Resumen de la Ponencia:
Propomos neste trabalho analisar as precárias condições de trabalho de jovens ribeirinhos na cadeia produtiva do açaí, como fenômeno estrutural e complexo com origem em fatores multidimensionais, como por exemplo: a pobreza rural, a má qualidade da educação, a falta de oportunidade de trabalho decente, entre outros fatores relacionados a diversas situações, especialmente históricas, sociais e econômicas, a saber, a demanda por mão de obra não qualificada aliada à falta de estruturas de diálogo social, o baixo custo do trabalho e a prevalência de trabalho sazonal e informal e cuja simbiose afeta o exercício de sua cidadania plena. A problemática foi a de compreender os problemas/privações e suas consequências sofridas pelos jovens ribeirinhos em decorrência do seu trabalho na cadeia produtiva do açaí, especialmente de sua etapa inicial, a extração; os agentes envolvidos e os riscos suportados por eles. Assim o fenômeno foi analisado em um contexto socioespacial específico, a comunidade do Rio Quianduba, situada na região das Ilhas do município de Abaetetuba no Estado do Pará, Norte do Brasil. Concluímos que, na atividade de extração do açaí, há uma série de riscos e privações relacionadas ao espectro dos direitos básicos da população juvenil, que demandam atenção estatal e não são considerados pelos demais componentes da cadeia produtiva do açaí, nem pelo consumidor final e que, por sua vez, resulta de um discurso e de uma prática hegemônicos sobre a região amazônica e suas inferências na formulação de uma identidade juvenil amazônica, com vista a construção de projetos de vida que expressem as subjetividades juvenis do tempo presente.
Introducción:
O Brasil, em especial a região Norte, se caracteriza pela heterogeneidade das condições de vida e trabalho dos jovens que vivem no meio rural. Quando cruzado esse olhar com a Amazônia ribeirinha, o resultado são diferentes inserções produtivas, com destaque para o cultivo do açaí, fruto muito apreciado e que tem uma indiscutível importância para a vida social e econômica da Amazônia.
O cultivo desse fruto se expandiu na região a partir dos anos 2000 quando ganhou um marketing científico poderoso com a descoberta de suas propriedades energizantes e antioxidantes, que despertou o interesse das indústrias pela sua exportação que se tornou um negócio lucrativo (OLIVEIRA, 2016).
A expansão do açaí na Amazônia paraense é evidenciada pelos dados da Federação das Indústrias do Estado do Pará (FIEPA), que apresentam o Pará como o principal produtor do fruto, com 95,31% da produção nacional, e também como maior exportador (na forma de polpa congelada). Segundo a FIEPA, nos últimos dez anos houve um aumento de quase 15 mil por cento nas exportações de açaí (14.380%) em número exato. Em 2020 o número de toneladas vendidas para o exterior, em comparação com 2019 deu um salto de 51%. E para atender esta demanda interna e externa gigantesca, a área plantada, tanto em terra firme quanto em terra de várzea, passou de 77,6 mil para 188 mil hectares em dez anos. Em termos de produção, destacam-se os municípios de Igarapé-Miri, Cametá e Abaetetuba, respectivamente, como principais produtores.
Considerando que analisar o problema em um contexto socioespacial específico permite compreendê-lo com mais exatidão, delimitamos a comunidade Rio Quianduba, no município de Abaetetuba-PA como local de estudo. Essa comunidade foi escolhida pelo fato de ser uma das maiores produtoras de açaí desse município.
O Rio Quianduba é um espaço territorial de várzea, onde as terras são inundadas pelas marés periodicamente e em diferentes graus de intensidade, de acordo com a influência lunar. São as marés que garantem a fertilidade do solo e a recomposição da vegetação nas margens dos cursos d’água, componente indispensável para a produção de açaí.
O texto está dividido em três partes. Na primeira, descrevemos o surgimento histórico e social da juventude como categoria detentora de direitos; na segunda, analisamos a repercussão que as precárias condições de trabalho na agricultura do açaí impõem no modo de vida dos jovens ribeirinhos; e na terceira, discutimos o discurso hegemônico sobre desenvolvimento na região Amazônica e suas inferências na formulação de uma identidade juvenil marcada pelo colonialismo. Com as considerações finais encerramos o texto.
Desarrollo:
A JUVENTUDE COMO UMA CATEGORIA SOCIAL
Segundo Ferreira (2017, p. 17) o fenômeno juvenil, “é como um barómetro para a captação de tendências socias emergentes”, verdadeiros “laboratórios que desafiam constantemente as ciências socias”, exige cada vez mais dos pesquisadores que se debrucem epistemologicamente sobre o mesmo – seja como campo de uma Sociologia da Juventude ou de uma Antropologia da Juventude –, cada vez mais, uma postura metodológica que seja neutra de tendências e ideologias, ao mesmo tempo que sirva de referencial teórico para as diversas abordagens científicas que ajude a construir novas perspectivas para a “compreensão e explicação de novas realidades”.
Dayrell (2003, p. 40) diz que a juventude é, ao mesmo tempo, uma condição social e um tipo de representação. Se há um caráter universal dado pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto em que vivem os jovens, no qual se desenvolvem e pela qualidade das trocas que este meio os proporciona. Assim, os jovens constroem determinados modos de ser jovem que apresentam especificidades, o que justifica que mesmo em uma mesma localidade, classe social, por exemplo, haja diferentes modos de ser jovem, na forma de subculturas juvenis – as juventudes. Seguindo na mesma linha de Dayrell, a caracterização da juventude como uma categoria com atributos pretensamente naturais e universais não é sustentável do ponto de vista sociológico. Pois segundo nos esclarece Groppo:
[...] a juventude é uma concepção representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de comportamentos e atitudes a ela atribuídos. Ao mesmo tempo, é uma situação vivida em comum por certos indivíduos (GROPPO, 2000, p.7-8).
Dentro do que se convencionou chamar de modernidade, os jovens passaram a ser retratados aqui como uma categoria social, “sendo ao mesmo tempo uma representação social e uma situação social” (GROPPO, 2000, p.8) a qual prossegue em sua defesa que a noção de juventude moderna é parte de um critério de idade, a qual não se pode relativizar e de um critério sociocultural, relativista.
O TRABALHO JUVENIL NA AGRICULTURA DO AÇAÍ no Rio Quianduba, Abaetetuba-Pa
O coletor do fruto (o peconheiro) e etapas do processo produtivo e da coleta do açaí
Na pesquisa de campo, identificamos que o cultivo e a coleta do açaí são atividades que envolvem jovens de ambos os sexos. Contudo, observamos que as mulheres se dedicam mais a coleta, no processo de debulha – retirada do fruto dos cachos - enquanto que os homens trabalham tanto no cultivo quanto na coleta.
O processo de aprendizagem relativo ao trabalho na extração do açaí inicia ainda na infância, por volta dos 7 a 8 anos. Como atividade tradicional, os conhecimentos básicos sobre como cultivar e coletar o açaí são repassados de geração para geração. São conhecimentos que os ribeirinhos têm guardados em sua memória individual e com os quais estabelecem conexões com a memória coletiva.
Sobre a memória, Halbwachs (2004, p. 55) afirma que existe uma relação intrínseca entre a memória individual e coletiva, haja vista que o indivíduo encerra em si mesmo as memórias da coletividade da qual faz parte e com ela negocia constantemente. Segundo o autor:
A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se, portanto, a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Olhar este que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios.
Assim, podemos dizer que as relações socioculturais dos ribeirinhos na atividade de extração do açaí formam um corpo memorativo construído na sua trajetória de vida, e este não está dissociado de sua cultura, pois os saberes que emergem dessa atividade ancoram-se na memória individual e coletiva desses sujeitos por meio de processos culturais subjacentes a essas relações.
Identificamos também, que o trabalho desses jovens, tanto no cultivo quanto na coleta, exige grande esforço físico e é de alto risco. A quantidade elevada de subida nas palmeiras para abastecer 10 rasas – cerca de 50 a 60 palmeiras – utilizando peconha[1] e terçado preso na cintura sem nenhuma proteção, revela o esforço físico que fazem durante um dia de trabalho. Segundo os jovens entrevistados, quando o açaizal é “baixo” – açaizeiros de médio porte com cerca de 15 metros de altura – e os cachos são grandes, é necessário subir em 50 a 60 árvores para abastecer 10 rasas, quantidade considerada por eles como normal para um dia de trabalho; porém, quando o açaizal é “alto” – açaizeiros de grande porte com cerca de 20 a 25 metros de altura – é necessário subir em 60 a 70 árvores. Para a quantia de 20 rasas, o número de subidas dobra. Tal quadro denota que a vida desses jovens, está sendo diretamente afetada pelo trabalho na extração do açaí.
No processo do cultivo, além do esforço físico, sobressaem os riscos, pois os jovens utilizam terçado, roçadeira e motosserra, ficando sujeitos a insolação, picadas de animais peçonhentos e acidentes que provocam lesões musculares, deslocamento de ombros, fraturas ósseas, cortes, perfurações, entre outros. A despeito da situação descrita acima e da importância da cadeia do açaí para o desenvolvimento econômico e social da região, inexiste preocupação estatal e regulamentos que garantam a segurança e a proteção desses jovens. A preocupação atual limita-se ao momento que o produto já foi retirado da árvore e está pronto para o consumo, com clara invisibilidade do elo primeiro da cadeia produtiva.
O Instituto Peabiru (2016), em diagnóstico realizado em comunidades ribeirinhas da Amazônia, identificou que a atividade de extração do açaí é uma das mais perigosas do Brasil, fato que vem alterando profundamente o tecido social das comunidades envolvidas, pois o que era antes um modelo de reprodução extrativista, assumiu contornos que geram graves preocupações quanto à segurança e à saúde dos trabalhadores.
O Instituto pontua, a total invisibilidade das condições de trabalho perante o consumidor final, o que contribui para que os elos fortes da cadeia de valor – indústrias, atacadistas, varejistas e batedores[2] – não se responsabilizem pela segurança do trabalhador.
Além disso, inexiste regulamentação específica de proteção ao trabalhador. A única normativa existente no Estado do Pará, o Decreto nº 326, de 20 de janeiro de 2012 (PARÁ, 2012), trata, exclusivamente, da qualidade do produto para consumo. Não há preocupação com questões de segurança dos trabalhadores responsáveis pelo cultivo e coleta, o que revela a falta de proteção a que estão sujeitos os trabalhadores.
O Instituto também ressalta que não existe política pública voltada especificamente para a garantia de segurança na atividade de extrativismo de açaí em várzea, tanto a nível federal, quanto estadual e municipal, de modo que essa problemática merece estudo aprofundado e reflexão, tanto pela academia quanto pela sociedade.
Esse fato também prejudica os jovens na questão dos estudos com a baixa frequência escolar, o que estimula a desistência em muitos casos, haja vista que ocupam a maior parte do tempo no trabalho, seja no lote da família ou de terceiros. Dos 10 jovens entrevistados, 06 responderam que estudaram até o sexto ano do ensino fundamental. “Não tive como continuar estudando porque quando chegava do mato já era tarde pra ir à escola”; parei de estudar porque quando chegava do mato o rabeteiro já tinha passado”; “parei de estudar porque chegava muito cansado na escola, não tinha vontade de estudar”.
A respeito da frequência escolar, Koury (2017), em pesquisa realizada na Ilha do Marajó sobre o trabalho infantil na extração do açaí, identificou que o trabalho na extração do fruto reflete diretamente no comparecimento às aulas e no desempenho escolar das crianças, adolescentes e jovens, especialmente no período da safra, quando as famílias mobilizam os filhos para apanhar o fruto, devido a habilidade que possuem para subir em árvores mais finas, as quais não suportam o peso de um adulto.
No mesmo sentido, Dayrell (1996), ao tratar do trabalho juvenil no Brasil, informa que ele obriga o abandono precoce da escola, sem falar nos casos em que sequer foi possível frequentá-la. Enfatiza que a escola tem a função de receber e abrigar os diferentes sujeitos socioculturais que são seus estudantes, assumindo uma postura polivalente, articulando seu Projeto Político Pedagógico com o projeto de vida dos alunos.
Isso implica em pensar a escola numa perspectiva pós-colonial, onde os processos de ensino e aprendizagem, as formas de produzir conhecimento, levem em consideração as diferenças, valorizem as particularidades culturais e socioeconômicas dos estudantes. Autores como Walter Mignolo e Edna Castro, tem contribuído com seus escritos, para o questionamento das formas de produção de conhecimento que têm como base o pensamento eurocêntrico de matriz colonizadora.
Walter Mignolo (2005, p. 13), seguindo a lógica de que o poder se relaciona com o conhecimento, enfatiza que a nossa forma de produzir conhecimento foi herdada da cultura europeia, e isso implica em práticas culturais de matriz colonial, que geram processos discriminatórios e de subjugação. Para o autor, tal estrutura tem servido apenas para:
Envelopar a humanidade e a condição humana em ideias lineares de civilização e progresso, bem como enlaçar a modernidade na sua base: a colonialidade, isto é, uma fonte global de poder que classificou hierarquicamente populações, seu conhecimento e seus sistemas de vida cosmológica, de acordo com o padrão europeu.
Na concepção de Castro (2019), pensar as relações sociais pelo viés eurocêntrico de matriz colonizadora, é caminhar no sentido da invisibilização de todas as demais culturas que dela diferem. Tal postura corrobora com a disseminação de representações hegemônicas que fortalecem pensamentos discriminatórios, e espelham uma relação de poder que hierarquiza e exclui seguindo a lógica do poder dominante.
Estudos pós-coloniais que tratam da manutenção da colonialidade na contemporaneidade, revelam que o pensamento colonial é introduzido sutilmente nas escolas, por meio da organização do conhecimento no currículo escolar, em que determinados saberes são selecionados como dignos de serem ensinados, ao mesmo tempo em que outros são silenciados. Gomes (2012) afirma, que essa seleção não é um processo epistemológico inocente, pelo contrário, é usada como uma forma de legitimar e controlar propósitos de dominação dirigidos por fatores ligados às classes dominantes.
Dessa forma, não há interação entre saberes formais e não formais, o que reafirma as diferenças sociais, especialmente no que concerne à preparação para o mundo do trabalho, pois ao negar os saberes informais, a escola nega também as atividades econômicas tradicionais, o que desmotiva a permanência dos jovens do campo na escola, de modo que acabam abandonando os estudos e se dedicando apenas ao trabalho.
Para isso é preciso partir do pressuposto básico que o homem é um ser histórico, e ao interagir com o mundo social, produz valores, crenças, ideias, concepções, saberes, acerca do seu contexto, que servem de base para o exercício da cidadania. Isso implica em reconhecer as pessoas comuns como produtoras de conhecimento, a existência de outras vozes, bem como, problematizar o cotidiano dessas pessoas e abandonar o etnocentrismo em favor de uma concepção mais pluralista de educação, a partir de novas e enriquecedoras visões de mundo.
Nessa perspectiva, vários domínios e instâncias que antes eram sedimentados e hierarquizados no processo de produção do conhecimento ao longo do tempo, serão respeitados e valorizados, como por exemplo: as religiões, o cotidiano, as relações de poder, modos de vida, entre outros, o que contribuirá na compreensão da não linearidade, da descontinuidade e da diferença como dimensões operativas na construção do conhecimento. Esse novo entendimento demanda uma ação epistemológica de interdisciplinaridade, por exigir uma atitude de diálogo com o já existente, e de articulação com aqueles que se dispõem a desvelar a realidade e nela se posicionar (CASTRO, 2019).
Por intermédio dessa nova abordagem, a escola poderá romper com essa cultura de exclusão, que tem na concepção colonialista a força do poder opressor, por meio de ideologias importadas que tornam a educação inadequada à realidade dos educandos e, dessa forma, inoperante, incapaz de propiciar as transformações sociais de que tanto necessitamos. Portanto, somente rompendo com essa cultura de exclusão é que a escola, como salvaguarda da estruturação do conhecimento, poderá cumprir com seu importante papel de ser um ambiente de exercício da vida social, por meio da tomada de consciência do que foi o projeto civilizatório e desse modo, construir uma nova sociedade.
O diálogo intercultural como caminho para reflexão das condições de vida e trabalho dos jovens na extração do açaí
Nas conversas realizadas com os pais dos jovens entrevistados, não identificamos nenhuma preocupação relativa às implicações que o trabalho dos filhos no cultivo e coleta do açaí pode acarretar. Pelo contrário, tal prática é vista como motivo de orgulho, pois afirmam que seus filhos são trabalhadores, conseguem coletar 10, 20 rasas de açaí por dia, ajudando assim no sustento da família.
Mediante o exposto, podemos dizer que o trabalho na extração do açaí é prática cultural da população ribeirinha, passada de geração para geração, com o reconhecimento daquele que realiza como motivo de orgulho para os seus familiares. Dessa forma, tendo como expressão imaterial de sua cultura, os pais não demonstram nenhum tipo de preocupação com os riscos a que os filhos estão sujeitos.
Bhabha (1998), contribui no entendimento dessa questão quando afirma que a cultura é essencial para a vida das pessoas, pois é por meio dela que se reconhecem como parte de um grupo e afirmam sua identidade enquanto pessoas. Afinal, o indivíduo necessita, para a sua formação, do reconhecimento pelo outro, de modo que a formação cultural do indivíduo está intrinsecamente relacionada à sua participação no grupo. Daí porque o grau de justiça e injustiça varia de acordo com aquilo que o grupo entende como justo ou não.
A problemática identificada na pesquisa nos coloca diante de um embate entre a situação de perigo a que os jovens que trabalham na extração do açaí estão submetidos e a necessidade de protegê-los desses perigos, e a manifestação cultural de uma comunidade tradicional no tocante ao desenvolvimento de sua principal atividade econômica.
Quando se levanta um questionamento como esse, surgem dificuldades teóricas difíceis de serem contornadas, pois de um lado, está a visão universalista de direitos humanos, que nega qualquer adaptação no tocante à realidade cultural de cada povo, e do outro lado a visão contextualista, que defende uma avaliação de acordo com as peculiaridades de cada cultura. O embate entre as duas visões citadas, atrai a possibilidade de utilização do diálogo intercultural, que segundo Sarmento (2016, p. 291), segue a corrente teórica progressista como estratégia para a defesa da dignidade dos sujeitos sociais.
O diálogo intercultural parte da premissa de que existem nas culturas diferentes correntes interpretativas, algumas mais favoráveis à emancipação do que outras. Explorar as vertentes culturais progressistas é uma estratégia mais produtiva para a defesa da dignidade da pessoa humana em contextos não ocidentais por conferir maior legitimidade social aos direitos, ampliando as chances de que conquistem a adesão genuína das pessoas.
É importante enfatizar que o diálogo intercultural procura encontrar um caminho, por meio do qual se possa analisar o fenômeno, tornando-o universal o tanto quanto possível, sem violentar, por outro lado, a cultura de cada povo. Dessa forma, a abertura ao diálogo intercultural, permite a ampliação dos horizontes e do próprio repertório de condutas da comunidade pesquisada, que passa a se conhecer melhor, por meio da provocação de reflexos sobre seus próprios problemas e a geração de soluções pautadas em novos conhecimentos e novos olhares.
Para Santos (1997), as culturas se influenciam e os valores podem se globalizar, mas não podem ser impostos com arrogância, como se fossem melhores do que os aceitos por outros povos. A substituição valorativa com base no diálogo e na construção do consenso é a única forma de estruturação de um sistema de direitos humanos com pretensão legitimamente universal.
De todo esse arcabouço, é possível compreender que a realização de diálogo intercultural permite que a comunidade analise criticamente a postura de utilização de mão de obra juvenil no processo de extração do açaí e consiga, a partir daí, identificar as consequências decorrentes de tal atividade.
Acreditamos que uma interpretação intermediária, através do diálogo, que concilie a reprodução da cultura, pelo ensinamento aos jovens do modo de produção familiar, assegurando ao mesmo tempo a observância dos direitos que lhes são garantidos, poderá contribuir para o entendimento de que os jovens precisam estudar para adquirir uma boa formação e, consequentemente, melhores condições de vida.
A AMAZÕNIA DO TEMPO PRESENTE E SUA JUVENTUDE
Desenvolvimento e Colonialismo na Cadeia Produtiva do Açaí
A crescente procura pelo açaí nos mercados nacional e internacional, denota a existência de uma atividade produtiva com potencial significativo para o desenvolvimento local e regional. Neste cenário paradoxal que envolve crescimento econômico e alterações no modo de vida, é imperioso colocar em questão as políticas de desenvolvimento para a região amazônica. Dentre as diversas abordagens de desenvolvimento, interessa-nos, neste trabalho, a análise de uma, que possa pensar o desenvolvimento como um processo que altere não somente as estruturas econômicas e produtivas, mas também as sociais, as institucionais e as políticas, isto é, que o aumento da produção venha acompanhado do incremento da renda e da capacidade econômica da população.
Perroux (1964), com fundamento na interdisciplinaridade e em sua concepção de desenvolvimento como mudança de estrutura, afirma que o verdadeiro desenvolvimento é aquele que provoca uma melhoria qualitativa e quantitativa na vida da população envolvida. Ou seja, é aquele que designa a combinação de mudanças mentais e sociais de uma população que a tornam apta a fazer crescer, de maneira cumulativa e permanente, o seu produto real bruto. O autor entende que o aumento de renda, decorrente de uma atividade produtiva, sem a correspondente reforma das estruturas de pobreza, marginalização e miséria, ou seja, sem a alteração qualitativa do bem-estar das pessoas envolvidas, não pode ser considerado desenvolvimento, mas mero crescimento econômico.
A contribuição de Perroux (1964) e Sachs (2008), está relacionada à análise das economias subdesenvolvidas, com a finalidade de propor estratégias de desenvolvimento adaptadas às suas especificidades, rompendo com os ideais de desenvolvimento como parâmetro universal de Norte a Sul. Nesse contexto, a população diretamente afetada deve ser protagonista no processo de estudo e de implementação de políticas públicas voltadas à melhoria de sua condição de vida.
No que tange a Amazônia, a falta de envolvimento da população na resolução dos problemas por ela enfrentados pode ser explicada pelo fato de o desenvolvimento ser pensado de “fora para dentro”, ou seja, de modo exógeno, ignorando-se a participação da população local. Sobre essa questão, Loureiro (2009) destaca que uma das características do processo de formação social da Amazônia brasileira é a implementação de políticas governamentais que espelham um modelo de desenvolvimento que não cuida ou se preocupa com a vida e o futuro das populações locais, pelo fato de ser pensado de fora para dentro, ou seja, por grupos ou elites que só se preocupam com o crescimento econômico de suas empresas, utilizam os recursos naturais que poderiam convergir para a melhoria das condições de vida dessas populações para favorecer o grande capital.
Castro (2019) complementa a autora acima, quando diz que a relação subalterna entre quem pensa e quem executa sempre esteve presente na Região Amazônica, pois esta ainda não se libertou do processo colonizador que continua vivo, porém, com novas roupagens. Para autora, o fim do Período Colonial no Brasil não significou necessariamente o fim de uma mente colonizada, ao contrário, apenas substituiu as formas de colonização. A mentalidade colonial subjuga e não reconhece a diversidade local.
Castro (2015) destaca que o papel global que a Região Amazônica vem desempenhando ao longo dos séculos tem impacto nos mais diversos campos, como a abertura de novas fronteiras – as commodities destinadas ao mercado global -, e o legado de concentração de renda, exclusão social e degradação ambiental da “modernização” da região. Para a autora o desenvolvimento regional foi pautado a partir do seguinte perfil da região: intervenção direta ou indireta do Estado para a ocupação da região; adoção de uma função econômica; os programas oficiais de desenvolvimento privilegiaram o grande capital; a região sempre vista como produtora de matéria-prima e geradora de divisas, reforçando seu papel periférico em relação ao mercado internacional, visto que a autora tem a visão do desenvolvimento como um processo que ignora a participação da população local, à qual não é concedida voz ativa na apresentação de formulações necessárias para a melhoria de sua qualidade de vida. Na perspectiva da autora, o verdadeiro desenvolvimento é aquele que se diferencia do pensamento meramente econômico, que privilegia o tratamento adequado àqueles que estão em piores condições, na tentativa de reduzir a pobreza, a miséria e a marginalização, em detrimento do aumento do Produto Interno Bruto e do acúmulo de riqueza de uma parcela minoritária, pois o que se conclui frente à comunidade aqui investigada é que apesar da crescente valoração do açaí, seu retorno nessa cadeia como produto agricultor e extrativista, não aprimora a qualidade de vida da mesma e de seus jovens.
O jovem coletor de açaí como expressão de uma subjetividade juvenil?
É preciso entender que jovens são pessoas, sujeitos concretos e o fato de viverem numa comunidade ribeirinha na Amazônia e serem jovens extrativistas em torno do açaí diz alguma coisa nesse sentido? E mais precisamente, como é possível articular um projeto de vida a partir de experiencias tão dispares de vulnerabilidade, trabalho de risco, conflito geracional, a deficiência ou mesmo ausência de políticas públicas?
Castilho (2019, p. 28-29) advoga que o efeito da abordagem crítica sobre a sociologia da juventude, os movimentos sociais demandaram a amplitude da categoria juventude, distinguindo-a em diferentes segmentos com vista a possibilidade de intervenção na temática das políticas públicas. Assim, a categoria juventude passa a exprimir-se como juventudes, uma forma de visibilizar suas demandas relativo “as profundas dificuldades enfrentadas pelos jovens para estruturar seus projetos de vida...mantem-se, ainda hoje, nas pautas de discussão de pesquisadores de distintos campos do conhecimento” (CASTILHO, 2019, p. 61).
Portanto, a juventude não deve ser compreendida como uma massa homogênea, isenta das desigualdades e conflitos sociais e muito menos apática diante do mundo que se descortina. Deste modo, compreender como as Ciências Humanas e a Educação a categorizam em suas manifestações socioculturais, históricas, políticas e antropológicas ajuda na compreensão como fenômeno social, e no caso amazônico segundo Fraxe, Witkosky e Miguez (2009), as “juventudes amazônicas revelam no seu cotidiano e em seus projetos de vida traços identitários que os singularizam na cartografia sociocultural juvenil” e não podem ser desconsideradas sua inserção no circuito das ditas culturas hegemônicas.
Perscrutar se, como e por que se reconhecem como amazônidas e a possibilidades de construção autônoma de projetos de vida a partir da Amazônia? [...] “os jovens querem, sobretudo, viver a cidadania. Do que vale falar da cidadania quando o acesso à autonomia lhes é vedado?” Questiona José Machado Pais frente a um conceito abstrato ou estático de cidadania, ao defender a concepção de uma cidadania fluida e empática e que expresse as subjetividades juvenis do tempo presente (PAIS apud CASTILHO, 2019, p. 61).
Mas antes de cair no artificio de “dá-lhes voz”, de querer enquadrar suas subjetividades juvenis, ou seja, a forma como culturalmente elas constroem suas experiências como jovens, há de se que reconhecer que não cabe ao pesquisador de juventude fazer isso, pois estaria descumprindo um princípio de autonomia, não sua como pesquisador e nem da academia a qual serve, mas do necessário protagonismos disposto por esses próprios jovens, interlocutores desta breve sondagem. A despeito de como metodologicamente é feito – visto que o trabalho de campo impõe seus regras e limites. Há o cuidado metodológico e ético de não se deixar cair na tentação de subalternizar a voz dos seus interlocutores conforme nos alerta Grada Kilomba (2020).
[1] Instrumento em formato circular, confeccionado com folhas de açaizeiro ou com fios plásticos ou sintéticos para subida no açaizeiro.
[2] Batedores de açaí: trabalhadores responsáveis pela transformação do fruto açaí do estado natural (caroço encapado por uma massa de cor vinho escuro) em estado líquido para consumo, por meio da utilização de uma máquina conhecida como batedeira.
Conclusiones:
Com o objetivo de compreender a repercussão que as precárias condições de trabalho na agricultura do açaí impõem no modo de vida dos jovens ribeirinhos na comunidade do Rio Quianduba, procuramos descrever e analisar as precárias condições de trabalho desses jovens, no elo primeiro da cadeia produtiva, onde se dá o cultivo e a coleta do fruto, tomando como base para isso, a teoria pós-colonial, que propõe descolonizar o pensamento a partir da crítica ao modelo imperialista euro centrado numa nova concepção de produção epistemológica do Sul para o Sul, que questiona a lógica hegemônica de uma cultura comum e impõe a necessidade de questionamento das práticas pedagógicas e curriculares que silenciam saberes, a exemplo da comunidade ribeirinha investigada.
No caso da problemática em questão, é difícil, por exemplo, convencer a comunidade ribeirinha do Rio Quianduba que utiliza a mão de obra juvenil na extração do açaí, que os jovens não podem realizar esse trabalho por se mostrar violador dos direitos humanos, quando o conjunto de valores que lastreia esses supostos direitos é estranho para a comunidade. Criar um ambiente de diálogo, demonstrando que existem outros tipos de trabalho no contexto rural que poderiam ser pensados como mais adequados é um caminho de maior respeito, que poderá, de fato, ensejar uma mudança de valores, a partir do diálogo intercultural.
Em resumo, justificamos que não é possível pensar uma política pública e estatal sem considerar os jovens, em especial suas identidades e culturas, sem lhes perguntar e ouvi como desejam articular seus projetos de vida com um projeto mínimo para a região, sem considerar as violências diárias a que são submetidos, em especial as ditas minorias e que não são em nada minorias, segundo as estatísticas. Sim, são muitos jovens por revelar, alar em emergência e percepção de valores na juventude, em especial das juventudes que vivem as diversas amazônias, é falar de um terremoto em que ela está mergulhada como um grito silenciado, mas por vezes, evidente.
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Palabras clave:
Açaí; Amazônia Ribeirinha; Juventudes; Projeto de Vida; Trabalho.