Resumen de la Ponencia:
Este texto tece uma reflexão, de natureza qualitativa, acerca do aumento de episódios de violência doméstica de gênero - sobretudo nas relações conjugais - em tempos de pandemia da COVID-19, no Brasil, hipótese confirmada por meio do levantamento de dados obtidos em relatórios oficiais, informações veiculadas pela mídia - jornais impressos, digitais, e telejornais - bem como do mapeamento de artigos sobre a temática coletados no Google Acadêmico. O necessário isolamento domiciliar, visando à contenção da pandemia, agravou situações preexistentes das assimétricas relações de gênero, em um momento em que o agressor e a agredida estavam confinados no mesmo espaço, e restavam poucas possibilidades de escape, o que faz pensar que o lugar mais perigoso é dentro de casa. E pari passu caiu o total de medidas protetivas face à diminuição de registros de boletins de ocorrência formalizados presencialmente; muitas mulheres não conseguiam sair de casa para registrar a denúncia ou temiam represálias caso denunciassem as violências sofridas, que acabavam sendo subnotificadas. Restava às mulheres agredidas o recurso às redes sociais e de vizinhança, os telefonemas direcionados aos números 180 - Central Nacional de Atendimento à Mulher em Situação de Violência - e 190 - Polícia Militar - ou ainda, pelo whatsapp ou outros aplicativos (isso, quando o companheiro não danificava ou escondia o aparelho celular), e por criativos mecanismos de pedidos de socorro através de senhas secretas, tal como uma cruz assinalada em batom vermelho na face interna da mão, que era discretamente mostrada a atendentes de estabelecimentos comerciais, principalmente farmácias. Os Relatórios do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de abril e de maio de 2020 traziam alarmantes registros dessa violência doméstica de gênero, que já havia se elevado e seguiria num crescendo no decorrer da pandemia. Existem, no Brasil, dispositivos legais para coibir tais atos, haja vista a Lei Maria da Penha, de 2006, considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Mas é necessária a sua aplicação efetiva, e acima de tudo, há que erradicar a estrutura sexista androcêntrica, a sistêmica opressão de gênero que a pandemia revelou e continua revelando. A Covid-19, ao produzir uma compulsória proximidade e excessivo convívio entre as quatro paredes do lar, exacerbou os conflitos de gênero e escancarou o sexismo vigente. O presente trabalho, estruturado sob a perspectiva sociológica de gênero, e ancorado nas elaborações teóricas de Joan Scott, Pierre Bourdieu, além de outras estudiosas brasileiras da temática de gênero e violência, como Heleieth Saffioti, Miriam Grossi, Lourdes Bandeira, pretende contribuir para o imprescindível debate acerca da violência doméstica de gênero no Brasil, acirrada em tempos de Covid-19.
Introducción:
No momento em que o resumo deste artigo foi submetido ao XXXIII Congresso ALAS acreditávamos, erroneamente, que a pandemia já fosse, no momento do evento, um triste passado. Desta forma o título do artigo, assim como o título deste congresso, traz o termo “pós-pandemia”. A Covid-19 ainda não acabou, a despeito de encontrar-se em nova fase, na qual há decréscimo de casos de contaminação e mortes graças, sobretudo, à vacinação (no Brasil, negligenciada pelo governo negacionista de Bolsonaro, cujo mandato estende-se de 2018 a 2022, o que por certo ocasionou mais mortes do que haveria caso houvesse uma responsável e eficiente política sanitária).
Pensamos que a verdadeira pandemia é o sistema capitalista - hoje hegemonicamente neoliberal – gerador de crises, dentre elas, as crises sanitárias. Referimo-nos sempre à expectativa de retorno à normalidade. Mas, voltar à qual normal? Não foi este mesmo normal o ventre da crise sanitária da Covid-19? E não se descarta a possibilidade do “novo normal” gerar outras crises, quiçá, ainda mais graves, posto que elas encontram-se no D.N.A. do sistema; para Boaventura de Sousa Santos a pandemia vem desnudar a incapacidade deste para responder às crises, às tragédias ambientais, às pandemias.
As pandemias mostram de maneira cruel como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências. As respostas que os Estados estão a dar à crise variam de Estado para Estado, mas nenhum pode disfarçar a sua incapacidade, a sua falta de previsibilidade em relação a emergências que têm vindo a ser anunciadas como de ocorrência próxima e muito provável. (2020, p. 28).
Também a violência doméstica de gênero não é novidade, mas as fontes que pesquisamos – relatórios oficiais, jornais impressos e digitais, telejornais, informações capturadas em sites da internet – revelam seu significativo aumento em tempos de pandemia. É importante ressaltar também a imensa quantidade de artigos sobre a temática que localizamos no Google Acadêmico, o que vem atestar a importância e urgência da presente reflexão, neste momento crucial. As medidas restritivas adotadas para controle da contaminação resultaram em um maior isolamento domiciliar que agravou situações preexistentes, em momentos em que o agressor e a agredida ficam confinados (as) no mesmo espaço físico, com reduzidas possibilidades de escape desta, o que faz pensar que o lugar mais perigoso é dentro de casa.
Desarrollo:
Neste artigo, elaborado sob a perspectiva sociológica e feminista, trazemos dados do Brasil que, infelizmente, não é caso isolado, posto que o quadro de acirramento da violência de gênero na Pandemia é mundial; cenário comum à grande parte dos países, que atinge não só mulheres europeias, mas também de outras nacionalidades, que residem em solo europeu.
Em matéria publicada na Folha de São Paulo, a articulista Ana Estela de Sousa Pinto destaca que:
No primeiro mês de quarentena europeia (de meados de março a meados de abril), a Revibra [Rede Europeia de Apoio às Vítimas Brasileiras de Violência Doméstica – Europa] atendeu a 22 desses casos, quase o dobro dos 12 registrados no mês anterior nos oito países em que atua (Portugal, Bélgica, Alemanha, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e Reino Unido).Não é uma medida estatística, mas reforça a tendência apontada pela polícia francesa (crescimento de 30% nas queixas), pelo governo espanhol (18% mais ligações nas duas primeiras semanas de quarentena) e pelo continente todo. E fora da Europa também, diz a eurodeputada tcheca Radka Maxová, uma das nove que na semana passada pediram um plano de emergência ao Poder Executivo da UE. (PINTO, Folha de São Paulo, 17.04.2020, Caderno A, p. 14).
Mas, falaremos do Brasil, cujos dados integram o mosaico mundial, e onde a pandemia ocorre sob um governo autoritário, com um presidente sexista e misógino, o que potencializou os danos. Vale registrar, a título de exemplo que, em dezembro de 2014 quando o presidente era, então, deputado federal pelo PP – Partido Progressistas, do Rio de Janeiro, no plenário da Câmara Federal, agrediu verbalmente a deputada federal Maria do Rosário Nunes, do PT – Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul, afirmando que não a estupraria porque ela não merecia, por ser feia[1].
Costa et al. corroboram esta responsabilização do governo bolsonarista, em artigo no qual analisam as representações da violência de gênero na pandemia em memes e vídeos que circularam nas páginas do Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp:
No caso brasileiro, há um fator agravante, pois, as desigualdades de gênero são minimizadas pelo atual poder federal. Fato que se traduz na ausência de políticas públicas para o enfrentamento do aumento das violências de gênero durante a pandemia e que, em grande medida, legitima e reforça o discurso misógino e violento de uma parte da população brasileira, que é reproduzido nas redes sociais. (COSTA, et al., 2021, p. 161).
O ápice da violência doméstica de gênero no Brasil ocorreu no ano de 2020, mais precisamente a partir de março de 2020 quando começaram as medidas restritivas de circulação que resultaram em maior isolamento doméstico. Segundo o documento intitulado Violência contra as mulheres em 2021, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP -, que tem como fonte os boletins de ocorrência das Polícias Civis das 27 Unidades da Federação, “houve um aumento dos casos [de feminicídio] entre os meses de fevereiro e maio de 2020, quando houve maior restrição nas medidas de isolamento social”. (2021, FBSP, Oficina 22, p. 5).
Em 2020, foram registradas mortes com violência de 1351 mulheres; um crescimento de 22,2% de feminicídios no período entre 2019 e 2020, segundo o documento Violência doméstica durante a pandemia da Covid-19, de 29/05/20, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, a pedido do Banco Mundial.
Ao mesmo tempo em que cresciam os casos de violência contra a mulher, houve decréscimo da notificação de casos, por meio de Boletins de Ocorrência – B.O.s – formalizados presencialmente e decorrente queda de medidas protetivas. Em matéria publicada na Folha de São Paulo, Pinho, com base em levantamento do FBSP, ressalta que “a redução de registro é incoerente com o aumento de assassinatos de mulheres e dos chamados ao, 190 por violência doméstica [...] o número de mulheres assassinadas dentro de casa quase dobrou no período de quarentena em comparação com o período similar 2019” (PINHO, 2020, Caderno B. p.2). Ou seja: muitas mulheres não conseguiam sair de casa para registrar a denúncia ou não a faziam por temer represálias se denunciassem as violências sofridas. Pode-se concluir que os índices de violência excessivamente altos, ainda eram subnotificados; o panorama real era ainda mais grave do que os dados revelavam.
Restavam às mulheres em situação de violência doméstica, os telefonemas ao número 190, da Polícia Militar, ou o disque 180 – Central de atendimento à mulher, canal de denúncia, como política pública de enfrentamento à violência contra a mulher em âmbito nacional e internacional, que no Brasil atualmente é oferecido pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – MMFDH[2]. Isso, quando o companheiro não escondia ou danificava o seu aparelho celular, o que também a impedia de recorrer a aplicativos, tal como o whatsapp, para pedir ajuda.
Algumas vezes elas utilizavam estratagemas, como pedidos de socorro por meio de senhas, dentre estas, uma cruz assinalada com batom vermelho na palma da mão, discretamente mostrada a atendentes em estabelecimentos comerciais, sobretudo farmácias, centros de saúde, e hospitais.
Marques et al. (2020) afirmam que “segundo dados do Ligue 180 disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos houve um aumento de cerca de 17% no número de ligações com denúncias de violência contra a mulher durante o mês de março, período inicial da recomendação do distanciamento social no país”. E, trazendo dados de algumas unidades da Federação, os (as) autores (autoras) prosseguem informando que:
No Rio de Janeiro, dados do plantão do Ministério Público Estadual revelam um aumento de 50% nos casos de violência doméstica já no primeiro final de semana após os decretos estaduais que propuseram o distanciamento social, sendo a maior parte das denúncias envolvendo violência contra a mulher. Do mesmo modo, no Paraná, houve um aumento de 15% nos registros de violência doméstica atendidos pela Polícia Militar no primeiro fim de semana de distanciamento social (MARQUES et al., 2020).
Não se pode deixar de assinalar que da mesma forma que não podemos falar de mulheres, abstrata e genericamente, também é preciso pensar nas marcas interseccionais de gênero e raça-etnia da violência contra as mulheres, na medida em que os eixos de dominação, opressão e exploração são imbricados e impactam de forma desigual os sujeitos sociais. No evento denominado 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e a Secretaria da Mulher na Câmara discutiram a situação específica da violência contra as mulheres negras no contexto da pandemia ressaltando que a violência contra a mulher é agravada pelo racismo estrutural: “mulheres negras foram em 2020, 51% das vítimas de lesão corporal e 52% das vítimas de estupro” (BRASIL, 2021).
O documento Violência contra as mulheres em 2021, anteriormente referido, registra que relativamente a 2020, período de mais rígido confinamento domiciliar, assiste-se em 2021 o decréscimo do número de mulheres vítimas de feminicídio – ainda que se mantenha assustadoramente elevado - já em momento de início de abrandamento das medidas restritivas de circulação em espaços públicos, o que comprova o quadro de violência vivenciado pelas mulheres e também pelas crianças do sexo feminino durante a pandemia.
Em 2021, ocorreram 1.319 feminicídios no país, recuo de 2,4% no número de vítimas registradas em relação ao ano anterior. No total, foram 32 vítimas de feminicídio a menos do que em 2020, quando 1.351 mulheres foram mortas (...)
Em 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas. (...)
A taxa de mortalidade por feminicídio foi de 1,22 mortes a cada 100 mil mulheres, recuo de 3% em relação ao ano anterior, quando a taxa ficou em 1,26 mortes por 100 mil habitantes do sexo feminino. (2021, FBSP, Oficina 22, p.3).
Não restam dúvidas quanto ao aumento da violência no confinamento doméstico em tempos de Covid-19. Se entre quatro paredes, “o inferno são os outros” (SARTRE, 2022), por que os números gritam a violência contra a mulher? Por que não gritam a violência contra o homem? Não que estas não possam acontecer ou não tenham acontecido, mas as estatísticas são irrisórias, haja vista que segundo o Conselho Nacional de Justiça, no presente ano de 2022 a população carcerária brasileira está constituída por 867 mil homens e 49 mil mulheres; estas perfazem, pois, aproximadamente 6% da totalidade de pessoas aprisionadas.
Estamos diante de um sexismo estrutural que não se caracterizaria como patologia ou desvio individual, mas como permissão social[3] concedida aos homens (BANDEIRA, 2019).
Joan Scott (1995), desde o seminal texto dos Estudos de Gênero, publicado em 1980, vem progressivamente auxiliando-nos a entender o gênero como a organização social da diferença sexual, marcada pelo poder, com supremacia do homem. E, especificamente, acrescentamos, do homem branco, de elite e heterossexual.
Essas relações hierárquicas com privilégio masculino, e em desfavor das mulheres e de todas as pessoas que subvertem a cisheteronormatividade, configuram-se como violências de diferentes dimensões: a desigual divisão sexual do trabalho também é uma forma de violência; a sub-representação da mulher nos espaços político-institucionais é mais uma forma de violência. Há tantas outras violências de gênero, em diferentes formatos, em diferentes âmbitos, em diferentes instâncias e espaços sociais. A violência das desigualdades nas relações sociais reverbera nas relações interpessoais, tais como as que constituem o escopo deste artigo: a violência doméstica de gênero.
Heleieth Saffioti (2001) alerta que o conceito de violência de gênero, que materializa o sistema de sexagem é amplo, e pano de fundo de diversas formas de violência; a autora distingue a violência doméstica (que pode ser contra não parentes, por exemplo, contra empregadas domésticas) e a violência intrafamiliar (que recai entre os membros da família, não apenas sobre as mulheres, mas também sobre idosos (as), crianças e adolescentes, não se restringindo necessariamente ao território físico do domicílio).
Destarte, é necessário enfatizar o tipo de violência doméstica sobre a qual este artigo versa. Ele propõe-se, especificamente, a refletir sobre a violência de homens contra mulheres - cisgênero ou transgênero - com as quais mantêm vínculo conjugal, e que é exercida a partir do território domiciliar, em situação de confinamento pandêmico.
O Brasil tem dispositivos legais contra a violência de gênero, reconhecidos internacionalmente, tal como a Lei 11.340/ 2006, denominada Lei Maria da Penha, em homenagem à luta da farmacêutica brasileira Maria da Penha Maia Fernandes por justiça e punição de seu marido, Marco Antônio Heredia Viveros, que a tornou paraplégica após tentativa de feminicídio.
No cenário da violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei 11.340/2006, define cinco formas dessa violência, que visa coibir:
I - física - entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - violência psicológica - entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. (esta não é a redação original, mas, a alterada pela Lei nº 13.772, de 2018).
III - sexual - entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - patrimonial - entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - moral - entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
A Lei Maria da Penha foi considerada pela ONU como uma das melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. E ainda assim, a violência de gênero não cessa de aumentar; os instrumentos jurídicos não têm dado conta de reverter a estrutura sexista androcêntrica, a opressão sistêmica de gênero, que a pandemia veio escancarar.
Tamanha violência justifica a instituição da Lei 13.104/2015, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff[4], nomeada Lei do Feminicídio que altera o Código Penal de 1940, qualificando os assassinatos de mulheres, cometidos simplesmente por elas serem mulheres; crimes de ódio motivados pelo sentimento de posse.
Os feminicídios têm sido cruéis, sádicos, e não raro praticados diante dos próprios (as) filhos (as) ou outros (as) familiares. Quando não resultam em morte, a tentativa deixa profundas sequelas, não raro incapacitantes. Recentemente telejornais e sites da internet veicularam o caso da jovem Tayane Caldas, de 18 anos, que em 24/05/22, teve sem permissão, sem consentimento, o nome do ex-namorado tatuado em seu rosto e partes íntimas; ato de violência que a tem obrigado a passar por sucessivos procedimentos médicos na tentativa de apagar a indesejada e humilhante tatuagem.
Faz lembrar o trecho da música Disparada, de Geraldo Vandré, que na voz de Jair Rodrigues foi a 2ª classificada no Festival da Música Popular Brasileira de 1966, organizado pela TV Record: “porque gado a gente marca; tange, ferra, engorda e mata; mas com gente é diferente”. Entretanto, parece que não, para os homens imbuídos da masculinidade tóxica e agressiva que o sexismo androcêntrico forja.
Diante do horror de tais atos, o feminicídio foi incluído - como precisava ser - no rol de crimes hediondos, com aumento da penalidade, a ser cumprida em regime fechado, sem possibilidade de indulto, anistia, graça, além de outras restrições jurídicas.
Diuturnamente têm sido tomadas medidas paliativas, tais como a disponibilização de boletins de ocorrência eletrônicos que possibilitam o registro de ocorrências de forma remota, pela Internet; campanhas de divulgação de serviços de proteção à mulher; fortalecimento de redes locais de apoio mútuo; círculos de vizinhança; diversificação de canais de denúncias, dentre outras, com limitado êxito para debelar o cenário de violência.
Nem sempre a violência é material e deixa marcas visíveis no corpo, no patrimônio; a violência pode deixar marcas profundas no psiquismo, no sistema emocional, na “alma”. Deixemos que Bourdieu fale sobre essa violência simbólica:
Sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. (BOURDIEU, 1999, p.7,8).
Mas, nem sempre a violência simbólica é suave, insensível, invisível, como conceitua o sociólogo francês, no excerto acima transcrito.
E fica no passado o dito popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Hoje, não meter a colher em briga de marido e mulher é omissão, é conivência. Inclusive, o documento Violência doméstica durante a Pandemia da Covid-19, 26/04/2020, do FBSP registra o aumento de 431% nos relatos de brigas entre casais vizinhos no Twitter entre fevereiro e abril de 2020.
Em outra matéria publicada na mesma edição da Folha de São Paulo anteriormente citada, a articulista Thaiza Pauluze informa a existência de vídeos na internet durante a quarentena, que ensinam a autodefesa às mulheres: “como evitar um agarrão de pulso, soco, puxão de cabelo, estrangulamento ou estupro (...)”. (PAULUZE, 2020, B1). Foram muitas e variadas as estratégias adotadas para a sobrevivência.
[1] Em 2019 a deputada Maria do Rosário foi vitoriosa em uma ação judicial movida contra Jair Messias Bolsonaro, recebendo R$ 20.114,01, como indenização por danos morais, valor este que doou a entidades de combate ao feminicídio e à violência contra a mulher.
[2] O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – MMFDH, do governo Bolsonaro representa um retrocesso no enfrentamento da violência contra a mulher e comunidade LGBTQIA+, posto que retira da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres/SNPM - criada em 2003, no governo Lula - o status de ministério e extingue diversos órgãos colegiados e comitês que respondiam por tal enfrentamento.
[3] O grifo é nosso.
[4] Dilma Rousseff, a única mulher presidenta do Brasil, eleita em 2010 e reeleita em 2014, foi deposta por um golpe jurídico-midiático-parlamentar em 2016, tendo sido, durante as suas gestões, alvo de grosseiros ataques misóginos.
Conclusiones:
As perguntas que ficam são: por que a necessidade de tais instrumentos legais e de medidas paliativas? E por que não conseguem erradicar a violência contra as mulheres?
Para responder, basta retornar à Lourdes Bandeira (2019): é a trama do sexismo sistêmico, do sexismo estrutural.
Heleieth Saffioti (2019) em profunda reflexão ontológica contribui para localizarmos a origem dessa violência masculina contra a mulher no entendimento que o homem dela tem como objeto, e não sujeito. No âmago está a reificação, a coisificação da mulher, ou a sua secundarização social como ser que é periférico; não central.
Simone de Beauvoir publica, em 1949, O Segundo Sexo, texto precursor dos Estudos de Gênero estruturados na década de 1970, que é de fundamental importância para se entender a construção da mulher como este ser secundário, periférico, como o outro: “a mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 1980, p. 10).[1] A filósofa feminista e existencialista demonstra que nada há de biológico capaz de justificar essa primazia do homem; há, sim, uma perversa construção histórica e sociocultural.
Assim sendo, se nada há de natural nessa desigualdade entre pessoas de diferentes identidades sexuais e de gênero, se ela foi historicamente construída, pode haver desconstrução e construção de vivências mais saudáveis e não violentas.
Essa mulher-outro, que é objetificada, inferiorizada e agredida, pode e precisa ser o sujeito da denúncia contra a agressão que a atinge; sujeito da luta contra a violência de gênero; sujeito edificador de relações humanas em bases mais justas, igualitárias e harmônicas.
[1] Bourdieu corrobora que o princípio masculino é tomado como a medida de todas as coisas. (1999).
Bibliografía:
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BEAUVOIR, Simone. (1980) O segundo sexo. Vol 1- Fatos e Mitos. Rio de janeiro: Ed. Nova Fronteira.
BOURDIEU, Pierre. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
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Palabras clave:
Gênero. Violência Doméstica. Brasil. Covid-19