Resumen de la Ponencia:
Este resumo apresenta uma pesquisa de doutorado que está em desenvolvimento no Programa de Educação Matemática e Tecnológica na Universidade Federal de Pernambuco - Brasil, na linha de educação tecnológica e a pesquisadora está inserida no grupo de pesquisa de Mídias Digitais e Mediações Interculturais. A pesquisa que estamos desenvolvendo trabalha com letras de músicas populares brasileiras que tocam no tema do feminismo e pretende analisar os discursos produzidos pelos estudantes a partir da ampliação dessas letras em narrativas transmidiáticas (NT). As letras das canções servem como ponto de partida para a produção de novos textos, através de novos arcos narrativos em diferentes mídias e são selecionadas pelos próprios alunos. Na atualidade, não há mais a separação entre produtores e consumidores de conteúdo, mesmo que nem todos consigam produzir e consumir da mesma forma. Há uma liberdade maior para criação e compartilhamento de tudo o que é produzido, e isso se revela uma experiência enriquecedora em um ambiente de aprendizagem. Ao pensar em recurso pedagógicos disponíveis, elencamos não apenas toda a gama de dispositivos e aplicativos tecnológicos, mas também todos os conteúdos e formas de arte produzidos pela sociedade e compartilhados nas diversas plataformas. Nessa perspectiva, vivendo esse momento histórico, com tantas informações e recursos à disposição, os professores tornam-se curadores de conteúdos e guias dos alunos em seus processos individuais de aprendizagens. Destarte, eles não podem perder a oportunidade de compartilhar, em suas interações, as inúmeras possibilidades que o mundo digital e a sociedade em rede nos apresentam. A aplicação prática de NT em atividades pedagógicas ainda é um campo pouco explorado na Educação. Vislumbramos então uma pesquisa exploratória quanto aos seus objetivos, dado que se quer analisar os discursos feministas produzidos pelos alunos a partir da ampliação de narrativas transmidiáticas relacionadas às letras das músicas. Com relação aos procedimentos, optamos pela cartografia como método dessa intervenção, pois a professora regente e a pesquisadora atuaram como guias no processo, apresentando a atividade proposta e orientando os grupos na criação de arcos narrativos. Todo o trabalho criativo, entre planejamento e execução, foi realizado pelos estudantes, em seus respectivos grupos. Neste artigo descrevemos essa experiência e demonstramos algumas possibilidades de utilizar as NT como ferramenta pedagógica parar o fomento de práticas que estimulam o pensamento crítico. (O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001)
Introducción:
Introdução
Esse artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida no Programa de Educação Matemática e Tecnológica da Universidade Federal de Pernambuco, na linha de Educação Tecnológica. A pesquisa trata da análise do discurso de estudantes do ensino médio a partir da ampliação das narrativas transmidiáticas feministas com origem em letras de canções brasileiras.
Entretanto, o delineamento selecionado para esse artigo dá conta da descrição da proposta que levamos para a sala de aula e das observações que fizemos dos resultados conquistados nessa etapa. Como dito, a pesquisa está em andamento e os discursos dos estudantes ainda estão sendo analisados, sendo esse o objetivo fim do projeto.
A proposta desse trabalho constitui-se transdisciplinar, pois quer trazer para sala de aulas temas que perpassam diversas áreas do conhecimento e ainda que atravessem os muros da escola, trazendo para sala de aula situações do cotidiano da sociedade. Para tanto, foi escolhido o tema feminismos para ser o fio condutor dessas discussões e letras de canções da MPB para serem o ponto de partida da empreitada.
Como ferramenta pedagógica, apresentamos aos alunos as narrativas transmidiáticas (NT), recurso muito usado por grandes conglomerados de entretenimento e marketing para expandir histórias nos mais diversos segmentos midiáticos. Trazer um universo de infinitas possibilidades para a sala de aula é ao mesmo tempo instigante e amedrontador. Instigante porque nos deparamos com muita liberdade para criar arcos narrativos a partir da letra de uma canção, utilizando qualquer um dos recursos tecnológicos que dispúnhamos. Amedrontador porque ficamos sempre com as grandes produções midiáticas como parâmetro e sem querer, podemos ser levados a crer que as produções mais simples, realizadas em sala de aula, não somam algum valor.
O percurso do nosso trabalho tem nos mostrado o contrário. Apesar de sermos bombardeados pela necessidade do uso das tecnologias em nossas aulas, o que mais importa está na nuvem de ideias que circula enquanto os alunos discutem e produzem seus textos midiáticos. Mais do que o produto final altamente tecnológico, esse trabalho tem mostrado o seu valor naquilo que provoca o pensamento crítico e a formação de cidadãos mais preparados para lidar com os conflitos do cotidiano.
Para dar conta de apresentar nosso trabalho, dividimos esse artigo da seguinte forma: depois dessa introdução, relacionamos na segunda seção os temas que embasam nossas discussões. Defendemos a importância de um maior investimento em projetos transdisciplinares e apresentamos os conceitos de NT e seu uso para fins pedagógicos. Trazemos também uma breve reflexão sobre o uso de canções como instrumento pedagógico e as possibilidades de trabalhar esses temas transdisciplinares com as letras da MPB. Como mencionado anteriormente, escolhemos o tema feminismo para o nosso trabalho. Sendo assim, adentramos um pouco nos conceitos de alguns feminismos e como as canções podem ser usadas como pontapé para reflexões que ampliem suas visões de mundo.
Na terceira seção detalhamos como foram feitas as atividades em sala e compartilhamos algumas produções realizadas. E terminamos o artigo apresentando algumas observações no que diz respeito às provocações e reflexões que a proposta trouxe para o grupo de jovens à luz da pedagogia crítica.
Desarrollo:
Referencial teórico-metodológico
Nesta seção trazemos os temas que estão relacionados à ideia central do trabalho. Quando imaginamos propor a pesquisa, pensamos desde o momento embrionário que ela teria um caráter transdisciplinar.
Segundo a autora Maria Cândida Moraes (2015), transdisciplinaridade precisa ser compreendida como algo com um dinamismo que está além das disciplinas e dos objetos de conhecimento. Para ela, seria considerar o sujeito, o ser humano em toda sua multidimensionalidade e complexidade. Nesse sentido da transdisciplinaridade e alinhados ao pensamento de Batalloso Navas (2015), pretendíamos propor uma experiência de educação personalizada e libertadora, já que a ideia foi trazer para a sala de aula práticas de abertura, autonomia, responsabilidade, solidariedade, flexibilidade e liderança dos alunos. A ideia foi integrar os estudantes num conjunto de atividades de transformação que estimulassem o desenvolvimento pessoal e comunitário de cada um deles, tratando de temas importantes da nossa atualidade.
Nesse sentido, dialogamos também com Morin (2003, p. 74), que difunde a teoria do pensamento complexo, seguindo nosso desejo de propor um trabalho que tenha um caráter responsável e solidário. Em suas palavras ele nos diz que “solidariedade e responsabilidade não podem advir de exortações piegas nem de discursos cívicos, mas de um profundo sentimento de filiação (affiliare, de filius, filho), sentimento matripatriótico que deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o país, o continente, o planeta.”
Concordamos ainda com o entendimento de transdisciplinaridade exposto em Gomes e Carvalho (2020). Eles defendem que é necessário pensar na educação como um todo, de forma transdisciplinar, para além das habilidades e competências dos alunos, de forma a contemplar as diferentes dimensões do ser humano e sua complexidade. Como diz Morin (2003, p. 89), “é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto.”
Para tanto, ao nos depararmos com o conceito de narrativas transmidiáticas pensamos que poderíamos adaptar as ideias que vêm sendo utilizadas pelos gigantes do entretenimento para versões mais acessíveis às salas de aula. Acessíveis, mas não menos poderosas ou criativas.
Uma narrativa transmidiática parte de uma história base que é expandida em outros arcos narrativos em gêneros diversos e independentes entre si e que são veiculadas em várias plataformas midiáticas. Tem também como preceito a sua construção de maneira colaborativa. É importante, no entanto, deixar esclarecido que esse termo tem sido enunciado com nuances diferentes ao longo dos tempos.
Jenkins (2009) estrutura a base desse fenômeno quando fala da cultura da convergência, onde todas as mídias convergem parar trabalhar em prol da comunicação, seja ela qual for, de forma participativa e coletiva. Observamos isso em grandes sucessos de aceitação e abrangência mundiais, como a saga de Harry Potter, onde o livro se transformou numa série de produtos midiáticos, com universos de histórias que se entrelaçam, com experiências de entretenimento em diversos lugares e através de diversas mídias, ora produzidos pela indústria do entretenimento, ora produzidos pela comunidade de fãs.
Entretanto o próprio Jenkins (2011) afirma que não há uma fórmula única para determinar o que são as NT. Com isso ele não quer dizer que qualquer coisa pode ser considerada uma NT. No entanto, há de se ter uma definição que abranja diferentes exemplos e deve-se considerar que esta definição não é estanque, visto que a tecnologia sempre apresenta novas mídias em novas plataformas que tendem a convergir. Para além disso, não há um requisito mínimo de quantidade de gêneros ou tipos de mídias a serem explorados, desde que construídos colaborativamente. Foi daí que surgiu a ideia de aplicarmos o conceito ao nosso trabalho.
Por que não criarmos narrativas a partir de canções da música popular brasileira? Músicas e letras têm sido usadas em salas de aulas para os mais distintos fins pedagógicos, nas mais diversas áreas do conhecimento há bastante tempo. Encontramos na literatura argumentos que falam da importância do seu uso para facilitar os processos de ensino e aprendizagem, pois é capaz de atribuir prazer ao processo de construção do conhecimento (Tennroller & Machado, 2012). Nesse sentido, Rocha, Gonzaga e Santos (2019) colaboram com a ideia quando dizem que a música está frequentemente presente na vida das pessoas e explora sentimentos como alegria ou tristeza e acreditam que a motivação que ela empenha nos estudantes pode ser explorada em sala de aula a fim de melhorar o aproveitamento destes.
Podemos ainda aproximar essa discussão para o que propomos no nosso trabalho trazendo uma citação de Duarte (2019, p. 116) que nos diz que “uma música, afinal de contas, não se restringe à sua letra e à sua melodia. Trata-se de algo que foi criado a partir de todo um contexto social, com todas as contradições que lhe são inerentes.” O professor e pesquisador Marcos Napolitano (2002) acredita que as canções são um rico recurso didático e que é fundamental articular texto e contexto, já que para ele as canções têm sido “termômetro, caleidoscópio e espelho não só das mudanças sociais, mas sobretudo das nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas mais profundas.” (Napolitano, 2002, p. 53)
Pretendemos então trabalhar com as canções dentro de uma perspectiva crítica, alinhada com o conceito de pensamento crítico e com a pedagogia crítica. Para Bassham et al. (2011), o pensamento crítico é um termo geral dado a uma ampla gama de habilidades cognitivas e intelectuais que são necessárias para identificar, analisar e avaliar argumentos, descobrir e superar preconceitos, formular e apresentar razões convincentes e tomar decisões razoáveis sobre o que se acredita ser correto fazer. Já a pedagogia crítica e os estudos da educação crítica, segundo Apple, AU e Gandin (2011), podem ter seu conceito genérico assemelhado ao próprio conceito de democracia, ao mostrar como as relações de poder e desigualdade (social, cultural, econômica) são postas, nesse caso, na educação formal e informal do cidadão de qualquer idade. Ainda, segundo os autores, a pedagogia crítica “está fundamentada em mudanças radicais dos compromissos de cada um com o social. [...] Temas que dizem respeito à política de redistribuição (processos e dinâmicas econômicas de exploração) e à política do reconhecimento (lutas culturais contra a dominação e lutas pela identidade) [...].” (Apple, AU, & Gandin, 2011, p. 14).
Para Freire, segundo Moreira (2015, p. 98), “a criticidade é a capacidade do educando e do educador refletirem criticamente a realidade na qual estão inseridos, possibilitando a constatação, o conhecimento e a intervenção para transformá-la.” Diante dos conceitos expostos, a pedagogia crítica tem alicerçado a pesquisa e nos lembrar a todo instante o caráter protagonista que educadores e educandos precisam dispor para compreender e transformar a realidade, em um desafio concreto e contínuo em busca de justiça social.
No sentido da transdisciplinaridade e da criticidade propostos para a pesquisa em curso, trabalhamos sob o foco dos feminismos, trazendo para a sala de aula essa questão ainda tão merecedora de elaboração, análises e superação de preconceitos. Segundo Hooks (2018, p. 19), “desde o seu início, o movimento feminista foi polarizado.” Ela nos esclarece as diferenças entre as pensadoras reformistas que preferiam enfatizar a igualdade de gênero, enquanto as pensadoras revolucionárias queriam acabar com o patriarcado, sistema que permite que as violências contra as mulheres continuem a existir na nossa sociedade. Podemos dizer que colocar esse tema em debate em uma sala de aula com jovens do ensino médio gerou falas riquíssimas que comprovam a necessidade desse espaço para reflexão e crescimento, que entenda de onde veio o feminismo e onde pretendemos levá-lo. Nesse sentido, é bem próprio dos jovens uma conclusão imediata sob a condição de subserviência e desprestígio da mulher na sociedade e logo aparecem falas de violência e revanchismo. Hooks (2018, p. 21) também nos alerta para algo que ela denomina “feminismo como poder”. Segundo ela não se pode permitir uma noção de poder suscitada através da “exploração e opressão de outras pessoas”.
Destarte, a construção de um ambiente que explore o debate respeitoso, propositivo e que promova a investigação da história do feminismo, neste caso, e seus reflexos atualmente, permite que os objetivos pedagógicos sejam mais satisfatoriamente atingidos. Precisamos sempre lembrar que as salas são compostas por pessoas de diferentes gêneros, raças, classes e que, portanto, trazem consigo vivências e expectativas diversas. Concordamos então com a filósofa contemporânea Chimamanda Adichie (2015, p. 30) que nos diz que “a questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos.”
Decidimos usar as letras das canções brasileiras por ser uma fonte rica de exemplos de machismos e exaltação de feminismos. Também é possível encontrar trabalhos acadêmicos que esmiuçam como esse tema está tão fortemente presente nessa nossa expressão cultural. Santos e Dias (2021) afirmam que ao estudarmos a História Cultural a partir de fontes diversas, construímos a possibilidade de pensarmos a música como meio de divulgação do feminismo. Para elas, a música é capaz de interagir com as nossas emoções, sejam elas no sentido de alegrar ou de mover-nos para manifestações e indignações. Já Ribeiro e Ponciano (2018, p. 22) ao discutirem o discurso patriarcal através da música popular brasileira concluem que:
é importante que se discuta a influência que estas letras possuem na construção da consciência coletiva sobre os papéis de gênero. Além disto, o fato de a escolha das canções buscar uma diversidade de estilos que representam culturas populares específicas, faz com que a possibilidade de compreensão de diferentes culturas regionais compreendam o patriarcado e as representações acerca das mulheres.
Observamos que essa ligação entre música e feminismos ocorre para além do nosso território. Lanteri (2019, p. 6) nos diz que “podemos ver como artistas de todo o mundo e de todos os gêneros musicais conseguem, de uma forma ou de outra, se posicionarem neste mundo que sempre esteve regido por homens e se apropriam do espaço fazendo música com temas feministas e empoderadores.” (tradução nossa)
Diante do exposto, explicaremos o percurso didático que usamos para explorar o tema dos feminismos e construir novas narrativas a partir de uma canção da MPB. Nesse sentido, os estudantes puderam expressar seus conceitos, ouvir exemplos de situações vividas por colegas e por mulheres em suas famílias. A partir daí, foi possível indagar posicionamentos, entender comportamentos históricos, suscitar mudanças, demonstrar solidariedade, sentir juntos e construir juntos. São essas propostas de construções que exploraremos na próxima seção.
Relato da Experiência
Essa experiência foi conduzida com jovens da 3ª série do ensino médio de uma escola pública de referência da cidade do Recife. Como mencionado anteriormente, o objetivo seria criar narrativas transmidiáticas a partir de letras de canções brasileiras que tocassem no tema do feminismo.
Realizamos duas propostas de intervenção com os jovens. Seguimos como procedimento o método cartográfico, pois
pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas nem com objetivos previamente estabelecidos. No entanto, não se trata de uma ação sem direção, já que a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pesquisa (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2015, p. 17)
Na primeira intervenção, a canção e as atividades realizadas foram guiadas pela professora-pesquisadora. Sugerimos o trabalho com a música “com açúcar, com afeto” de 1967, escrita por Chico Buarque a pedido da cantora Nara Leão. A partir da letra da música, e utilizando outros recursos como fontes históricas da época da sua criação, foi possível promover discussões acerca do tema proposto na letra: a submissão feminina.
Preparamos uma atividade introdutória com a canção ‘Com açúcar, com afeto’, aproveitando uma postagem do perfil do Instagram @histórias_em_retalhos[1] que propunha uma discussão sobre a fala de Chico Buarque que se negara a cantar essa canção novamente, em respeito aos movimentos feministas. Lemos a postagem e selecionamos alguns comentários, sempre contando com a participação interessada dos estudantes. Depois, mostramos um vídeo, extraído do documentário ‘O canto livre de Nara Leão’, da plataforma de streaming Globoplay, onde Chico Buarque fala sobre a sua decisão e sobre a música ter sido concebida a pedido de Nara Leão. Em seguida, lemos e escutamos a letra da canção, em sala de aula para depois perguntar se eles achavam que ainda hoje havia mulheres com essas histórias. A resposta dos estudantes foi positiva e se iniciou um debate sobre essa situação vivida por muitas mulheres.
Aproveitamos o debate sobre a música e solicitamos que eles se dividissem em grupos de 3 a 4 estudantes e criassem uma narrativa para essa canção. Demos algumas sugestões de como poderiam trabalhar em seus grupos e falamos que precisariam usar algum recurso de mídia nessa nova narrativa, como podcast, vídeo, webtoon ou meme, por exemplo. Os estudantes demonstraram bastante interesse pelos temas abordados e pelo trabalho proposto, e se reuniram na sala para iniciar seus projetos. Algumas produções foram concluídas em momentos extraclasse, pois eles precisaram editar seus vídeos e áudios em um local mais adequado, tanto com relação aos recursos tecnológicos e acesso à rede de Internet, quanto com relação aos ruídos e interferências que atrapalhariam as produções em sala de aula.
Em um novo encontro, os alunos puderam assistir ou escutar as produções realizadas por todos os grupos. Os grupos ficaram livres para explorar a narrativa da forma que preferissem, assim como escolheram livremente a mídia que utilizariam para registrar suas produções. Essa primeira atividade foi realizada nas 4 turmas da 3ª série do ensino médio. Ao final, conseguimos reunir 22 produções diferentes feitas pelos estudantes.
Com a experiência dessa primeira atividade, propusemos aos estudantes que agora a canção seria escolhida por eles. Para essa segunda atividade, nos restringimos a apenas um dos quatro grupos da 3ª série. A turma escolheu então duas canções para serem exploradas e ampliadas em narrativas transmidiáticas: Mulher do fim do mundo, de Elza Soares e Melhor sozinha, de Luísa Sonza. De início já nos chamou a atenção as escolhas feitas. Dois perfis de cantoras bem distintos. A primeira, uma mulher madura, de carreira consolidada, mas de origem muito humilde e com uma história de vida bastante sofrida. A segunda, uma jovem artista, que desde sua estreia precisou se defender do machismo estrutural que associava suas conquistas ao fato de estar casada com um homem rico e famoso. Os gêneros musicais de ambas também são bem distintos. As letras das canções escolhidas nos guiam por histórias e sentimentos diferentes. Mas aí, cabia a cada grupo de estudantes explorá-las como preferissem. O que se pediu foi o mesmo de antes, que imaginassem novos roteiros a partir da canção e preparassem seus produtos.
Orientamos os estudantes para que definissem o universo das duas músicas. Eles deveriam estabelecer o tempo, o local as relações dos personagens que eles imaginavam para cada canção. Pedimos para que os estudantes se organizassem em dois grupos de acordo com a música que tinham escolhido. Então, se juntaram em dois círculos para que desenvolvessem os debates e as tomadas de decisões sobre as narrativas, um para a música ‘Mulher do fim do mundo’ e outro para a música ‘Melhor sozinha’.
O grupo da canção “Mulher do fim do mundo” começou explicando a ideia que viram surgir da música: uma mulher preta periférica é assediada durante o carnaval de rua e ao se defender, mata o homem. Ela é acusada e segue a luta para provar sua inocência. Ela é presa e condenada. Então, na cadeia ela passa a estudar direito para depois poder ajudar mulheres que passam pela mesma situação.
Os estudantes decidem fazer um curta e um blog interativo. No curta eles contam a história da agressão, morte, julgamento e prisão. No blog, a protagonista conta o decorrer do caso dela, o julgamento e a sua saída da prisão. A ideia desse blog interativo era que todos pudessem interagir com a história. Além disso, pensaram em duas vertentes para a história: a primeira seria baseada na mãe do agressor que via o filho como inocente até entendê-lo como culpado. E a outra, baseada na mãe da vítima real, vendo a filha sendo presa injustamente. Enquanto debatiam, os estudantes colocaram várias ideias de cenas, propuseram um final surpreendente, pensaram em gravar cenas de testemunhas com a face e voz distorcidos, dando vazão a criatividade para montar vídeos interessantes. Ainda sugeriram ‘Lágrimas de samba’ como título do filme.
O grupo da canção “Melhor sozinha” precisou de mais apoio para pensar no universo, pois já queriam pensar na história e no desfecho, sem criar possibilidades de narrativas. Depois foram construindo a personagem da música. Descreveram a mulher da música, como ela chegou à conclusão que era melhor ser sozinha. A personagem seria, então, uma mulher que sofre agressão do marido. Ela procura os amigos e não obtém ajuda. Após muito sofrimento entende que ela não merece aquilo e que é melhor estar sozinha. Pensaram também em encaixar outras músicas cujas letras se aproximassem do contexto, como nas telenovelas que trazem uma trilha sonora que ajuda na compreensão da narrativa. A história começa no interior, quando a menina conhece um rapaz e se apaixona por ele. A família não aprova o relacionamento e ela sai de casa para viver com ele na cidade grande. Há uma diferença de idade entre eles. O relacionamento começa bem, mas com o passar do tempo ele começa a ser agressivo. Ela descobre que está grávida. Ela não encontra apoio com as amigas da sua cidade. Ela é influencer e conhece uma amiga no mundo virtual. Essa amiga é quem a aconselha a sair dessa situação. Ela ergue a cabeça e busca sua independência. Passa a viver só e entende que deve se amar em primeiro lugar. Hoje ensina ao filho a respeitar as mulheres. Esse grupo quis preparar um vídeo com a encenação da história e um perfil em uma rede social, já que a personagem principal é uma influencer. Nesse perfil, outras histórias poderiam ser contadas, compartilhadas e comentadas.
As discussões levadas a partir da leitura e análise das letras das canções envolveram muito os estudantes. Opiniões, compartilhamento de experiências e histórias trouxeram à tona situações para que se refletissem os erros e acertos, os meios da justiça, as dificuldades encontradas, a busca pelo respeito. Esses momentos foram gravados e as falas serão alvo de análise no trabalho final do doutorado. Para este artigo, preferimos nos atentar nas análises das atividades desenvolvidas pelos estudantes à luz da pedagogia crítica.
Produzir vídeos e blogs e outros produtos midiáticos não foi algo simples para os estudantes. Passamos por dificuldades no percurso como problemas na infraestrutura da escola que sofreu com as fortes chuvas que atingiram a cidade no período em que se realizou a pesquisa de campo. Para além disso, os alunos tinham outros compromissos com trabalhos de várias disciplinas e a necessidade de cumprir as agendas, ajudaram a desviar o foco para a realização daquilo que eles haviam idealizado. Conseguimos por fim que o grupo da canção ‘Mulher do fim do mundo’ escrevesse o roteiro do filme e produzisse o blog. Já o grupo ‘Melhor sozinha’ conseguiu criar apenas o perfil da conta da personagem em uma rede social.
Na próxima seção trazemos algumas análises da vivência dessas atividades com os estudantes, assim como nossas considerações sobre o uso de NT para fins pedagógicos em temas transdisciplinares.
[1] @histórias_em_retalhos é um perfil do Instagram que traz fatos históricos e culturais com linguagem acessível.
Conclusiones:
Considerações
Ao propor atividades transdisciplinares, preocupamo-nos em prover dentro do ambiente escolar um momento para refletirmos sobre questões que nos afetam fora dos muros da escola. Aproveitamos dessas atividades para ampliar o repertório cultural dos estudantes, com a análise de letras de músicas, estudos sobre momentos históricos, debates, produções textuais, produções orais e produções de conteúdos midiáticos.
Apesar das dificuldades encontradas no percurso, foi possível apreciar discussões que ajudaram a quebrar preconceitos e a estimular solidariedade. Na primeira intervenção, as quatro turmas da 3ª série do ensino médio produziram 22 trabalhos a partir da canção ‘Com açúcar, com afeto’. Foram podcasts, memes, contos, paródia e poemas que surgiram em formatos de áudio, vídeo e história em quadrinhos digital.
Na segunda intervenção notamos que as discussões e a elaboração do plano para criação das NT foram mais ricas do que os produtos apresentados. Mesmo assim, acreditamos que atingimos a nossa intenção maior: estimular o pensamento crítico para a formação de cidadãos mais preparados para lidar com os conflitos do cotidiano.
A própria metodologia escolhida nos dá essa possibilidade. Passos, Kastrup e Escóssia (2015, pp. 17-18) nos dizem que “a cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção do conhecimento) do próprio percurso da investigação”.
Além disso, essas produções nos revelaram que houve uma colaboração participativa para que fossem criadas, além do estímulo à inteligência coletiva e a preocupação com questões éticas, humanas e políticas do nosso tempo, como é o caso dos feminismos. Observamos também a utilização de diferentes recursos tecnológicos na produção dos trabalhos. Ou seja, os conceitos que definem a cultura da convergência podem ser verificados nessa experiência.
Já no que diz respeito ao uso crítico das NT para fins pedagógicos, acreditamos que atingimos o objetivo de provocar os jovens a observarem seu cotidiano através das letras das canções e a agirem sobre ele, com intuito de promovermos discussões críticas em ambientes de aprendizagens, na busca de uma sociedade harmoniosa, justa e com equidade para todos.
Finalizamos com um trecho do livro de Paulo Freire (1967, p. 102), Educação com Prática da Liberdade, que diz muito do nosso desejo ao realizar esse trabalho durante o doutoramento.
Experimentáramos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos, de que só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas. Daí, jamais admitirmos que a democratização da cultura fosse a sua vulgarização, ou por outro lado, a doação ao povo, do que formulássemos nós mesmos, em nossa biblioteca e que a ele entregássemos como prescrições a serem seguidas.
As construções e reflexões acerca dos papeis sociais, das diferenças de gênero, dos machismos e feminismos aos quais estamos imbricados, precisam estar presentes nas salas de aula e podem ser estimuladas a partir do nosso acervo cultural. Buscamos esse intento ao trazer as canções e fazer delas narrativas transmidiáticas, construídas a partir da criticidade e da coletividade. E desejamos que essa experiência tenha contribuído para a formação desses jovens.
Bibliografía:
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Palabras clave:
Transdisciplinaridade, Narrativas Transmidiáticas, Feminismos