Resumen de la Ponencia:
Esta pesquisa propôs-se a investigar como crianças se sentem diante do contexto pandêmico a partir de suas falas, desejos e posicionamentos. Para isso, apresenta expressões das crianças e outros dados produzidos, a partir de uma consulta online realizada com crianças entre 10 e 14 anos de diferentes regiões do Distrito Federal. Inseridas dentro das estratégias de isolamento social, as políticas de fechamento das escolas ocorreram em função de diretrizes do campo biomédico que orientaram o confinamento como forma de atenuar a disseminação do vírus. Uma decisão central no esforço de controle da doença. No entanto, pouco foi debatido, em termos de estratégias e ações concretas de autoridades, sobre a necessidade de dar atenção especial às crianças e à garantia de seus direitos em um cenário de vulnerabilidades. Relatórios da ONU[1] e pesquisas acadêmicas[2] cada vez mais avançam na escuta de crianças e evidenciam os impactos e desdobramentos das condições sociais e emocionais das crianças em função do tempo em isolamento. Além disso, a perda de familiares e outras consequências diretas e indiretas do vírus se apresentam como desafios reais na vida de muitas delas. O reconhecimento das crianças como um grupo social amplamente afetado pela pandemia impõe o desenvolvimento de um raciocínio que compreenda suas perspectivas sobre o problema, sobre suas perdas e também sobre possibilidades imaginadas e encontradas diante dos desafios vividos. Torna-se fértil um saber construído a partir das crianças, um exercício de aproximação sensível às suas realidades. Podemos, então, neste entendimento, reconhecer as vozes das crianças e seu valor heurístico para a compreensão de processos históricos que vivemos como sociedade. Mais que isso, é o reconhecimento que a participação de crianças é fundamental para a construção de uma vida cidadã. Há um sentido político e epistêmico nesta abordagem proposta. Tal aproximação tem implicações teóricas e metodológicas: precisamos escutar as crianças para, assim, orientar a nossa discussão e entender os pontos relevantes de suas experiências. O desenvolvimento teórico da investigação se dá dentro dos marcos referenciais que compreendem a criança enquanto sujeito que vive relações sociais geradoras de um processo de produção da cultura, e não como resultado dela. Isto será articulado ao entendimento de que a espacialização é um aspecto relevante para a configuração dos processos de constituição da criança enquanto sujeito do cotidiano. É fundamental pensar que as relações com o meio estão na base do desenvolvimento das crianças enquanto sujeitos sociais.
Introducción:
Inseridas no âmbito das estratégias de isolamento social, as políticas de fechamento das escolas ocorreram em função de diretrizes do campo biomédico que orientaram o confinamento como forma de atenuar a disseminação do coronavírus. Uma decisão central no esforço de controle da doença, que, no entanto, foi pouco foi debatida, em termos de estratégias e ações concretas das autoridades sanitárias e governamentais, acerca da necessidade de dar atenção especial às crianças e à garantia de seus direitos em um cenário de crise que acentua as desigualdades e vulnerabilidades presentes em suas vidas. O reconhecimento das crianças como um grupo social amplamente afetado pela pandemia exige que trabalhemos para ampliar a visibilidade de suas perspectivas sobre como esse momento histórico particular as impactou.
Diferentes relatórios de organismos internacionais (UNESCO, 2021) destacam vulnerabilidades e violências que se fazem presente na vida de crianças em tempos de crise. Concordamos com Marta Muñoz (2020) quando afirma que é urgente e necessário escutar as crianças em suas diversas perspectivas e posições em relação ao contexto do confinamento durante a pandemia de Covid 19. Este projeto de pesquisa nasceu da situação emergencial de confinamento social vivida em 2020 decorrente da pandemia de COVID-19.
Esta iniciativa se associa à pesquisa desenvolvida pela Associação Enclave de Evaluación y Derechos Humanos, que iniciou, na Espanha, o projeto intitulado Infância Confinada, visando entender o que pensam e sentem meninas, meninos e adolescentes sobre a questão do COVID-19 no que diz respeito aos impactos em suas vidas e à construção de significados tanto individual como coletivamente. A pesquisa foi conduzida por uma equipe multidisciplinar e teve como proposta mapear a realidade dessas crianças e jovens, observando diferentes questões - estruturais, emocionais, familiares e escolares - assim como buscar entendimento sobre os significados que elas têm dado à situação vivenciada.
O objetivo central foi propor a criação de oportunidades de fala e escuta sobre o que pensam e sentem meninas, meninos e adolescentes a respeito de suas vivências no contexto da pandemia de COVID-19, em particular no âmbito do Distrito Federal brasileiro. Para isso, buscou formas de chegar até as crianças para conhecer como elas elaboram sentidos e significados particulares sobre a pandemia. Identificou impactos da pandemia na perspectiva de crianças e jovens, sobretudo em relação às condições sociais, educacionais/escolares, econômicas e sanitárias a que estavam submetidas. Tratou-se de uma pesquisa exploratória, com abordagem quali-quantitativa, no sentindo que busca levantar, além de estatísticas de crianças que vivem nas distintas condições estruturais, também suas emoções, pensamentos e construções de significados e sentidos.
Também revelou a fragilidade de políticas públicas referentes ao apoio às famílias, no que diz respeito a: segurança financeira, alimentar, condições de moradia, acesso aos equipamentos para as aulas remotas, conexão à rede de internet, entre outros. Por isso, percebe-se que a crise vivenciada deve ser um ponto de reflexão para qualificar e integrar políticas públicas que se voltem à proteção das infâncias. Por esta e outras razões se assume o território enquanto contexto e experiência das infâncias na intenção de contemplar suas desigualdades estruturais e suas diferentes leituras, expectativas e possibilidades.
A pesquisadora argentina Silvia Grinberg (2022) destaca que a pandemia marca um momento de acirramento das desigualdades estruturais da sociedade, e chama a atenção para o processo de desigualdade educativa, de acesso à escola e e outros direitos de participação na vida coletiva.
La interrogación por la desigualdad educativa tanto como no es nueva se ha revitalizado en los últimos decenios y especialmente en 2020, resultado de una pandemia que expuso la injusticia de una sociedad que hace decenios hace gala de la precariedad (Grinberg, p. 15, 2022).
A investigação com crianças em contexto pandêmico tem sido abordada pelo campo acadêmico desde o primeiro semestre de 2020 e diferentes esforços têm sido feitos para registrar a experiência de crianças em suas diferentes condições de vida. No caso brasileiro, apresentamos duas abordagens que dialogam com a pesquisa que trazemos sistematizada neste artigo. Os pesquisadores: Gabriela Tebet, Anete Abramowicz e Jader Janer Moreira Lopes (2021) destacam que a pesquisa com crianças nesse momento e contexto aporta para a compreensão de como a pandemia gera efeitos e impactos para uma pluralidade de infâncias em um contexto excludente, marcado por desigualdades e perda de direitos. Entender as condições sociais e geográficas das crianças e como estes aspectos configuram diferentes experiências diante da pandemia demanda o desenvolvimento de dispositivos e abordagens políticas de atenção às infâncias.
Temos ainda a pesquisa: Infância e pandemia: escuta da experiência das crianças, realizada em 2020 por Isabel de Oliveira e Silva; Iza Rodrigues da Luz; Levindo Diniz Carvalho e Maria Cristina Soares de Gouvêa todos ligado à Universidade Federal de Minas Gerais que teve como objetivo compreender como crianças de 8 a 12 anos da região metropolitana de Belo Horizonte - RMBH, vivenciam a Pandemia de COVID-19. Um ponto de destaque dessa pesquisa é que dela emergem “Recomendações ao poder público”, entre as quais ressaltamos: a escuta das crianças por meio de “rodas de conversa”, “assembleias”, entrevistas individuais e “fóruns”, mas também a partir da análise sensível das suas diferentes formas de expressão, mediadas pela imaginação: o desenho, a fotografia e o brincar a fim de subsidiar a tomada de decisões que afete suas vidas.
No âmbito da América Latina, o livro Infancias, voces y esperanzas ante el confinamiento del Covid-19 en México de Melgarejo, Patricia M.; Linares, Roberto S. (2021) traz as expressões e elaborações de crianças indígenas mexicanas em suas vivências durante a pandemia. É importante observar que o trabalho amplia a percepção dos impactos do problema pandêmico a partir de um entendimento amplo de saúde e educação que articula corpo, práticas culturais, memória, identidades e territórios.
Ainda em espanhol, citamos o relatório Infancia Confinada: ¿Cómo viven la situación de confinamiento niñas, niños y adolescentes? de Martínez Muñoz; Rodríguez Pascual e Velásquez Crespo (2020) que constitui também um esforço em registrar vivências, falas e posicionamento de crianças espanholas durante o fechamento de escolas frente ao confinamento. Todos esses trabalhos mostram como as crianças são perspicazes em fazer leituras do que está acontecendo em suas vidas e entendem que toda a sociedade está enfrentando um problema sério. Elas se sentem parte da experiência pandêmica, identificam de que maneiras são afetadas por esse contexto e ao mesmo tempo são propositivas e têm muito a contribuir para o nosso entendimento deste problema.
Desarrollo:
As atuais discussões acerca da infância em sua pluralidade vêm reconhecendo as crianças como sujeitos de direitos. Isso pressupõe que, para a compreensão desse universo, se articule perspectivas macro estrutuais ao mergulho ao universo micro. Assim é que, considerando que as crianças são “indiscutivelmente parte da sociedade e do mundo e é possível e necessário conectar a infância às forças estruturais maiores” (Qvortrup in Nascimento, 2011, p. 201), bem como a de que precisam ser escutadas e livres para expressarem suas opiniões e interesses sobre questões que envolvem os diferentes aspectos e contextos da sociedade na qual estão inseridas de forma a serem compreendidas como atores sociais implica em irromper em um giro teórico e metodológico que deixa de pesquisar crianças para pesquisar com crianças (GAITÁN MUÑOZ, 2006), ou seja, uma investigação do mundo considerando as leituras das crianças.
Nesse entendimento, infância é uma categoria social estrutural que vem passando por transformações ao longo dos tempos, principalmente após os séculos XVII e XVIII, como bem pontuaram Pinto e Sarmento (1997). E como categoria, a infância precisa ser compreendida não como uma etapa da vida, mas, sim como um “componente da cultura e da sociedade” (Rego, 2018, p. 15) que carrega em si fatores intergeracionais, e que, portanto, pode ser objeto de análise sociológica “articulando-a a variáveis sociológicas clássicas, como a classe social, o gênero, ou o pertencimento étnico” (Rego, 2018, p. 15).
Nesta pesquisa, considera-se ainda que crianças reelaboram os espaços-tempos e vivenciam diferentes relações com o mundo e a vida como parte fundante dos seus processos de espacialização (LOPES & FERNANDES, 2018). Esta abordagem se afasta de uma interpretação da infância como fase transitória, em que a criança é concebida na perspectiva do permanente vir a ser, ainda não pronta, uma tábula rasa. Assim, afirma-se a criança como participante deste mundo, dos espaços e tempos partilhados, dos processos vividos em coletividade. (Lopes &; Fernandes, 2018; Aitken, 2019). A infância é pensada como categoria social estrutural do tipo geracional, (Qvortrup, 2011) e não como momento de pura maturação para uma vida adulta.
A nossa perspectiva teórica busca articular estruturas e subjetividades, de forma que, ao mesmo tempo em que contextualiza a estrutura social, considera as trajetórias históricas de crianças e seus saberes, dores, experiências e esperanças. Ao situar as infâncias e suas expressões em processos históricos e políticos afastamo-nos de compreensões reducionistas das experiências infantis, tendo em vista que, quando se concebe a diversidade de infâncias como um processo dado, sem situar as trajetórias infantis e, sem considerar os relatos e narrativas das próprias crianças, o pesquisador assume uma contradição, cujo resultado poderia levar a uma coisificação das infâncias (Medina Melgarejo, 2018).
Assim, a necessidade de articular a perspectiva macroestrutural ao diálogo na esfera micro permitiria perceber movimentos próprios, práticas situadas em espaços e tempos únicos. Partimos, então, da afirmação da criança como sujeito relacional, implicado na vida social e coletiva, que lança ao mundo suas narrativas e expressões próprias, emergentes de processos históricos singulares. Buscamos uma prática de estudo com as infâncias, e não sobre elas, pois as crianças não podem ser apenas objeto do conhecimento: já se sabe muito sobre as crianças, agora buscamos acessar sua condição de sujeitos de saber próprio sobre suas vidas.
A presente investigação se articula em termos metodológicos à experiência de pesquisa desenvolvida inicialmente na Espanha e em seguida em outros países, pela Associação Enclave de Evaluación y Derechos Humanos, que iniciou o projeto intitulado Infância Confinada, com a intenção de entender o que pensam e sentem meninas, meninos e adolescentes sobre a questão do COVID-19.
No caso brasileiro, a pesquisa, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida a partir do mesmo questionário espanhol adaptado à realidade brasileira, contendo 65 questões que variaram entre múltipla escolha, caixa de seleção, escala linear e resposta discursiva curta. A seleção dos participantes desta etapa foi feita de forma voluntária, convidados a partir da circulação de um questionário on-line, via aplicativo de mensagens whatsapp. O questionário apresenta perguntas sobre aspectos estruturais, emocionais, relacionais e sobre expectativas e desejos. A amostra inicial constituiu-se de 492 crianças, com 18 questionários excluídos por não concordarem com o termo de responsabilidade e participação.
Com esses formulários respondidos, os dados obtidos foram analisados com base no método de análise de conteúdo, proposto por Bardin (2011). Para tanto, fizemos a leitura flutuante (Bardin, 2011) dos formulários respondidos, como uma forma de estabelecer uma leitura inicial desses textos, de modo a “conhecer o texto, deixando–se invadir por impressões e orientações” (Bardin, 2011, p. 37). Em seguida, passamos ao processo de categorização das respostas escritas pelas crianças, de modo a transformar os dados iniciais em informações organizadas que nos permitiram estabelecer categorias. Com essas categorias de analise, foi possível, então, realizar interpretações e inferências dos textos obtidos nos formulários.
Este estudo foi realizado via questionário Google Forms on-line, com 474 crianças do Distrito Federal, em sua maioria vivendo no Plano Piloto (23,7%) e na região do Gama (21,8%), enquanto 57,2% dos respondentes estão em outras regiões do DF. Em relação a identificação das crianças pesquisadas, 53,6% se identificam com o gênero feminino e 46,4% com o gênero masculino.
Pouco mais da metade das crianças estudam na rede particular de ensino (54,4%) e os demais participantes em escola pública (45,6%). Destas crianças, 98,1% estão cumprindo as atividades escolares de forma remota. Em relação aos direitos das crianças 66% dos respondentes reconhece que possui direitos enquanto criança.
No entanto, foi perceptível nas respostas, que as crianças se dividiram quanto ao entendimento de se seus direitos estão ou não sendo cumpridos. Destas respostas, 31,6% não concordam nadinha que os direitos estejam sendo cumpridos de forma igualitária para todas as crianças. Aproximadamente 47% dos respondentes indicam que concordam em algum grau, e do total, apenas 15% das crianças concorda totalmente que os direitos de todas as crianças estejam sendo cumpridos.
Grande parte dos respondentes pertencem a uma região do DF com maior poder aquisitivo. Muitas crianças não relataram dificuldades ao acesso às tecnologias, recorrendo inclusive a este uso para amenizar os efeitos do sentimento de ócio causado pelo confinamento referente a pandemia de Coronavírus. No entanto, a pequena faixa de crianças que relatou não ter acesso às tecnologias se encontra nas regiões não centrais do DF
Em relação aos direitos das crianças 66% dos respondentes reconhece que possui direitos enquanto criança. No entanto, foi perceptível nas respostas, que as crianças se dividiram quanto ao entendimento de que seus direitos estão ou não sendo garantidos. Entre as respostas, 31,6% não concordam nadinha que os direitos estejam sendo cumpridos de forma igualitária para todas as crianças. Aproximadamente 47% dos respondentes indicam que concordam em algum grau, e do total, apenas 15% das crianças concorda totalmente que os direitos de todas as crianças estejam sendo cumpridos. Quanto à pandemia, 74,1% delas concordam sobre a necessidade de estarem isoladas para não contrair o Coronavírus, o que aponta uma compreensão da gravidade da doença.
As crianças que participaram da pesquisa apresentaram preocupações variadas em relação à vida financeira de suas famílias durante o confinamento, aproximadamente 48% das crianças se preocupa com a possibilidade de a família empobrecer, devido a diferentes reflexos gerados pela pandemia. No entanto, quase 30% não se preocupa com essa possibilidade. Neste seguimento, 25,4% das famílias das crianças já́ sofreram com a pandemia e estão mais pobres. As dificuldades financeiras se apresentam como uma limitação imposta pela pandemia que afetou muitos trabalhadores e suas famílias. As crianças imersas neste contexto também apresentam inquietações e sentimentos relacionados a esta situação. 42,6% das crianças não se preocupam se faltará comida na mesa, e 21,9% declaram que se preocupam muito com a falta de comida em casa durante este período.
As informações até aqui são uma base para compreender melhor o contexto no qual estas crianças estão inseridas. A segunda análise, a seguir, abordará mais especificamente as questões sobre o que dizem as crianças em suas expressões relativas às suas vivências da pandemia.
Conclusiones:
As crianças retrataram que o fato de estarem confinadas, sem a liberdade de circular em ambientes externos, os fazem sentir-se mais tristes. Importante destacar que os ambientes citados pelas crianças foram os da casa que residem, relacionada ao confinamento; a escola, retratada na saudade que sentem; e o uso de aparelhos tecnológicos para estreitar laços e encontros sociais de forma virtual. Ficou perceptível que as crianças, em geral, expressaram um dilema entre sair e ficar em casa, demonstrando que compreendiam a necessidade de permanecer em isolamento, porém com o desejo de retomar a sua liberdade para sair. A exemplo: “sinto vontade de sair”; “gostaria de poder brincar na rua”, encontrados com frequência ao longo do corpus textual.
Foi colocada a importância dos amigos e do contato físico para as crianças participantes frente ao confinamento imposto pela pandemia do Coronavírus. Somos sujeitos sociais e este estudo evidenciou a necessidade do contato com outras pessoas (amigos e parentes) para o bem estar dessas crianças. Muitos relataram que o confinamento gerou um sentimento de “prisão” que revelou reflexos de ansiedade e tédio, percebidos nas falas:
“Estar confinado me deixa em uma prisão.”
“Estar confinado é uma prisão.”
“A pior coisa do confinamento é a ansiedade.”
“Estar confinado gera ansiedade.”
“Estar confinado me deixa com tédio.”
Destacamos a importância dos jogos e brincadeiras on-line para o enfrentamento do ócio gerado pela quarentena. Foram recorrentes nas respostas o uso dos videogames, computadores e celulares para a realização de suas brincadeiras. Devido ao isolamento social, estes esquipamentos tecnológicos foram os recursos para os momentos de lazer das crianças. Outro destaque nas respostas foi o uso do verbo jogar, referindo-se ao fato das crianças não poderem jogar e encontrar-se pessoalmente:
“O que me deixa triste é o fato de querer jogar futebol com os meus amigos.”
“O que me deixa triste é não poder jogar bola na quadra.”
“O que me deixa triste é não poder ir pra escola nem jogar na quadra aqui do prédio.”
As últimas três falas citadas remetem ao tema “o que me deixa triste.”, demonstrando o quanto o contato físico com os amigos influencia no sentimento de alegria das crianças. Na análise das respostas às questões discursivas, as crianças retrataram que o fato de estarem confinadas, sem a liberdade de circular em ambientes externos, os fazem sentir-se mais tristes e por muitas vezes entediados. No entanto, de acordo com as respostas, demonstraram compreender a gravidade do contexto de pandemia atual.
Muitas crianças citaram o quanto sentem falta dos amigos da escola e como conversar com os amigos utilizando as mídias sociais tem ajudado a escapar ou a ludibriar o sentimento de aprisionamento. Entre as principais alegrias citadas durante o período de confinamento, jogar; brincar e conversar com os amigos; ficar com a família, foram as de maior destaque. As crianças deste estudo demonstraram em suas respostas se posicionar a favor do isolamento, mesmo que isso tenha gerado um contexto de incertezas e insegurança em seus lares. Relataram o medo do adoecimento de seus avós, pais e parentes próximos.
As crianças também manifestam percepções diante da restrição espacial imposta pela nova rotina imposta pelo isolamento, a exemplo das sentenças a seguir: não encontrar; não sair; não ir; não abraçar, além da recorrência das respostas “não sei”, ou “não sabe explicar”, o que pode indicar a ocorrência de dúvidas e incertezas perante a situação vivenciada. A palavra família aparece frequentemente ao longo das respostas, destacando a importância do núcleo familiar, seja como segurança, presença e/ou preocupação. Nas respostas, ficou demonstrado o quanto as crianças se sentem felizes na presença da família e o quanto se preocupam com a saúde e o bem-estar de seus familiares, quando relacionado ao risco de contaminação, como é possível identificar nas falas a seguir:
“A melhor coisa do confinamento são os amigos e a família.”
“O meu medo é minha família morrer.”
“O meu medo é pegar covid ou alguém da minha família.”
“Corona, não infecta a minha família.”
“O que me deixa triste é a distância e a saudade da minha família e amigos.”
A partir das respostas obtidas foi possível verificar a relação das crianças com a nova rotina, a falta do ambiente escolar e o descontentamento das crianças com a educação à distância. Relato este recorrente: “acabem com as aulas online!”. Na fala destes jovens ficou visível o papel da escola, educadores e a necessidade de se desenvolver e se adequar ao novo panorama tecnológico, e não replicar um modelo tradicional de forma virtual. As crianças estão cansadas e sentem falta da vida presencial na escola, seja em função da saudade dos amigos, como também da rotina escolar.
Outro fator retratado pelas crianças foi o excesso de atividades escolares remotas e tarefas online. Muitas crianças disseram não aguentar mais as aulas on-line, que estas não estão cumprindo o seu papel educacional, pois as crianças não estão assimilando os conteúdos. Da mesma forma que no trabalho de Carvalho, Gouveia e Fernandes (2022) , aqui foi questionado o papel das instituições de educação neste momento, que, mais do que instituições para entregar conteúdos e atividades, deveriam estar focadas em fortalecer o papel relacional, de proteção e cuidado com a infância.
“Cancelem as aulas online ninguém aguenta mais!”
“Voltar aulas aqui no Brasil urgente, pensar mais nas Crianças”.
“Estudos virtuais são fracos.”
Ficou claro que as crianças participantes estão atentas aos privilégios e angústias da população, se posicionando para as questões no cerne da política, mostrando sua voz, de acordo com o relato: “Essa pandemia é como um alívio para algumas pessoas e um estrangulamento para outras, seja pela injustiça, pelos desejos, pelas metas...” e “que o governo DEVE ajudar os cidadãos ao invés de dizer que é apenas uma "gripezinha”. Assim, demonstrando que as crianças e o jovens exercem a participação e o protagonismo, portanto, expressam suas opiniões e interesses sobre questões que envolvem a sociedade na qual estão inseridas (MARTÍNEZ MUÑOZ, 2019).
Este projeto trouxe um panorama da rotina de crianças em diferentes contextos, com sonhos, desejos, dificuldades, e principalmente realidades muito diferentes, comprovados por falas que vão desde “retornar as viagens à Disney” até “fico preocupado com a minha mãe que sai para trabalhar todos os dias”.
Por fim, trazemos algumas nuvens de palavras sobre alegrias tristezas das crianças, as nuvens ficaram muito parecidas, evidenciando que as relações sociais são a principal fonte de alegria para as crianças participantes e, a ausência, ou supressão dessas, são a principal fonte de tristeza.
Figura 1: Nuvem de palavras sobre alegrias durante o confinamento
https://drive.google.com/file/d/1EozKkaDsnO70J4aBV_57fKgYUMsHc_iI/view?usp=share_link
Elaborado por Marcela Pesci Peruzzo a partir das respostas discursivas do questionário com o uso da ferramenta Iramuteq
Figura 2: Nuvem de palavras sobre tristezas durante o confinamento
https://drive.google.com/file/d/1cGdqueBzaR3--39aG_qzlgp8GHJewqqg/view?usp=share_link
Elaborado por Marcela Pesci Peruzzo a partir das respostas discursivas do questionário com o uso da ferramenta Iramuteq
As alegrias destacaram as amizades, com a palavra “amigo” tendo centralidade, seguida da palavra “família”, bastante próxima. As análises das respostas discursivas também mostraram que os momentos de descontração das crianças durante o confinamento eram realizados de forma virtual, seja realizando uma videochamada; falando pelo celular com os amigos, utilizando o WhatsApp; ou mesmo, jogando jogos on-line. O vídeo game foi muito citado como mecanismo de distração pelas crianças.
Neste sentido, as alegrias estavam vinculadas a poder socializar de alguma forma, seja com as amizades mais próximas, ou familiares, e brincar. A família foi uma das menções mais recorrentes ao longo das respostas, evidenciando a importância da representação familiar, seja como segurança, presença e/ou preocupação. Nas respostas, ficou exposto o quanto as crianças se sentem felizes na presença da família e o quanto se preocupam com a família, quando relacionado ao risco de contaminação por Coronavírus.
Já ao se analisar a nuvem de palavras que retratam as principais tristezas das crianças durante o confinamento, a palavra que mais ressalta aos olhos também é a palavra “amigo”. Ou seja, enquanto a socialização é o principal motivo de alegria, a impossibilidade de socializar se torna o principal motivo para a tristeza. Como a família esteve presente na vida da maior parte das crianças durante o confinamento, não aparece na nuvem de tristezas de forma destacada.
Tendo apontado a impossibilidade de encontrar os amigos como a principal razão para as tristezas, as crianças revelam o quanto a escola tem um papel crucial no processo de socialização delas. Ir à escola significa encontrar com os amigos, brincar e estabelecer relações sociais mais sólidas, que vem a complementar as relações familiares e são muito importantes para os sentimentos das crianças.
Na nuvem de palavras da resposta das crianças para a pergunta: “Qual a pior coisa do confinamento para você?” aparece de forma recorrente o incômodo em não poder sair de casa e circular, junto à falta que faz ir para a escola.
Figura 3: Nuvem de palavras sobre a pior coisa do confinamento
https://drive.google.com/file/d/1PpDj2kjzkLrVv6xUIRLIFf9ht6oO4hWq/view?usp=share_link
Elaborado por Marcela Pesci Peruzzo a partir das respostas discursivas do questionário com o uso da ferramenta Iramuteq
A palavra “não” ganha destaque por vir compondo cenários de restrições, como: “não poder sair de casa”, “não ver meus amigos”, “não poder jogar bola na quadra”, etc. No entanto, é possível perceber destaque na palavra “escola”, que vem compondo frases como: “não poder ir à escola”, “não ir à escola”, “ficar sem ver meus amigos na escola”.
Percebe-se, com isso, a exaltação das amizades e a relevância do convívio social para as crianças e jovens possibilitado pela frequência na escola. Embora as tecnologias da informação tenham possibilitado o encontro mediado pela internet, a restrição física aos espaços, em especial o da escola, gera o sentimento de tristeza por reduzir as trocas relacionais.
As falas das crianças expressam sofrimentos e inseguranças, preocupações e medos, tal como o medo de perder membros da família ou ver pessoas próximas ser contaminadas pelo vírus. Falam da saudade que sentiram dos amigos, das brincadeiras em grupo, dos familiares que não podem ver, como avós e avôs e outros parentes. As famílias são colocadas, na visão delas, como fontes de apoio e suporte. As crianças dizem que estar em casa com suas famílias as ajudava a lidar com o medo e a se sentir relativamente seguras.
Também foi possível verificar o pedido de muitas crianças por políticas públicas eficientes no combate a esta pandemia, pedindo pela cura e pela retomada de suas atividades rotineiras. As crianças pesquisadas esperam poder realizar seus sonhos em um futuro próximo e declaram que o fim da pandemia é o passo inicial para retornar ao percurso para alcançá-los.
É fundamental observar práticas cuidadosas ao fazer pesquisa com crianças acerca de temas complexos, que podem gerar emoções e sentimentos no curso da sua participação. O conteúdo de suas falas e expressões não são dados prontos que as crianças entregam ou disponibilizam, mas sentidos próprios sobre o sofrimento e a angústia que experimentaram em suas histórias concretas.
Por meio de suas falas foi possível concluir que há impasses na maneira como o ensino à distância está sendo conduzido, como isso pode refletir em seu futuro e trazem importantes críticas ao modelo tradicional de ensino, agora replicado de forma virtual. Até a vacinação em massa como será este processo de aprendizagem? Quais os efeitos a longo prazo deste formato de ensino?
Esta pesquisa encontrou limites em seu alcance de uma diversidade de infâncias e crianças em diferentes condições de vida e acesso a direitos. Ainda que a maior parte das participantes tenha afirmado ter pleno acesso às tecnologias necessárias para estar presente nas aulas virtuais, há uma enorme brecha digital (MARTINEZ LOPEZ, 2020) nas condições de acesso que também constitui um elemento de vulnerabilidade, pois muitas crianças ainda se encontram sem equipamentos apropriados e conexão de internet disponível que lhes permita frequentar as aulas no ensino remoto.
As crianças têm muito a falar, mas suas vozes encontram a resistência para sua participação, sua inserção nos debates da sociedade. As vozes e saberes das crianças são fundamentais para entender como os processos sociais e históricos afetam a elas e a suas famílias de maneira particular, e para que avancemos na criação de espaços e oportunidades de participação, precisamos ampliar as condições de relação que estabelecemos com as crianças, e construamos possibilidades de encontro com os horizontes infantis, com a perspectiva da criança como experiência coletiva e relacional.
Acredita-se que este trabalho possa nortear futuras pesquisas sobre os reflexos causados pela pandemia na rotina de crianças e jovens, e a necessidade da escuta sensível para com estas crianças. Não só por demonstrarem inseguranças e medos frente a este panorama atual, mas por serem agentes protagonistas deste cenário, que possuem desejos, sonhos e preocupações com o futuro do território que vivem.
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Palabras clave:
Crianças; Pandemia; Covid 19; Infância