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Resumen de la Ponencia:
A iconografia da arte têxtil revela aspectos culturais, políticos e econômicos das sociedades. Em países onde a arte têxtil em patchwork coloca-se como patrimônio cultural, tais aspectos são apreendidos nitidamente, a exemplo da: escravidão, do abolicionismo, de guerras civis, da cultura hippie, da luta pelo sufrágio da mulher e do movimento feminista. Embora também caracterizado pela produção de peças artesanais de uso doméstico, o recorte deste estudo foca as telas artísticas têxteis de patchwork, cuja curadoria volta-se para divulgar traços que compõem a realidade cotidiana. O problema desta pesquisa consiste em averiguar se as telas de patchwork produzidas por artistas têxteis brasileiras detêm expressões socioculturais do país ou se estão apenas circunscritas ao universo privado da casa. Para isso, foi realizada pesquisa de campo entre 2019 e 2021, a partir das exposições e história do Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo. Estudiosas como Dwyre, Parker e Simioni compõem a perspectiva teórica desta investigação por criticarem apreciações sociais que consideram a arte têxtil uma arte menor, uma ideia patriarcal, arcaica, com hegemonia masculina e de opressão da mulher. Por se tratar de uma arte produzida essencialmente por mulheres, certamente suscita uma pauta política contemporânea. Apesar de as artistas têxteis do Clube não se colocarem como ativistas diretas dessa pauta, as iconografias de suas obras, reveladas nos resultados desta pesquisa, oferecem significados atuais de uma mulher que supera preceitos passadistas e de servidão ao espaço doméstico, a saber: significado sociopolítico pela metáfora das flores, condições do sertanejo, destruição do meio ambiente e trabalho infantil.
Introducción:
A arte têxtil figurativa detém uma linguagem iconográfica que materializa a constituição da sociedade, revelando seus aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais dentro de temporalidades específicas; o que legitima análises sociológicas tomarem-na como objeto de estudo.
Na realidade norte-americana, a arte têxtil em patchwork alcançou o reconhecimento de patrimônio cultural por registrar múltiplos momentos e condições da história daquele país, tais como: escravidão, abolicionismo, guerras civis, cultura hippie, luta pelo sufrágio da mulher e movimento feminista, além de datas comemorativas nacionais e de rituais de passagens entre as famílias.
Uma técnica e uma arte que reúne pedaços de tecidos para compor imagens, o patchwork destina-se tanto a peças utilitárias domésticas, quanto à adornos para o corpo feminino e a telas artísticas. É sobre esta última vertente que este trabalho se dedica, especialmente pela participação de artistas têxteis em exposições com curadoria voltada para divulgar traços que compõem a realidade cotidiana.
O problema que norteia a pesquisa consiste em averiguar se as telas de patchwork produzidas por artistas têxteis brasileiras detêm expressões socioculturais do país ou se são apenas, como o senso comum apregoa, donas-de-casa produzindo “retalhos da vovó” circunscritos ao universo privado da casa.
Para verificar a realidade brasileira, foi realizada uma pesquisa de pós-doutorado vinculada ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo, entre 2019 e 2021, tomando o Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo como fonte empírica. Trata-se de uma entidade consagrada na área no país, remontado um quarto de século, e com participação ativa em exposições de feiras têxteis tanto nacionais quanto internacionais.
Apoia-se aqui em uma sólida perspectiva teórica (Dwyre, Parker, Simioni) de desconstrução de valores arraigados socialmente que consideram a arte têxtil uma arte menor, ideia que provém de uma sociedade patriarcal, com hegemonia masculina e julgamentos morais arcaicos sobre o papel da mulher enquanto mãe, dócil e do lar.
Os resultados desta investigação demonstram que as expressões das telas de patchwork das artistas estudadas tocam em temas nevrálgicos da sociedade brasileira, a saber: significado sociopolítico pela metáfora das flores, condições do sertanejo, destruição do meio ambiente, poluição e trabalho infantil, temas com viés político que questionam a pecha da dona-de-casa alienada e servil à família e ao sistema.
Com vistas a apresentar os resultados dessa arte têxtil essencialmente feminina, são trazidas a seguir seis telas de três das artistas do Clube pesquisado, cujas iconografias e sentidos trazem pistas dos apelos políticos construídos na sociedade e temporalidade a que pertencem.
Antes, porém de entrar na análise das telas, é importante traçar um breve quadro técnico e histórico do patchwork nos Estados Unidos, berço dessa arte têxtil.
O patchwork está dividido, basicamente, em tradicional/geométrico e artístico, porém com diversas nuances, como: abstrato, minimalista, figurativo. Originalmente foi edificado sob o aspecto tradicional, que emprega inúmeras técnicas para o formato e montagem dos pedaços de tecido, também sendo utilizado como plano de fundo em muitas telas artísticas. A técnica mais comum é a Log Cabin ou Cabana de toras, montada a partir de um bloco quadrado no centro e depois ladeado por outros blocos retangulares com contrastes de cores. Bargello já é uma técnica mais elaborada e cujas combinações de cores conferem ideia de movimento à peça. Em geral, os nomes das técnicas se referem ao seu lugar de origem, a exemplo de Baltimore, uma região dos EUA, feita com blocos e dentro dos quais são aplicados diferentes desenhos, especialmente flores, mas também pássaros, borboletas, frutas, cornucópias, monumentos, símbolos patrióticos; um tipo de quilt utilizado para presentear em comemorações como casamento e nascimento.
Um dado histórico pertinente sobre a apropriação dos significados dos blocos do patchwork tradicional entre os africanos nos EUA são os Freedom Quilts, que portavam códigos secretos e eram expostos por mulheres escravas nos peitoris das janelas para auxiliar a fuga de escravos (Rosa & Orey, 2009, p. 58).
Nas Américas, o patchwork tem como berço o saber-fazer de afrodescendentes estadunidenses, cujas experiências de vida materializaram, nas imagens de suas artes com retalhos, expressões das mulheres em movimentos políticos na Guerra Civil, nos direitos civis do sufrágio universal e no protagonismo feminista das décadas de 1960 e 1970 (Dwyre, 2012). Vale ressaltar que a arte têxtil, de um modo geral, é produzida por mulheres, e o patchwork especificamente tanto deriva de uma estética notadamente feminina quanto dispõe de estudiosas fundamentalmente mulheres, portanto, a arte têxtil do patchwork resulta de uma cultura material, simbólica e intelectual do gênero feminino, realidade encontrada em vários países, entre os quais o Brasil.
Estudando os vínculos entre quilt/patchwork, arte e poder, Dwyre (2012, p. 66) assinala as relações assimétricas no universo artístico, dominado pela hegemonia masculina e pelas artes plásticas tradicionais:
“A maior luta feminista pela igualdade de gênero na sociedade moldou grandemente o debate sobre o quilt como arte dentro da academia. Para as estudiosas feministas, o estatuto marginal do quilt no mundo das artes serviu de pedra de toque para a marginalidade das mulheres na sociedade; ele tornou-se um símbolo da opressão patriarcal às conquistas das mulheres [...] [A] luta das estudiosas de quilt para obter reconhecimento dessa arte dentro do meio acadêmico assemelha-se estreitamente à luta para se obter reconhecimento do quilt e de suas produtoras dentro do mundo artístico, revelando como as estruturas de poder baseadas em gênero e em classe social funcionavam de forma semelhante em ambos os casos”. (Tradução nossa).
A despeito da existência de relações assimétricas de gênero tanto na sociedade quanto na esfera artística, as mulheres ocupam seu espaço desenvolvendo a sua estética feminina e sua leitura sobre a sociedade retratadas em suas obras, incluindo as têxteis. É sobre esse universo das artistas têxteis de patchwork brasileiras que importa focar aqui.
Desarrollo:
Flores e sentido sociopolítico
A proposta curatorial das exposições artísticas, com iconografias figurativas, do Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo é conduzida por Benigna Rodrigues da Silva e Wagner Vivan, cujas estratégias para estimular a criatividade das artistas do Clube são pautadas, em grande medida, em leituras de obras literárias brasileiras e estrangeiras, a exemplo de romances de viajantes no Brasil, do século XIX, tais como: o primeiro romance, genuinamente, brasileiro, “Frey Apollonio”, de Karl Friedrich Philipp Von Martius; “A Moreninha”, de Joaquim Manuel Macedo; “A viagem pitoresca através do Brasil”, de Johann Moritz Rugendas; assim como obras com registros iconográficos de pintores e historiadores, como: Jean-Baptista Debret.
Imersas em leituras, imagens, experiências e muita criatividade e originalidade, as artistas do Clube constroem suas narrativas visuais juntando pedaços de tecidos que resultam em uma explosão de cores e sentidos diversos.
Figura 1

Campagner, U. (2019). Para não dizer que não falei das flores. Exposição “Brasil: Em busca do paraíso perdido, o mundo das flores e das ervas”. Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo.
“Para não dizer que não falei das flores”, de Urbana Garcia Campagner, 2019, tela apresentada na exposição “Em busca do paraíso perdido, o mundo das flores e das ervas”, provoca certa quietude no observador. A profusão da paleta policromática das flores suscita o frescor de um jardim real. Não obstante, para além da estética e sensibilidade poética dessa obra, a intrigante posição das flores sendo jogadas do vaso instiga a quebra de harmonia, compele a ideia de conflito e caos, cuja leitura é respaldada pelo título homônimo da música de protesto do músico Geraldo Vandré, que durante a ditadura militar na década de 1960 no Brasil, falava de flores como figura de linguagem para despertar os brasileiros a ocuparem as ruas e lutarem pela democracia e paz.
A letra dessa música de protesto acusa: “Pelos campos há fome em grandes plantações, pelas ruas marchando indecisos cordões. Ainda fazem da flor seu mais forte refrão. E acreditam nas flores vencendo os canhões”. Tendo em vista a biografia desse músico e contesto político de opressão do seu país, sabe-se que a menção às flores e à paz denota crítica contra o movimento pacifista hippie Flower Power dos EUA, cuja busca por harmonia por meio da natureza, efetivamente, fugia do confronto político (Garcia, 2019, pp. 63 e 66); portanto, essa música representou um chamado aos brasileiros para aderirem ao movimento político, aparentemente armado, de oposição aos militares e à miséria. Esse chamado é perceptível em seu refrão: “Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Por fim, Vandré destaca a necessidade de os brasileiros protagonizarem sua própria história: “Os amores na mente, as flores no chão. A certeza na frente, a história na mão” (grifo nosso). Essa música foi cantada por Vandré no III Festival Internacional de Canção, em 1968, um mês e meio depois foi decretado o AI-5, que entre as várias censuras proibiu festivais. Por causa da incitação política provocada por essa música, o regime militar prendeu o cantor, o torturou e o exilou, o que o teria levado a loucura (Memórias da Ditadura, 2021).
Como se denota, das iconografias mais delicadas podem-se revelar histórias sombrias. Um olhar desatento à tela de Urbana Garcia Campagner e, eventualmente ofuscado pela extrema vivacidade e beleza das flores, pode não atingir seus sentidos subliminares, todavia, àquele que se permitir a calma do olhar, poderá enxergar para além da beleza inebriante das flores, despertando-se para compreender melhor sobre fatos que marcaram o contexto político-cultural brasileiro nos tempos sombrios da ditadura militar. Assim, são flores apenas, mas cuja representação é capaz de capturar as estruturas mais profundas da sociedade.
Outra bela iconografia de patchwork que recorreu à flores como linguagem metafórica para abordar uma temática social nevrálgica foi a tela “Amanhecer no Sertão”, 2019, de Estela Mota, exibida na mesma exposição “Brasil: em busca do paraíso perdido, o mundo das flores e das ervas”. Germinado de um solo inóspito, o mandacaru sobrevive ao calor e à falta de chuva do nordeste brasileiro, assim como o sertanejo resiste a seca e a pobreza; é por meio dessa planta que a artista busca representar os valores e modos de vida das pessoas que habitam essa região. Estela Mota é paulista, porém tem raízes do nordeste brasileiro, o que, em certa medida, pode tê-la sensibilizado a contestar preconceitos contra nordestinos publicados em redes sociais; sua tela é uma reação à tratamentos discriminatórios ao povo nordestino, que mesmo marcado por condições severas tanto da natureza quanto de desigualdade social mantem-se resistentes em sua região e em sua cultura.
Figura 2

Mota, E. (2019). Amanhecer no Sertão. Exposição: “Brasil: em busca do paraíso perdido, o mundo das flores e das ervas”. Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo.
A respeito do mandacaru, a artista tece memórias de suas férias na fazenda do seu avô:
“Sou filha de baiano, nordestino mesmo do Sertão, a casa do vô tinha uma cerca que ele nunca deixou derrubar porque tinha tiro do Lampião [...] Eu me lembro quando era criança [...], os meus primos abriam a folha do mandacaru para bebermos [água] e depois saíamos correndo [...] Mandacaru é a própria exemplificação do Nordestino. Resistência e perseverança no Sertão.”
Lampião é o cognome do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, um personagem lendário do sertão brasileiro, para uns bandido e para outros herói que fez justiça no sertão, mas antes de ser cangaceiro foi um artesão, compositor, músico, poeta e sanfoneiro, (Lins, 1997), todavia essa parte de sua vida não recebeu atenção do imaginário brasileiro.
A Etnobotânica classifica a planta mandacaru-de-boi ou Cereus jamacaru como uma cactácea dotada de várias funções: alimentar, medicinal e ornamental (Andrade, 2002, p. 43), sendo os dois primeiros de uso frequente entre os sertanejos da caatinga nordestina. Em A geografia da fome, Castro (1984, p. 169) reporta que:
“a caatinga é o reino das cactáceas. No solo ríspido e seco estouram [...] os mandacarus eriçados de espinhos. As árvores acocoradas em arbustos e as formações herbáceas contemplam a paisagem adusta da caatinga. É a zona de maior aridez do Nordeste, com seus rios [...] leitos ardentes inteiramente expostos ao sol.”
Castro (1984, p. 170) esclarece ainda que em períodos de seca, o mandacaru ampara “a gente e o gado a escapar aos seus rigores mortíferos”. Percebe-se, assim, uma simbiose entre mandacaru e sertanejo, o primeiro resiste à aridez e serve de alimento para o segundo, cuja existência atesta a luta contra a “seca e a cerca”. Cerca interposta pelas grandes corporações privadas, notadamente do agronegócio, cujas irrigações e mineradoras colossais secam os rios, intensificam a seca e agravam a vida dos sertanejos (Galf, 2018).
A questão ambiental na arte têxtil
A artista Rute Sato dispõe de uma trajetória bastante marcada por apelo em prol do meio ambiente, dentre suas várias obras sensíveis a essa temática destaca-se aqui a tela “Retrato do descuido”, apresentada em 2017 no Internacional Quilt Festival, de Houston, Texas/EUA, significada por ela com as seguintes palavras: “Meu trabalho foi inspirado no triste cenário do lixo abandonado nas praias. Isso resulta em sérios danos ambientais. As pessoas deveriam saber que a praia é uma extensão de sua casa. Precisamos mantê-la limpa e bem cuidada”.
Figura 3

Sato, R. (2017). Portrait of Carelessness/Retrato do descuido. Internacional Quilt Festival, de Houston, Texas/EUA.
Nota-se na tela grande contraste entre o colorido dos guarda-sóis dos banhistas e o lixo abandonado na praia, inclusive esse encontra-se no primeiro plano da tela mostrando-se um ponto focal de sua mensagem. Denota-se da fala da artista um esforço em despertar a consciência das pessoas em defesa do meio ambiente, sensibilizando-as a perceberem o espaço público como continuidade daquele de sua vida privada, uma vez que as ações dos indivíduos atingem a ambos, resultando em impactos presentes e futuros a nível local e planetário.
Outra tela de Rute Sato foi exibida na exposição “Brasil: em busca do paraíso perdido, o mundo das flores e das ervas”, onde ressaltou no próprio título essa perspectiva enfática sobre as ameaças ao ecossistema: “Natureza em prantos”, 2019. Em um bioma arrasado pela queimada restam cinco indivíduos de quatro espécies ameaçadas de extinção: uma onça-pintada, dois lobos-guará, um mico-leão-dourado e um tatu-bola, todos comunicam por sua expressão corporal e pelo olhar grande desalento diante da mata aniquilada. A artista explicita sua perspectiva com os seguintes termos:
“O desmatamento das florestas brasileiras teve início na época da colonização. Hoje biomas como Mata Atlântica, Cerrado e Floresta amazônica apresentam devastação intensa – resultado da urbanização descontrolada, extração madeireira, as espécies animais estão perdendo seu habitat.”
Figura 4

Sato, R. (2019). Natureza em prantos. Exposição “Brasil: Em busca do paraíso perdido, o mundo das flores e das ervas”. Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo.
Embora Rute Sato não seja deliberadamente uma “artivista”, adepta do movimento político que mistura ativismo à arte, a força das expressões de suas obras carrega em si mesmas grande sensibilidade e apelo aliados, na prática, à abordagem ecopolítica iconológica. A noção de cuidado com o planeta visível nas telas da artista ultrapassa uma percepção circunscrita aos animais e seu habit, avançando para às condições de vida daqueles que estão no topo do reino animal, como pode ser notado na tela seguinte.
Denúncia iconográfica do trabalho infantil
No repertório temático das exposições do Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo não está apenas a natureza, há também outros temas candentes marcados por questões sociais. A esfera do labor, mais especificamente do trabalho infantil, foi retratada pelas artistas têxteis Rute Sato e Urbana Garcia Campagner, em suas telas “Vendedores de praia”, 2018, e “Catador de recicláveis”, 2003-2004, nas exposições “Brasil: nas ondas da imaginação – litoral brasileiro” e “Isto é Brasil”/450 anos de São Paulo”, respectivamente.
Figura 5

Sato, R. (2018). Vendedores de praia. Exposição “Brasil: nas ondas da imaginação – o litoral brasileiro”. Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo.
Figura 6

Campagner, U. G. (2003-2004). Catador de recicláveis. Exposição “Isto é Brasil”/ “São Paulo 450 anos”. Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo.
A priori as temáticas dessas duas exposições sugerem a ideia de belezas idílicas brasileiras e dos monumentos históricos, entretanto, o Clube assume uma perspectiva de incentivo às artistas na produção de obras com vínculos afetivos, o que acaba, muitas vezes, sensibilizando-as por situações sociais contemporâneas que revelam conflitos.
Trazer para as telas têxteis o trabalho infantil ambulante nas praias e de catadores nas ruas das cidades é um modo contundente de chamar a atenção do observador para as desigualdades sociais presentes em nossa sociedade. Esse olhar de denúncia iconográfica fica patente nessas duas telas, sobretudo pelo fato de os atores desse trabalho infantil serem crianças negras, as mais atingidas pela exploração do trabalho infantil em sociedades com fortes desigualdades de classes como a brasileira.
No Brasil, o trabalho infantil atinge patamares muito altos, conforme dados da PNAD (2016) realizada pelo IBGE, 1,8 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade estavam trabalhando, sendo 54,4% crianças de 5 a 13 anos (In: Lima, 2019). Dados do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) de regiões metropolitanas identificou que “entre as crianças e adolescentes que estavam ocupadas no Brasil em 2013, 64,5% eram do sexo masculino e 33,3% do sexo feminino”, sendo 62,5% negros (pretos e pardos) (idem). Trata-se de um problema estrutural que demanda intervenção severa de políticas públicas, entretanto o que se vê é a inapetência de um Estado letárgico apoiado por uma sociedade civil que naturaliza o trabalho infantil para a população vulnerável.
A OIT (Organização Internacional do Trabalho), em sua Convenção n. 182, de 1999, estabeleceu a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, a qual o Brasil aderiu apenas quase uma década depois. Entre as 93 piores formas de trabalho infantil do país está justamente aquele realizado em logradouros públicos, como o comércio ambulante e transporte de objetos, cujos prováveis riscos ocupacionais são: “exposição à violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; exposição à radiação solar, chuva e frio; acidentes de trânsito; atropelamento”, quanto às prováveis repercussões à saúde são: ferimentos e comprometimento do desenvolvimento afetivo; dependência química; doenças sexualmente transmissíveis; atividade sexual precoce; gravidez indesejada; queimaduras na pele; envelhecimento precoce; câncer de pele; desidratação; doenças respiratórias; hipertemia; traumatismos; ferimentos” (BRASIL, Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008).
Portanto, são todas questões sociais estampadas artisticamente em telas têxteis de patchwork, que se colocam como um meio iconográfico não apenas estético, mas também político de denúncia da situação social do país.
Conclusiones:
As telas das artistas têxteis do Clube Brasileiro de Patchwork e Quilting de São Paulo trazidas neste texto mostram múltiplas imagens: flores, praias, animais e crianças, cujas expressões ultrapassam uma noção pueril, como é veiculada a respeito do patchwork de peças utilitárias. Fica explícito, tanto pela expressão das obras quanto pelas frases escritas pelas artistas, que elas ambicionam ir além da superficialidade da beleza das telas, querem mostrar uma mensagem, um apelo, visando impactar nas perspectivas e ações dos observadores. Portanto, trata-se de uma arte não passiva e tão pouco alheia aos acontecimentos sociais.
Essa é uma abordagem sustentada pelas próprias artistas têxteis de patchwork, o que, certamente, desconstrói a pecha do senso comum que as classifica de meras donas-de-casa produzindo costuras de “retalhos da vovó” para passar o seu tempo. Essa visão foi contrariada por várias das artistas do Clube, cuja maioria se recusa a reproduzir as tradicionais costuras e bordados que aprenderam com suas ancestrais, preferindo produzir obras mais livres tanto em termos de técnicas quanto de representações iconográficas.
Rozsika Parker (1986) aborda essa concepção em seu estudo sobre o bordado, sendo comumente considerado por seu caráter técnico conforme padrões supostamente seguidos pelas bordadeiras; ao invés disso, a autora atesta que essas mulheres escolhem padrões particulares e imagens com mais sentido para elas, exercitando certa liberdade e, ao mesmo tempo, sendo uma poderosa ponte de ressonância de seu tempo histórico por meio das representações pictóricas mais emblemáticas para comunicar sentidos de fatos vividos socialmente.
Nestes termos, tecidos e seus derivados compõem a cultura material de suas respectivas sociedades à medida que portam significados diversos e cujas formas retratam cenas do cotidiano, de cerimônias e de valores simbólicos. Assim, ao lado de vários outros suportes produzidos pelas ações e intencionalidades humanas, os têxteis também importam dentro do universo artístico. Todavia, Simioni (2010, p. 1) assevera que, desde o século XVI, as academias estabeleceram a arte “alta” para a pintura e “baixas” para as “artes aplicadas, vistas como domésticas e, por extensão, femininas”, logo meros apêndices.
A menoridade da arte têxtil no universo artístico, dominado pelas artes plásticas convencionais, em grande medida deriva do fato de essas serem compostas por matéria-prima mais durável no tempo e produzidas, essencialmente, por mãos masculinas (Simioni, 2007). Logo, um dos fatores da segregação social no universo artístico parece resultar, em certa medida, das matérias primas empregadas, já que o tipo de material utilizado no objeto artístico impacta sobre o seu valor, financeiro e simbólico. A tinta, o bronze, o mármore, a madeira são mais valorizados, já a argila, o tecido, a fibra, menos duráveis temporalmente, são menos valorizados no âmbito artístico. Simioni (2007) observa a pouca durabilidade do material têxtil se comparado a matérias-primas como a madeira, o mármore, o bronze, utilizadas nas artes clássicas. Dirigindo-se ao aspecto autoral das obras, a durabilidade do seu material empregado permite que seu autor se eternize ou pereça; nesse sentido, conforme a autora, as artes têxteis conduzem as artistas mais rapidamente ao esquecimento, isso aconteceu, por exemplo, com a pintora e decoradora brasileira Regina Graz. Apesar de ter sido um ícone na arte têxtil e pioneira na tecelagem de tradição indígena, além de empregar o estilo cubista e art déco em suas tapeçarias, seu nome foi desmanchando-se à medida que seus tapetes e suas decorações foram desgastando-se com o tempo. (Simioni, 2007)
Rozsika Parker tece duras críticas contra os romancistas dos séculos XV ao XX por terem desconsiderado o bordado como arte e relevado apenas “suas íntimas associações com a vida das mulheres e a tradição doméstica” (1986, p. 16). Ela chama a atenção para as instituições familiares e educacionais que destinaram às mulheres os trabalhos de costura e o bordado (assim como a carpintaria aos homens), tratando-se de tarefas cuja posição corporal e fixação no espaço doméstico atestam a feminilidade das mulheres com todos os seus atributos morais de recatamento, delicadeza, docilidade e passividade. Parker (1986, p. 5) explicita a forte relação de classe e de gênero na arte têxtil do bordado:
"A hierarquia arte/artesanato sugere que a arte feita com fios e a arte feita com tinta são intrinsecamente desiguais: que a primeira é menos importante do ponto de vista artístico. Mas as diferenças reais entre ambas são em termos de onde são feitas e quem as faz. O bordado, na época da divisão arte/artesanato, era feito na esfera doméstica, geralmente por mulheres, por "amor". A pintura era produzida predominantemente, embora não apenas, pelos homens, na esfera pública, por dinheiro. O ramo profissional do bordado, diferente do da pintura, esteve, desde o final do século XVII até o final do século XIX, em grande parte nas mãos das mulheres da classe trabalhadora ou das mulheres de classe média desfavorecidas. Claramente, existem enormes diferenças entre pintura e bordado; diferentes condições de produção e diferentes condições de recepção. Não obstante, em vez de reconhecer que o bordado e a pintura são artes diferentes, mas igualmente arte, o bordado e o artesanato associados ao "segundo sexo" ou à classe trabalhadora recebem menor valor artístico."
Parker (1986, p. 5) contraria a classificação do bordado como artesanato por ele não cumprir um princípio básico, o “imperativo utilitário”, sendo ao invés disso, em grande medida, “puramente pictórico”. Embora as produtoras de bordado chamem este de “trabalho”, a autora o designa de arte, em função das seguintes características: trata-se de “uma prática cultural que envolve iconografia, estilo e função social”; ou ainda, “as bordadeiras [transformam] materiais para produzir sentido”. Entre os sentidos observados pela autora na produção do bordado está o “silêncio subversivo”, que fomenta o prazer artístico nas mulheres e certa autonomia para sua própria auto-contenção, podendo distanciar-se de sua tradicional função materna, de esposa e do lar; o que não significa a inexistência da submissão feminina, mas da existência simultânea de ambos os sentidos, sem necessariamente imperar a experiência da feminilidade tradicional. Assim, conforme a autora: “O estereótipo do bordado como ocupação inútil e frívola, como o estereótipo da costureira silenciosa e sedutora, controla e mina o poder e o prazer que as mulheres encontraram no bordado, representando-o negativamente” (Parker, 1986, p. 14).
Considerando tratar-se de uma prática realizada, essencialmente, por mulheres, a menoridade da arte têxtil no universo artístico, efetivamente convoca uma pauta política que precisa ser enfrentada pela sociedade contemporânea. Ainda que no caso das artistas têxteis do Clube – representativo nesse ramo no Brasil –, não haja protagonismo, diretamente, político para transpor essa desvantagem feminina, suas obras insurgem como manifestos, na prática, cuja iconografia apresenta significados atuais de mulheres que superam preceitos passadistas e projetam-se como agentes de seu tempo histórico.
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Palabras clave:
arte têxtil – patchwork – expressões sociopolíticas