assim, apreende-se que o programa do BPC, enquanto política pública, afiliada à assistência social, atua como um instrumento habilitado para promover a inclusão social de uma população pauperizada, estigmatizada, fragilizada, considerada incapaz para o trabalho e para uma vida autônoma, mas pode estar funcionando como potencializador mecanismo de desigualdades sociais em virtude de suas condicionantes de acesso, diante do duplo processo de estigmatização aqui também pensado enquanto duplo processo de desqualificação social, de forma a parafrasear o conceito tratado por Paugam.
Destaca-se, aqui, a estreita relação entre os mecanismos de estigma, preconceito, discriminação, e desigualdade social intimamente relacionado à condição das pessoas com diagnóstico em transtorno mental que buscam acessar ao BPC junto ao INSS, a partir das relações tratadas por Parket (2013), enquanto sistemas colaboradores da exclusão social e mesmo da possibilidade de inserção social inicial pelo sistema de produção, diante das relações de poder existentes.
Portanto, as análises aqui tratadas são fruto das primeiras impressões das leituras do projeto de tese, conjugadas as experiências vividas no Instituto Nacional do Seguro Social, locus da efetivação do BPC, onde se tornou possível observar a aplicabilidade dos conceitos e sínteses aqui analisados.
Bibliografía:
Birman, J.; Serra, A. (1988). Os descaminhos da subjetividade: um estudo da instituição psiquiátrica no Brasil. Niterói: EDUFF.
Brasil. Decreto n. 1.744, de 5 de dezembro de 1995, que regulamenta o benefício de prestação continuada devido à pessoa portadora de deficiência e ao idoso, de que trata a Lei n° 8. 742, de 7 de dezembro de 1993, e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d1744.htm.
Brasil. Lei n. 8.742, de 07 de dezembro de 1993, dispõe sobre a organização da assistência social e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm.
Brasil. Portal da Transparência. http://www.portaltransparencia.gov.br/beneficios.
Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf.
Cunha, I. S. P.; Barreto, K. R. M. (2020). Os desafios do Benefício de Prestação Continuada para pessoas com deficiência. Mundo Livre: Revista Multidisciplinar, v. 6, n. 2, pp. 266-280. https://periodicos.uff.br/mundolivre/article/download/45746/27440.
Dagnino, E. (2004). ¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?
Políticas de ciudadania y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas:
FACES, Universidad Central de Venezuela, pp. 95-110. https://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/dadosabertos/bibliografia/Sociedade%20Civil%20Participa%C3%A7%C3%A3o%20e%20Cidadania%20-%20Evelina%20Dagnino.pdf.
Foucault, M. (1978). História da Loucura na Idade Clássica. Trad.: José Neto. São Paulo: Perspectiva,1978.
Foucault, M. (1999). A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1999.
Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975- 1976), (trad. de Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes.
Foucault, M. (2007). Doença Mental e Psicologia. Lisboa: Texto & Grafia.
Foucault, M. (2010). Os anormais: Curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: WMF Martins Fontes.
França, J. de O. N.; Ferreira, A. A.; Lopez, T. A. (2021). Prevalência de comorbidades clínicas em portadores de transtornos mentais acompanhados no Centro de Atenção Psicossocial. Brazilian Journal of Health Review, v. 4, n. 1, 2021, pp. 1325-1342. https://www.brazilianjournals.com/index.php/BJHR/article/download/23221/18661.
Goffman, E. ([1988] 2004). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro:LTC.
Maciel, S. C.; Maciel, C. M. C.; Barros, D. R. (2008). Exclusão social do doente mental: discursos e representações no contexto da reforma psiquiátrica. Psico-USF, v. 13, pp. 115-124. https://www.scielo.br/j/pusf/a/hxvDcDvp4wt5p8qT8pfkpfN/?lang=pt&format=pdf.
Martin, D. (2012). Abordagem Antropológica em Saúde Mental: Deslocamentos Conceituais para Ampliar o Debate. In: Weber, C. A. T. Residenciais Terapêuticos, o dilema da inclusão social de doentes mentais. Porto Alegre: EdiPUCRS, pp.18-36.
Moura Jr., J.F. (2012). Reflexões sobre a pobreza a partir da identidade de pessoas em situação de rua de Fortaleza. Dissertação [Mestrado em Psicologia]. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.
Moura Jr.; Sarriera, J. C. (2016). Práticas de resistência à estigmatização da pobreza: Caminhos possíveis. In: Ximenes, V. M.; Nepomuceno, B. B.; Cidade, E. C.; Moura Jr., J. F. (Org.). Implicações Psicossociais da Pobreza: Diversidades e Resistências. 1ª ed. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editoria, v. 1, pp. 263-288.
Paluck, E. L.; Green, D. P. (2009). Prejudice Reduction: What Works? A Review and Assessment of Research and Practice. Annual Review of Psychology, 60, pp. 339-367.
Parker, R. (2013). Interseções entre Estigma, Preconceito e Discriminação na Saúde Pública Mundial. In: Monteiro, S., and Villela, W. comps. Estigma e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2013, pp. 25-46. https://doi.org/10.7476/9788575415344.0003.
Paugam, S. (2001). O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais: Uma dimensão essencial do processo de desqualificação social. In: As artimanhas da exclusão análise psicossocial e ética da desigualdade social. 2 ed. Bader Sawaia (Org.). Petrópolis: Editora vozes.
Paugam, S.; Shulteis, F. (1998). “Naissance d’une sociologie de la pauvreté”, In: Simmel, G. Les pauvres, Paris: Presses Universitaire de France, 1998.
Pereira, L. M. (2012).Análise crítica do Benefício de PrestaçãoContinuada e a sua efetivação pelo Judiciário. Revista CEJ, v. 16, n. 56, 2012, p. 15-27. https://www.academia.edu/download/44517400/CEJ-2012.pdf.
Pires, R. R. C.; Lotta, G. (2019). Burocracia de nível de rua e (re) produção de desigualdades sociais: comparando perspectivas de análise. In: Pires, R. R. C. (org). Implementando Desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação das políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea, 2019. http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9323.
Santos, J. C. dos.; Leão, A. (2018). Autonomia, Spinoza e o Movimento da Luta Antimanicomial: a criação de alianças antimanicomiais. Mnemosine, v.14, nº1, pp. 167-179. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41701.
Santos, W. R. dos. (2011). Deficiência e BPC: o que muda na vida das pessoas atendidas?. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, pp. 787-796. https://www.scielo.br/j/csc/a/RKCBPXp8cxRsVqGvBCy89KF/?lang=pt.
Simmel, G. (1998). Les Pauvres. Paris: Presses Universitaires de France.
Souza, J. (2018). Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. – Rio de Janeiro: LeYa.
Sposati. (1998). Exposição foi originalmente apresentada no Seminário Exclusão Social, realizado na PUC/SP, em 23/04/98, com os professores Sergé Paugam, do Institut National de la Statistique et des Études Économiques – França e Lúcio Kowarick, da USP. http://www.seuvizinhoestrangeiro.ufba.br/twiki/pub/GEC/RefID/exclusao.pdf.
Szazz, T. (1978). A fabricação da loucura: um estudo comparativo entre a inquisição do movimento da saúde mental.Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
Weber, C. A. T. (2012). Residenciais Terapêuticos, o dilema da inclusão social de doentes mentais. Porto Alegre: EdiPUCRS.
World mental health report: transforming mental health for all. Geneva: World Health Organization; 2022. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. https://www.sbponline.org.br/arquivos/9789240049338-eng.pdf.
Palabras clave:
Saúde Mental; Pobreza; Estigma; BPC.