Resumen de la Ponencia:
O texto é um recorte de pesquisa etnográfica realizada na Favela do Oitão Preto em Fortaleza – CE e subsidia a construção da tese de doutoramento em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Trata-se de problematizar a inserção de mulheres pobres, pretas e velhas no circuito precário da venda de crack como forma de acesso a renda em uma atividade que se realiza no espaço doméstico. Foram acompanhadas quatro mulheres que tem em comun o não acesso à direitos de cidadania e marginalidade nas esferas de produção e de consumo, lançando-se na economia ilegal da venda de drogas, geralmente, de forma subalternizada, ocupando baixos postos, raramente tendo o comando do negócio. Estando mais expostas na cadeia de produção e consumo de drogas, são mais suscetíveis a sofrer abordagens e o encarceramento, entendendo que a marginalidade social, a criminalização e as práticas punitivas são parte de um processo de subordinação racial das mulheres, notadamente as negras. A presença das mulheres no comércio varejista de crack se dá nos patamares mais baixos, precários e arriscados do mercado varejista de drogas onde prevalece uma hegemonia masculina que impermeabiliza as organizações do tráfico a quaisquer pretensões “emancipatórias”. A estrutura do mercado de crack apresenta forte estratificação por género, bem como por “raça”/etnicidade, se estabelecendo principalmente a partir de redes parentais masculinas que acabam por envolver suas esposas, namoradas, irmãs, amigas que se tornam pequenas distribuidoras. As comerciantes pesquisadas mantêm relações subordinadas aos fornecedores que realiza com elas um contrato verbal, informal, sigiloso e fundado na lealdade. Em suas casas, o improviso dos tabuleiros com as pequenas “pedras” se agrega a rotina doméstica em uma atividade pouco lucrativa e com muitos concorrentes. Nesses termos as mulheres pesquisadas não se percebem enquanto traficantes estabelecendo a diferença entre a venda de crack em casa, sem o uso de armas ou violência, sua condição de vulnerabilidade social e econômica, como marcadores da diferença entre o trabalho “para viver” e aquele realizado por traficantes. Para um determinado grupo de mulheres, o trabalho será sempre aquele lugar desprivilegiado, marcador da dominação rotineira a que elas são alvo. Muitas mulheres, notadamente as não brancas, são sobrecarregadas pela pobreza, responsabilidades de assistência a familiares e a falta de habilidades de trabalho. Esse acúmulo de desigualdades sociais e econômicas, às dificuldades de absorção de setores da população pelo mercado de trabalho e a marginalização lançam uma parcela da população ao crivo das ilegalidades sendo o comércio de crack mais acessível e com clientela certa.
Introducción:
A pesquisa foi realizada na Favela Oitão Preto, localizada na periferia oeste da cidade de Fortaleza, Ceará - Brasil entre os anos de 2018 e 2019. Quatro mulheres residentes em Oitão Preto foram acompanhadas nesse período e estiveram envolvidas na microeconomia de crack, realizando ou microcomércio doméstico do produto. Percebeu-se a banalidade com que estas atividades compõem o contexto de vida dos outros dois residentes/frequentadores do local. Tal análise é certamente apenas uma das muitas possibilidades de compreensão desse fenômeno que surge a partir da presença nas periferias e favelas de grupos e facções criminosas que estabelecem um circuito de distribuição e venda de substâncias que conta com a participação de "novos vendedores" e novos pontos de venda, dias diferentes têm sido conhecidos como “bocas de fumaça”.
O comércio de crack, além do seu caráter ilícito, está comumente relacionado ao aumento da violência e dos índices de crimes violentos observados em todas as grandes cidades brasileiras, o que ratificaria o caráter perigoso da substância e justificaria a necessidade de seu extermínio, bem como a intervenção policial, médica, social aos envolvidos com a droga. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), em 2021 o Estado do Ceará contabilizou 2970 Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLI). Esse número é menor que o quantitativo de 2021 quando foram contabilizados 3299 CVLIs, no entanto, persiste o expressivo número de mortes violentas no Estado.
No Brasil o tráfico de crack tem suas origens na cidade de São Paulo tendo o primeiro relato de apreensão policial da substância ocorrido em em 1991, de acordo com Oliveira e Nappo (2008). A partir dessa primeira apreensão, houve um aumento progressivo de apreensões progredindo de 204 registros em 1993 para 1.906 casos em 1995, demonstrando a rápida popularização do crack em território brasileiro. Os traficantes e suas habilidosas estratégias de mercado contribuíram a esse processo. Os autores informam que a princípio, como ainda era desconhecido, para facilitar a apresentação do crack e a adesão por parte do usuário, os traficantes esgotaram as reservas de outras drogas nos pontos de distribuição, disponibilizando apenas crack. Logo, diante da falta de alternativas, os usuários viram-se obrigados a optar e aderir ao seu uso.
Assim, o comércio e uso de crack se tornaram visíveis, até pela presença maciça de usuários que consomem a substância em espaços públicos principalmente com a disseminação de lugares popularmente conhecidos como “cracolândias”. Tal situação passou a receber a atenção de diferentes setores que passaram a “dar voz” ao problema, tais como Igrejas, profissionais de saúde, a mídia, atores indiretamente afetados que cobram e empreendem esforços para a resolução do problema que consideram prejudicial. Dentre as ações cobradas e ofertadas pelo poder público, estão as repressivas, de controle e de policiamento.
Para tanto delineou-se uma etnografia tendo em perspectiva a compreensão de Clifford (2002) para quem a etnografia deve ser pensada como uma negociação construída entre o pesquisador e seus interlocutores, entendidos como sujeitos conscientes e politicamente significativos. Dessa forma a etnografia se realizou em interlocução à quatro mulheres negras, pobres, todas na faixa etária maior de 60 anos e moradoras da Favela do Oitão Preto. As temáticas que subsidiam a pesquisa surgiram a partir de diálogos com essas mulheres a quem visitei e de situações presenciadas a partir dos itinerários transcorridos. Assim, os diálogos foram sistematizados e organizados em pequenas narrativas, entendendo a etnografia como uma interpretação possível e sempre parcial de dados.
Na perspectiva deste artigo, cabe, no entanto, “olhar” para as narrativas que estão presentes nos contextos de venda de drogas e constituem o que podemos chamar de “ciclo do microcomércio doméstico de drogas” e que envolve atores sociais que estão em o espaço de vendas, dá economia de crack e atendimento a esses indivíduos. Assim, privilegia -se uma discussão teórica com base no que se obtém como produto da pesquisa, tendo em vista a necessidade de delimitar as discussões às normas operativas deste documento.
Desarrollo:
O microcomércio doméstico de crack na Favela do Oitã oPreto
Na Favela do Oitão Preto, a adesão às atividades de venda de drogas é algo bem heterogêneo se levado em consideração o sexo, idade e estilo de vida. Neste local está construída uma estrutura de ilegalismos que se desenvolvem em uma tênue fronteira entre as escassas oportunidades de trabalho formal e legal e as múltiplas formas de inserção em atividades ilegais sendo a venda de drogas “em casa” uma atividade pouco complexa e capaz de abranger um grupo heterogêneo de participantes inclusive mulheres e velhos.
Vera Telles e Daniel Hirata (2010) construíram uma discussão interessante quanto a questão dos ilegalismos nas sociedades urbanas traçando um paralelo até o aparecimento das atividades envolvendo o tráfico de drogas.
O cenário urbano é atravessado pelos circuitos superpostos de ilegalismos novos, velhos ou redefinidos, entre expedientes de sobrevivência, o trabalho irregular, pequenos empreendimentos locais e os negócios do crime que gravitam em torno dos pontos de venda de drogas ilícitas. É nesse plano que o varejo da droga se enreda nas tramas urbanas em que os fluxos de dinheiro, de mercadorias, de bens, de produtos ilegais e ilícitos se superpõem e se entrelaçam nas práticas sociais e nos circuitos da sociabilidade popular (TELLES e HIRATA, 2010, p. 45).
Os mercados de drogas, como já dito, apresentam especificidades diversas e agregam diferentes atores que atuam em diversos níveis de sua organização e estabelecem por exemplo, os fluxos de hierarquia e dominação dos territórios e as práticas de uso ou não de violência no cotidiano das transações comerciais sendo possível, segundo Daudelin e Ratton (2017), a distinção entre mercados de drogas considerados de natureza pacífica e aqueles que apresentam alto teor de violência. O que os autores deixam claro em sua pesquisa é que a ilegalidade, em si, não pode ser apontada como fator quase exclusivo da violência prevalente na maioria dos mercados de drogas. Nesse sentido, apontam outros determinantes que poderiam estar presentes nesses circuitos, influenciando um maior ou menor grau de uso da violência.
Nesses termos os autores identificam mercados abertos e fechados, cobertos e descobertos. Essa classificação é importante para o estudo em tela quando por exemplo os autores estabelecem que “estranhos podem interagir em mercados abertos, enquanto apenas pessoas que se conhecem e confiam umas nas outras podem fazê-lo em mercados fechados [...] Em tais mercados, a violência física, ou a ameaça do seu uso, é efetivamente substituída pela sanção social” (p.118-119) o que implicaria em quebra da confiança, ostracismo daquele que não cumpriu com o acordo e perda de credibilidade dentro da comunidade.
No cenário da Favela do Oitão Preto em relação às práticas de venda de crack foi possível observar as regularidades nas transações de venda tendo as vendedoras que acompanhei desenvolvido uma “clientela” de certo modo fixa e, nesse sentido, estava presente as relações de confiança necessárias ao fluxo de venda de crack. Os autores demarcam que a venda de crack no varejo se configura em um mercado completamente descoberto em locais amplamente conhecidos pelos usuários, por vizinhos e pela polícia. Ali o consumo é realizado no próprio local ou pelas redondezas e, nesse sentido, os autores sustentam, a partir de seus informantes, que tais locais são propícios a práticas violentas como furtos, roubos, assassinatos e confrontos entre facções, além de intervenções da polícia.
A etnografia realizada no Oitão Preto demonstra, ao contrário a existência de um comercio de crack fechado e coberto que se desenvolve sem que sejam acionadas práticas violentas e que atraem um certo perfil de clientes justamente por possibilitar tais garantias. Nas casas das mulheres que visitamos não estão expressos os códigos de intimidação, desconfiança e medo que nos parece estar presentes nos mercados analisados pelos autores. Ao contrário, a venda do crack se desenrola em meio a rotina dos afazeres diários e se coloca como mais uma atividade da qual elas são responsáveis. A venda de drogas da forma como estamos situando está centrada muito mais no âmbito doméstico sendo possível sua realização sem que sejam deixadas a segundo plano as tarefas do cuidado da casa e de outros familiares dependentes.
A família, no contexto da adesão a prática da venda de drogas tem papel primordial tendo em vista que das quatro mulheres pesquisadas, três apontam sua entrada nessa atividade sendo agenciada por outros familiares, marido, filhos. A partir da adesão de outros familiares ao tráfico de drogas, estava aberto o canal de interlocução entre elas e os “comerciantes do topo” a partir de relações que estão amplamente fundamentadas na perspectiva da confiança tendo em vista que os pagamentos pelas mercadorias comercializadas são feitos apenas após o “comerciante doméstico” realizar suas vendas.
Chaves (2013) diferencia dois tipos de traficantes: os “traficantes do topo” que estão em maior escala, gerenciando transações com grupos importadores de drogas, e os “traficantes intermediários” que vendem drogas diretamente ao consumidor final. Aqui alargo essas categorias a mais de um tipo de microcomerciantes domésticos que, na experiência de Oitão Preto, estão em grau inferior a dois “comerciantes intermediários”, estando a eles subordinados. As mulheres que me acompanham recebem crack de dois “comerciantes intermediários” têm pouco ou nenhum contato direto como “mercadores-toupeira”. Com base em relações amplamente pautadas na perspectiva de confiança, considerando que os pagamentos das mercadorias comercializadas só são efetuados após o "comerciante nacional" efetuar suas vendas.
O intermédio de alguém que estabeleça a ligação entre o “comerciante do topo” e os “comerciantes intermediários” é importante tendo em vista que a venda de drogas, por ser uma atividade em cadeia, passa por diferentes etapas até que de fato se concretize. Cada uma das etapas mobiliza uma rede de confiança, proteção e sigilo que estabelece entre os envolvidos um esquema não contratual, mas fortemente internalizado podendo a quebra desse contrato verbal ser punido inclusive com a morte. A droga chega até essas microcomerciantes domésticas através de distribuidores que trazem o crack já cortado, pesado e embalado em pequenas pedras cujo preço varia entre 1 e 2 reais, a depender do tamanho. Em casa, as pedras são dispostas em pequenos tabuleiros, à vista e alcance dos consumidores que podem escolher tamanho e quantidade. Junto ao tabuleiro um recipiente contendo moedas e cédulas de dois reais para facilitar o troco.
Ao final da semana, os mesmos distribuidores que vieram deixar o produto retornam para recolher “o apurado”. Nessas transações pouco se fala. Não temos registro por exemplo de ouvirmos das interlocutoras uma única menção a venda de crack. Quando se falava da substância era sempre em relação aos usuários de crack e o quanto a droga era prejudicial a eles.
Por ser uma atividade ilegal, apesar de todas as especificidades da venda em casa, o comercio doméstico de drogas também agrega um certo risco, por isso a importância de que as vendedoras conheçam os consumidores que normalmente são moradores do bairro ou pessoas que vem de fora, mas que são apresentadas por outros já conhecidos das vendedoras. Forma-se assim uma rede de contatos que busca, em última instância, garantir a proteção e o sigilo quanto as atividades das vendedoras e o consumo dos clientes. Ao mesmo tempo que as mulheres não desejam a identificação enquanto “traficantes”, os usuários que as procuram se interessam pelo anonimato e tendem a evitar que seu uso seja exposto no bairro ou em outros locais. Todas as vezes em que chegamos em alguma casa em que se fazia a venda e o uso do crack, a ação imediata das mulheres era retirar o tabuleiro da sala e, no caso de existirem clientes no local, estes sempre pareciam constrangidos, envergonhados ou mesmo assustados com nossa presença.
Observou-se assim um perfil diferenciado entre a clientela que essas mulheres agregam. Seus clientes querem evitar a compra das drogas nas bocas ou na rua onde a exposição e os riscos podem ser maiores e desejam o sigilo de suas condutas. Esse público de certa forma diferenciado, também faz com que as mulheres não precisem acionar mecanismos ostensivos de violência, não fazem uso de armas ou qualquer outro artefato que sugestione as práticas violentas amplamente relacionadas ao tráfico de drogas. Conhecer os clientes pessoalmente se torna uma ferramenta importante para garantia da proteção das vendedoras. A forma de venda como a que está sendo aqui demarcada só é possível a partir dessa vertente que também se fortalece pelo sigilo e proteção garantidos pela vizinhança. As mulheres interlocutoras da pesquisa detinham uma posição de certa forma privilegiada entre os vizinhos que garantiam certa proteção a realização das atividades.
Uma das questões apontadas por elas para se distinguirem dos traficantes era o baixo lucro que obtinham na realização das atividades. Ao tentar saber das mulheres em relação ao rendimento médio de suas atividades, elas sempre referiram que o lucro “não dava para quase nada”, apenas garantia o sustento básico. Talvez a questão da pouca lucratividade esteja relacionada ao baixo valor da mercadoria, uma pedra de crack era vendida a 1 real. Além disso, por muitas vezes encontrava as casas fechadas o que demonstrava que elas não trabalhavam no negócio todos os dias. A pouca lucratividade também foi apontada, mais de uma vez para diferenciar a venda realizada por elas e aquela relacionada aos traficantes.
A estrutura da microeconomia do crack se organiza a partir do somatório de uma rede de conhecimentos e organização que tem como base a confiança estabelecida entre os “comerciantes do topo”, os “comerciantes intermediários” e as micorcomerciantes domésticas, os contratos de sigilo e proteção que se estabelecem na vizinhança e a presença de consumidores também interessados no sigilo e proteção do seu consumo. Nesse sentido, a geopolítica das drogas se embaralha a microeconomia da venda de crack estabelecendo novas sociabilidades e fortalecendo as bases de enriquecimento dos grandes traficantes enquanto os pequenos estão muito mais sujeitos ao encarceramento e a punição resultante de seus ilegalismos. Labrousse (2010) chama a atenção para o fato de que o tráfico de drogas mobiliza uma rede internacional que estimula o interesse da indústria bélica e dos bancos que financiam a “guerra às drogas” ao mesmo tempo que alcançam grandes lucros a partir do narcotráfico. Zaluar (2004, p.35) lembra que “o tráfico de drogas, organizado internacionalmente, mas localizado em suas pontas nos bairros pobres e nos centros de boemia das cidades, além de criar centros de conflitos sangrentos nessas vizinhanças, além de corromper as instituições encarregadas de reprimi-los, também criou na população da cidade um medo indeterminado, aumentou o preconceito sobre os pobres em geral, tomados como os agentes da violência, e auxiliou a tendência a demonizar os usuários de drogas, a considerá-los a fonte do mal, de toda a violência”.
Vendedoras e compradores: retratos de algumas interações
O caráter ilegal da atividade de venda de crack foi, por um certo tempo um ponto dificultador na realização da pesquisa pois as mulheres aparentavam certo receio em falar sobre a prática. Tal atitude é compreensível tendo em vista o caráter ilegal da atividade e a necessidade de transparecer aos compradores a segurança do anonimato e a proteção contra possíveis abordagens policiais. Assim a venda do crack ocorria de forma discreta, não se pronunciava o nome da droga e a aproximação dos compradores sempre era feita como se a intenção de estar ali fosse outra que não a compra de drogas. É claro que talvez, sem a nossa presença no local, a aproximação e o comportamento tanto de vendedoras como de compradores fosse outro e isto é bastante compreensível.
Muitos meses se passaram até que presenciassemos, pela primeira vez, a venda da substância nas casas dessas mulheres. Elas, de início, mandavam seus clientes retornarem depois e, em muitas ocasiões, encerravam o assunto conosco dando a entender que estávamos atrapalhando. As abordagens dos clientes eram sempre muito rápidas, os códigos não verbais frequentemente utilizados para evitar ao máximo a pronúncia de palavras. Os compradores se aproximavam já com o dinheiro na mão e rapidamente eram repassadas as pedras. Praticamente nenhum diálogo entre eles. Nós, nesses momentos procuravamos olhar em outra direção, evitando despertar nos clientes a desconfiança.
Essas cenas de venda de crack, de alguma forma protegidas, garantem muitas vezes o sigilo e a segurança de usuários que não querem e não podem estar na rua. Em várias casas, além da compra da substância, é também possível realizar o uso, na sala ou em um cômodo ao lado. A maioria das pessoas que utilizam as casas das mulheres para o uso querem preservar sua “imagem” em um uso reservado e diferente de clientes que utilizam o espaço das ruas e que compram a substância para usar na praça ou em calçadas próximas. É um grupo diferente que deseja proteção, a menor exposição possível e a maior discrição. Da mesma forma, são usuários mais “controlados”, colocam limites ao uso e dificilmente causam problemas.
Alguns clientes utilizam-se do horário de almoço quando podem sair do trabalho e vão até o Oitão Preto, que fica bem próximo da área comercial da cidade, e fazem ali o uso da substância para logo após retornarem ao trabalho. Tem-se ai um perfil de usuários de crack, aqueles que fazem um uso “controlado” mantendo suas atividades como trabalho, por exemplo. Para Rui (2012) a perspectiva dos usuários e os cenários de uso possibilitam a existência de níveis distintos de envolvimento com o crack. Cada um deles é produto e produtor de diferentes atributos físicos e morais, que, por sua vez, demarcam pequenas fronteiras. A partir disso, a diferenciação entre usuários levando-se em conta o grau de dependência, além da situação social e de vida década um. As próprias vendedoras diferenciam esse público entre aqueles que usam crack, mas trabalham, e os “drogueiros” que usam sem limites e que “se acabam na pedra”. Espinheira (2004) chama a atenção para as formas de usos de drogas e a heterogeneidade de seus usuários.
A cena da droga nunca é a mesma, assim como não o são os seus agentes e isto não apenas no tempo, mas também nos diferentes espaços da cidade. Em outras palavras, as formas de consumo nunca são iguais, assim como os produtos não são os mesmos, nesses espaços diferenciados. E podemos afirmar, ainda, nos casos de as substâncias pertencerem à mesma espécie ou identidade, que estas não se igualam em termos de qualidade química nos espaços diferenciados. As drogas não têm o mesmo efeito para pessoas socialmente diferentes. E elas não são as mesmas para clientes diferenciados por renda e classe social. Se a questão é posta nesses termos, não são as drogas, mas as razões de consumo e a natureza do que se consome que caracterizariam a ação social de uso das drogas e, mesmo, a toxicomania (ESPINHEIRA, 2004, p. 12-13).
Ainda segundo o autor, não se pode atribuir à droga uma autonomia em relação ao indivíduo ou mesmo ao contexto social, mas, ao contrário, perceber o indivíduo e o seu contexto para compreender o tempo e os espaços das drogas em suas vidas, questões culturais, sociais, econômicas podem interferir nos significados que as drogas têm para uns e para outros, apesar de seus efeitos serem quimicamente parecidos.
Interessante observar que nesse tipo de venda de crack, não está implícito o uso da violência e o uso de armas e ameaças, senão verbais. Zaluar (2004, p. 62) aponta que um dos elementos que produzem uma cultura na qual é generalizado o recurso à violência para a resolução de conflitos é “uma concepção extremamente autoritária de poder e o ethos da virilidade masculina que impõe ao homem que não deixe nenhuma provocação sem resposta”. No caso estudado, a venda é feita por mulheres e, nesse contexto a diferença em relação à forma de apropriação e manifestação do poder. O comércio aqui realizado está mais próximo daquele descrito por Grillo (2008) quando estudou as redes de tráfico “da pista” onde o emprego da força é condenado e evitado, mesmo nas situações de não pagamento de débitos. Com as mulheres vendedoras de crack do Oitão Preto também pudemos relacionar tal característica. As formas de cobrança dos mau pagadores passavam da cobrança ostensiva a ameaças verbais, no entanto, quando não atendidas, ainda havia a possibilidade de “repassar o caso” para o traficante da área, este sim nomeado por elas como os donos das mercadorias.
Para Misse (2003, p.6) a estrutura dos grupos locais do varejo de drogas foi sempre baseada no sistema de consignação de vendas, a partir do “dono” ou “gerente geral”. Em uma verticalização decrescente, a mercadoria é repassada aos subgerentes e o processo continua até os vendedores diretos. De acordo com o autor, o retorno do pagamento é baseado na noção de “dívida” e deve ser feito, impreterivelmente, dentro de um prazo mínimo. As mulheres vendedoras do Oitão Preto gozam de certa credibilidade e confiança por parte dos “vendedores intermediários” e desta forma, acabam também por receber deles o apoio na cobrança de dívidas, quando elas não conseguem resolver o caso de forma “amigável”. No entanto, a pesquisa de Misse (2003) dá conta de um sistema de consignação que articula-se a uma hierarquia mortal de “credor/devedor” em que na primeira reincidência, o devedor é morto num ritual público de crueldade. Acreditamos que a confiança e a credibilidade alcançadas pelas mulheres interlocutoras tenha a ver primeiro com sua condição de mulher, a idade e o tempo em que vivem no local. Assim, são conhecidas por todos e inclusive tem relações de afeto e proximidade com os “vendedores intermediários” e até com aqueles do “topo”, sendo eles a maioria muito mais jovens. Ainda que não haja nenhuma garantia que regulamente a atividade da venda ilegal de drogas, não sendo também possível garantir que os acordos de compra e venda serão cumpridos, existe nas situações descritas, um componente implícito que se vincula a confiança dentro da comunidade e os custos sociais que essa quebra de confiança possa gerar, abalando a sua reputação dentro do território.
Assim, fica claro que quem toma parte nessas atividades precisa entender seus valores, incorporar suas regras e ser leal aos laços sociais que organizam a vida nessa comunidade política e moral. Nos termos de Paiva (2022), a lealdade é um elemento central no julgamento dos integrantes do grupo e é preciso ser demonstrada constantemente. Nesse sentido, respeitar as posições de poder é fundamental para sobreviver e conquistar o reconhecimento dentro deste comércio.
Conclusiones:
O artigo em tela buscou demonstrar que a partir de uma estrutura piramidal, observamos a existência de diferentes categorias de vendedores de drogas atuando no Oitão Preto. A partir dessa observação preliminar, tomamos emprestado de Chaves (2013) a terminologia utilizada para diferenciar os “vendedores do topo” e os “vendedores intermediários” e a partir daí, identificamos uma outra categoria nomeada por nós de “microcomerciantes domésticas”. Ao traçarmos a venda doméstica de crack por mulheres na Favela do Oitão Preto em Fortaleza, Ceará - Brasil, estabelecemos um eixo de análise que buscou compreender a microeconomia do crack dentro deste território e como tal atividade, aliada a marcadores de gênero, classe, raça e geração, toma centralidade e cria novas modalidades de “vendedoras” de drogas que por amplos aspectos buscam se diferenciar da ideia do traficante seja pela inexistência de padrões violentos de sociabilidade em torno da comercialização dessas mercadorias ilícitas que ocorrem em casa, seja pela baixa lucratividade que a realização das atividades ofertam a esse público em específico.
A diferenciação entre as categorias de vendedores de drogas e a observação de uma microeconomia cada vez mais doméstica e interligada a vida cotidiana de famílias nos parece uma situação relativamente nova no contexto de Fortaleza. O caráter novidadeiro a que nos referimos não está tanto relacionado ao tempo em que ocorrem e se desenvolvem tais atividades no território, mas a amplitude e centralidade que alcança essa microeconomia do crack a partir de um perfil cada vez mais heterogêneo de integrantes. Embora a investigação seja especializada em Oitão Preto, a capilaridade dos anos e a forma como a venda do crack é estruturada leva à integração de uma população de vendedores em diferentes faixas etárias. Em um caso específico, as mulheres da família têm mais de 60 anos e veem a venda de crack em casa, com poucas possibilidades de obtenção de renda, dadas suas fragilidades corporais e responsabilidades familiares, não cuidando e sustentando a casa, dois filhos e dois filhos líquidos. A estrutura dos ilegalismos desenvolve-se numa tênue fronteira entre as poucas oportunidades de trabalho formal e legal e as múltiplas possibilidades de inserção em atividades ilegais, sendo o comércio de drogas "em casa" uma atividade pouco complexa e capaz de abarcar um universo heterogêneo grupo de participantes incluindo mulheres com mais de 60 anos de idade.
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Palabras clave:
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