Resumen de la Ponencia:
O subdesenvolvimento e a dependência são elementos que perpassam a formação e a reprodução do capitalismo dos países de origem colonial, destacadamente os da América Latina. Nos constituímos intimamente contingenciados pelos ditames da expansão do capital mercantil, em meio ao processo de acumulação primitiva de capitais, e nos estruturamos para o atendimento de necessidades alheias aos povos nativos. É desta dinâmica que resultam, como elementos elucidativos de todo o tecido econômico e social destes países, a escravidão, monocultura, latifúndio, extrativismo, depredação ambiental e profunda desigualdade social. No caso brasileiro, bastante ilustrativo das particularidades latino-americanas, autores como Caio Prado Jr. e Celso Furtado formularam propostas em torno do desenvolvimento nacional que recaíam na adequação de toda e estrutura econômica nacional com vistas ao atendimento das necessidades da população brasileira e, concomitantemente, na industrialização e numa reordenação das estruturas de propriedade visando romper os laços com o passado colonial, suprimir os nexos de dependência externa e alterar o mapa de distribuição social interna. As mudanças que marcaram a transição dessas economias coloniais para economias formalmente independentes e nacionais foram incapazes, contudo, de extinguir a relevância econômica e política dos setores ligados ao extrativismo e monocultura latifundiária, ambos destinados aos mercados externos.Mais grave ainda, com a crise estrutural dos anos 1970 e o avanço do neoliberalismo, tais setores “arcaicos”, passaram a despontar como baluartes do desenvolvimento, ao mesmo tempo em que explicitam sua incapacidade de sanar os problemas nacionais e acirram as estruturas insuperadas que remontam ao período e ao sentido colonial. É o caso da mineração no Brasil, por exemplo, que se alastra e aprofunda devastando o meio ambiente, as cidades circunvizinhas e as vidas que a cercam. Tal setor não apenas opera de modo a comprometer as distintas formas de vida, mas, com o aporte do Estado (instituição de classe) e a aparência de sustentabilidade conseguem que os lucros e crimes ambientais caminhem de mãos dadas, em prol dos detentores deste capital, ao mesmo tempo em que reforçam a dependência externa e o subdesenvolvimento. Evidência do acima exposto, os crimes ambientais na atividade de mineração revelam atuação estatal frente às demandas que envolvem o rompimento de barragens e como elas são respondidas pelo aparelho judiciário. É necessário, portanto, a problemática da interação do modo de produção e reprodução capitalista com o Estado e o direito, não como algo causal, mas sim, como fruto de uma determinada concepção ideológica e jurídica que ignora a análise materialista das relações sociais e favorece exclusivamente a classe dominante. Além disso, as consequências desses crimes lançam luz sobre o destino do Brasil que, sem alterar significativamente sua estrutura produtiva e social, reforça os ideais burgueses e sua dominação, autocrática e contrarrevolucionária.
Introducción:
Para autores como Caio Prado Jr (1942), Celso Furtado (1959) e Florestan Fernandes (1976), dentre outros, o período colonial do Brasil não é uma simples fase histórica totalmente superada, mas representa a estruturação de uma economia e sociedade que marcam de forma profunda a constituição e a especificidade do capitalismo periférico. Países de origem colonial, como os latino-americanos, se constituem, segundo esses autores, como capitalismos dependentes e subdesenvolvidos, que reproduzem de forma mais acirrada e peculiar as mazelas típicas das relações capitalistas. Em outras palavras, são autores que buscam compreender a realidade nacional a partir do processo de formação histórica do país.
A criação da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) pela ONU, em 1948, traz à baila o debate sobre subdesenvolvimento de modo a escapar de uma visão etapista (ROSTOW, 1978) - e teleológica - da história dos países latino-americanos. Contrariando as concepções liberais de desenvolvimento, e a teoria das vantagens comparativas (RICARDIO, 1996), autores como Celso Furtado e Raúl Prebisch percebem o subdesenvolvimento como um problema estrutural, como uma forma específica de desenvolvimento, típica dos países periféricos, em correlação com o desenvolvimento dos países centrais, e que exigia a reformulação do pensamento econômico para ser compreendido.
Tais autores apontam, nesse momento, a existência de uma ruptura entre crescimento econômico e mudanças estruturais que viabilizassem uma melhoria de condições de vida para o grosso da população, isto é, os frutos da difusão do progresso técnico na periferia não levavam a uma homogeneização dos padrões de consumo, mas sim beneficiava apenas uma parcela reduzida da população (FURTADO, 1998). O subdesenvolvimento é visto para além da dimensão econômica, englobando aspectos políticos, cultuais, sociais, e estabelecendo íntima relação com a industrialização atrasada (FURTADO, 2009). Mais especificamente, a relação centro-periferia e a deterioração dos termos de troca no comércio internacional colocam a industrialização nacional, dirigida pelo Estado, na periferia, como uma necessidade histórica, uma mudança estrutural capaz de pôr fim, ou minimizar, as mazelas típicas dos países subdesenvolvidos, como a profunda desigualdade social, o restrito mercado interno e a vulnerabilidade e dependência externas (PREBISCH, 2000; CEPAL, 2000).
A concepção cepalina acerca do subdesenvolvimento, bem como a influência teórica e posteriormente política de Furtado, vão subsidiar os debates que permitiram, a partir das condições dadas naquela quadra histórica, um processo de industrialização sob coordenação estatal no Brasil. Entre os anos 1930 e 1980 o Brasil vai dotar-se de um parque industrial amplo e diversificado, mudando e complexificando a estrutura produtiva do país - que passa a voltar-se mais para o mercado interno - e sua pauta de exportações, mais centrada em manufaturados (SAMPAIO, 2017; PERPETUA; JUNIOR; GARVEY, 2022).
A crise estrutural do capital dos anos 1970 e o espraiamento das políticas neoliberais, contudo, vão fazer com que o Brasil adentre um processo de desindustrialização negativa, com perda de importância do setor industrial tanto no PIB quanto no emprego, em relação ao setor de serviços e bens primários. Ademais, assiste-se, juntamente a isso, um processo de reprimarização da pauta de exportações, invocando o latifúndio monocultor e o extrativismo voltado para fora como eixo central da economia nacional (SALAMA, 2022; OREIRO; FEIJÓ, 2010). Ou seja, dos anos 1980 em diante há uma mudança, quiçá uma inversão, do que a intelectualidade brasileira via como meio de superação do subdesenvolvimento e da dependência, voltando-se ao setor primário e ao extrativismo, estruturados de modo similar ao período colonial, como baluartes do desenvolvimento, num processo complexo de reversão neocolonial (SAMPAIO JR., 2007).
Em 2020, os produtos primários representaram mais de metades das exportações brasileiras, sendo que só os minerais abarcaram 10% do total exportado (SALAMA, 2022). Entre os anos 2000 e 2019, a exportação de minérios de ferro passou de aproximadamente 157 para 351 milhões de toneladas (PERPETUA; JUNIOR; GARVEY, 2022), reforçando um setor cada vez mais dominado por empresas estrangeiras e que se ancora na depredação ambiental.
Destarte, no Brasil têm ocorrido com certa frequência, crimes ambientais oriundos da atividade de mineração. Para alguns autores, como Reis e Santos (2016), a ocorrência de crimes envolvendo o setor de mineração reflete o problema da relação entre o poder público e o interesse econômico privado. É o que pode ser observado na atuação estatal frente às demandas que envolvem o rompimento de barragens e como elas são respondidas pelo aparelho jurídico estatal.
Há alguns dilemas envolvendo o processamento judicial de conflitos ambientais, tendo em vista o cenário de estratificação social e os distintos interesses nas demandas de “defesa do meio ambiente” que adquirem contextos específicos de disputas. No plano macrossociológico, um dos problemas clássicos relacionados às interseções entre direito e sociedade refere-se aos processos de relativa autonomização da esfera legal em relação ao mundo social e político (MACIEL, 2001). E, diante das reformas jurídico-institucionais, pode-se observar a intensificação do papel do poder Judiciário como instituição legítima para decidir conflitos da sociedade e do Estado, bem como entre os poderes do próprio Estado. Dotado de autonomia e independência, a expansão das atribuições do poder Judiciário correspondeu à constitucionalização de pressupostos normativos para a ampliação do “acesso à justiça”. Essas formas provocaram modificações diversas nos sistemas jurídicos, fornecendo uma série de instrumentos formal-legais de conciliação para a produção da “efetividade” dos direitos de cidadania (MACIEL, 2001).
Contudo, o que se observa desses instrumentos conciliatórios é o protagonismo das mineradoras nas diretrizes de reparação dos danos causados por elas mesmas, baseadas no automonitoramento, mesmo princípio que permitiu o afrouxamento no processo de licenciamento, com parâmetros ditados pelas próprias empresas a partir do Plano de Segurança de Barragens (PNSB) (BRASIL, 2010).
A partir dos elementos apontados acima, alguns questionamentos orientam o presente trabalho, no sentido de indagações impulsionadoras do esforço de investigação: a conivência estatal é algo fortuito? Ou seja, um mero problema de gestão pública? Ou não? Esta prerrogativa não se conecta com a atual concepção ideológica burguesa, que nada mais é que a reprodução da dominação em sua face consensual, para garantir a apresentação dos interesses de classes como universais, tal qual expressa o apoio à lógica idealista normativa? A relevância do setor minerador não se liga a uma concepção de desenvolvimento que contraria aquele desenvolvido pela Cepal? Qual a ligação com o período colonial? Quais as implicações da ampliação do setor primário-exportador e extrativista como bases da economia nacional?
Desarrollo:
A colonização portuguesa nas terras americanas ultrapassou os limites da antiga feitoria e engendrou a organização da produção, de uma vida material e social que viria conformar uma sociedade complexa, os fundamentos de uma nova nacionalidade (VIEIRA, 2004). Ou seja, o período colonial é responsável por fomentar uma estrutura que marcará indelevelmente as feições do Brasil. “Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo.” (PRADO JR., 1942, p. 19).
No caso da colonização brasileira, o que está por trás do empreendimento português em terras americanas é a expansão marítima dos países da Europa depois do século XV, isto é, o desenvolvimento do comércio continental. É a imensa empresa comercial europeia que determinará a exploração – e aspectos centrais da formação – do Brasil. Ao se perceber os lucros comerciais como alvo de interesse, e não o povoamento compreende-se o que se denominou célula colonial: latifúndio, monocultura e trabalho escravo. Essa estrutura produtiva, voltada para atender interesses estrangeiros e sem qualquer vínculo com o território brasileiro, se constitui puramente para fins comerciais; é o comércio europeu que ditará a economia e sociedade coloniais (PRADO JR., 1942).
É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. (...) Esse início, cujo caráter se manterá dominante através dos três séculos que vão até o momento em que ora abordamos a história brasileira, se gravará profunda e totalmente nas feições e na vida do país. (...) O sentido da evolução brasileira, que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização (PRADO JR., 1942, p. 32).
Portanto, o que Portugal faz é encontrar uma forma de utilização econômica das terras americanas, o que se dá com a exploração do açúcar, metais preciosos, café, dentre outros. E isso ocorria em ciclos que grosso modo mantinham sempre a mesma estrutura de produção, sem desenvolvimento do progresso técnico e do mercado interno, já que o sentido era externo e havia grande disponibilidade de terras e trabalho, o que permitia a exploração extensiva e predatória (FURTADO, 1959).
Isso posto, fica mais fácil analisar as raízes do subdesenvolvimento e da dependência externa atadas à formação nacional a partir de uma colônia de exploração. Mesmo a independência e o fim do período colonial foram incapazes de transformar a estrutura econômica e social do país, de dotar de autonomia política e econômica o Brasil (FURTADO, 1959). Pode-se dizer, inclusive, que a independência foi um expediente de superprivilegiamento e mandonismo com verniz de liberalismo: constituiu-se um Estado sempre pronto para defender os interesses da lavoura e transferir-lhe renda em qualquer momento que demandasse (FERNANDES, 1976).
O setor primário-exportador, portanto, é a base sobre a qual se constitui o Brasil colônia e que, mesmo após a independência, mantém-se com grande econômico e, consequentemente, politico no país. Algo que pode ser visto desde as políticas de valorização do café até os interesses envolvidos na proclamação da República (FURTADO, 1959). Reproduz-se assim uma divisão internacional do trabalho que reitera o papel dos países centrais e periféricos, bem como, a profunda desigualdade social e dependência externa que marcam os últimos. Tal cenário é que estimulou e possibilitou pensar a realidade brasileira e latinoamericana sob uma nova perspectiva, a teoria do subdesenvolvimento, sendo este um fruto da civilização industrial e da difusão desigual do progresso técnico, não uma etapa rumo à industrialização, e que tem como foco de análise “(...) as malformações sociais engendradas nesse processo de difusão.” (FURTADO, 1994, p. 37).
Como explicar a persistência de nosso subdesenvolvimento se somos uma das economias que mais cresceram no correr do último meio século? Observando a realidade de outro ângulo: por que o assinalado crescimento da riqueza nacional somente beneficia uma parcela reduzida da população? A reflexão sobre esse problema levou-me a formular o que chamei de teoria do subdesenvolvimento. A conformação social dos países que qualificamos de subdesenvolvidos resultaria da forma particular que neles assumiu a difusão do progresso tecnológico que moldou a civilização contemporânea (FURTADO, 1998, p. 58).
A apropriação externa e por grupos minoritários do excedente social produzido internamente, é a marca dos países periféricos desde o período colonial. E isso tem implicações sobre as estruturas de poder, o crescimento econômico e a forma como é utilizado tal excedente, o produto social Assim é que a teoria do subdesenvolvimento embasou o nacional-desenvolvimentismo, período em que a industrialização brasileira em direção ao setor de bens de capital era vista como sendo capaz de alterar a estrutura econômica do país, bem como o papel na divisão internacional do trabalho, ampliando o mercado interno, o excedente produzido, o emprego, reduzindo a vulnerabilidade externa e desigualdade social interna.
Face às mudanças pelas quais passam o capitalismo internacional em meados dos anos 1950, com reverberações sobre a industrialização periférica, como o papel exercido pelos investimentos diretos estrangeiros, o próprio Furtado (1973; 1974) percebe os limites da industrialização para a superação do subdesenvolvimento. Contudo, o debate que ora nos ocupa não é esse. Conforme já apontado, de 1980 em diante o Brasil assiste a um processo de desindustrialização negativa e reprimarização de sua economia e pauta de exportações. Ou seja, cada vez mais o setor primário-exportador baseado no latifúndio monocultor passa a ser a base sobre a qual se assenta a economia nacional. E mais grave ainda, contrariando todo o aparato teórico que precede o atual momento e que se forjou para pensar o subdesenvolvimento, a dependência e a superação das mazelas brasileiras, amplia-se a ideia de que há a possibilidade de se aliar tal economia a um processo de desenvolvimento econômico. Os limites de tal pensamento podem ser vistos, a título de exemplo, no setor da mineração.
No período de 2003 a 2013 houve um salto nas importações globais de minério, e apenas cinco países foram responsáveis por dois terços dessas exportações. Dentre eles o Brasil, se destacando em segundo lugar com 14,3% das exportações mundiais de minério de ferro, atrás apenas da Austrália (ITC, 2015). De acordo com o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), o setor é responsável por 5% do PIB do país e, no balanço realizado em 2020, mostra que foram recolhidos R$ 66,2 bilhões em encargos tributários, além de R$ 6,08 bilhões da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), totalizando R$ 72,2 bilhões. O faturamento do setor aumentou 36,2% do ano de 2019 para 2020 (NOGUEIRA, 2021).
Não por coincidência, desde o ano 2000 o Brasil tem visto um rompimento de barragem de rejeitos minerários a cada dois anos, predominantemente no estado de Minas Gerais (ALVES, 2015) – localidade marcada pela predominância deste setor e pelas inúmeras barragens com alto risco de rompimento. Segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), pelo menos 50 barragens de rejeitos de mineração são consideradas de alto risco de rompimento no estado de Minas Gerais. Este órgão, responsável pelo monitoramento e fiscalização das barragens, atua com apenas um terço da equipe necessária, demonstrando a impossibilidade de se realizar suas incumbências. Ademais, no ano de 2020 foram contabilizadas 22 barragens do mesmo estado que se encontram interditadas. “Das barragens classificadas com alto potencial associado, no período de 2012 a 2015, de 185 estruturas dessa categoria no país, apenas 52% foram fiscalizadas” (SILVA, 2019, p. 450). Tal fato coloca as cidades mineiras em constante alerta face aos riscos iminentes de destruição.
A forma como as mineradoras executam suas atividades e lidam com os crimes delas decorrentes, e a forma como o Estado as recepciona, fiscaliza e pune, levanta um debate sobre o entrelaçamento da iniciativa privada com o setor público, não como motores do desenvolvimento nacional, mas sim como garantidores em última instância dos mecanismos que reproduzem a dependência e o subdesenvolvimento. Isto é, sob o lema da modernização e crescimento, o passado reproduz-se irrefreável no presente, obstaculizando os instrumentos e fins de mudanças significativas em favor do grosso da população brasileira e do país.
Contemporaneamente, os esforços estão condicionados à simplificação e celeridade dos procedimentos judiciais, numa Justiça baseada na conciliação. O Ministério Público (MP) – instituição estatal de direito público que, em tese, é responsável pela defesa de direitos dos cidadãos e dos interesses da sociedade – apresenta-se em um processo peculiar de “democratização” do acesso à Justiça. Estes instrumentos judiciais significam dotar os membros do MP de legitimidade para desempenhar o controle abstrato das normas e a tutela de interesses difusos e coletivos (BRASIL, 1988). Como “advogados da sociedade”, ao MP incumbe, portanto, a observância dos interesses de cidadãos expostos à degradação do meio ambiente.
Isto porque a partir do ponto de vista jurídico-normativo, o meio ambiente é considerado como interesse difuso e, via ação civil pública – procedimento previsto na Lei 7.347 de 1985 –, permite que o autor da ação judicial (instituição estatal competente) seja o representante da coletividade e não necessariamente o titular do interesse tutelado, baseado na noção de legitimidade extraordinária que possibilita a alguém, em nome próprio, defender interesse alheio (MANCUSO, 1994).
Entretanto, embora o MP tenha legitimidade para representar os atingidos pelos crimes ambientais, restou evidente a saída estratégica do Estado em transferir às mineradoras responsáveis o poder de controle, mitigação, fiscalização e reparação, quando ocorreu o rompimento das barragens e Fundão (Mariana-MG) e do Córrego do Feijão (Brumadinho-MG), a partir de acordos e Termos de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC) que favorecem os interesses econômicos privados, sob o mote de amenizar suas insuficiências.
Esses procedimentos colocam em evidência o fato de que as decisões tomadas são reflexos não apenas da estrutura institucional ou da interação de interesses, mas também “decisões intimamente vinculadas à organização das relações de poder derivadas da escolha e uso de certos instrumentos, que estão longe de possuírem uma neutralidade axiológica [...] enquanto um tipo particular de instituição que estrutura ou influenciam a política pública” (BUSSINGUER; SILVA, 2019, p. 2).
Nos casos em comento, foi estabelecido pela Ação Civil Pública (ACP) da União por meio do TTAC – assinado em 02 de março de 2016 –, que constitui um mecanismo de política pública para orientar as relações entre os entes estatais e as empresas mineradoras envolvidas. Diante da posição contrária do Ministério Público Federal (MPF) e Estadual de Minas Gerais (MPMG), cada órgão ajuizou as ações pertinentes para a reparação dos danos e dos interesses da coletividade (GAZINELLI, 2019). “Em 11 de julho de 2016, uma decisão da 12ª Vara Federal da 1ª Região da Justiça Federal, [...] excluiu a pedido da Advocacia Geral da União (AGU), vários órgãos públicos de se manifestarem na ACP ajuizada pelo MPF” (BUSSINGUER; SILVA, 2019, p. 5). Contudo, embora tal entendimento de que todos os direitos que foram lesados pelo crime estariam contemplados na visão universal do TTAC, não foi este o entendimento expresso pela sociedade civil.
Sobre o TTAC, apesar de não ter sido homologado pelo MPF durante os anos de 2016 e 2017, foi implementado com a criação de instituições/fundações para acompanhar e fiscalizar a execução dos programas de reparação. Depois de muitas negociações durante o ano de 2017, foram criados diversos Termos Aditivos que não modificaram essencialmente o acordo firmado, porém, continha algumas reivindicações da comunidade (GAZINELLI, 2019).
Mesmo o MPF impugnando o TTAC, por considera-lo favorável às empresas quando comparado aos indivíduos atingidos – devido à ausência de participação das comunidades afetadas – tal instrumento feriu os princípios básicos democráticos e do devido processo legal coletivo. Ou seja, os instrumentos legais são “ajustados” conforme interesses dominantes, confirmando a tese da liberdade formal do sujeito de direito.
Resta claro, portanto, que desde a era dos descobrimentos - momento importante da gestação e objetivação do modo de produção capitalista – sempre tendeu a pairar, no pensamento dominante, certa naturalização das discrepâncias econômicas e sociais que demarcam os países que comandam o processo de acumulação de capital e os países periféricos ao redor do mundo. A despeito dessa ideologia importada do centro, de que os países periféricos poderiam galgar uma “escada de desenvolvimento” ao promover o crescimento econômico nos setores mais produtivos, para Furtado (1974) isto não passa de um mito.
Essa visão pré-furtadiana de desenvolvimento é retomada com cada vez mais intensidade na contemporaneidade, numa exaltação dos setores que remontam à matriz colonial e à dependência, bem como à vulnerabilidade externa como panaceia para lidar com os problemas nacionais. Os números relativos ao lucro e arrecadação, elevam a atividade da mineração como suposta alavanca de desenvolvimento nacional, enquanto se mantém o país refém dos interesses estrangeiros e das flutuações conjunturais de preços.
Conclusiones:
O presente artigo objetivou mostrar que a colonização brasileira ultrapassa um fato restrito a passado longínquo, mas é a base sobre a qual ocorre o processo de formação nacional, isto é, de uma economia e sociedade que nascem para atender demandas externas. Esse é o sentido da colonização brasileira, que marcará profundamente as feições do país e contribuirá para a constituição do mesmo enquanto um capitalismo dependente e subdesenvolvido.
A Cepal teve papel fundamental ao pensar a realidade da periferia do capitalismo sob uma nova ótica, escapando seja de uma teleologia etapista positiva de desenvolvimento, seja de um fatalismo em relação a tais problemas. Ao prospectar a industrialização guiada pelo Estado como meio de sanar as mazelas típicas da realidade dos países subdesenvolvidos, abre-se não apenas a teorização acerca da realidade dessas nações, mas também a tentativa de meios de superar as estruturas que nos ligam ao passado e ao sentido da colonização.
Contudo, de 1980 em diante o que se vê é um caminho em sentido oposto. A retomada de preceitos (neo)liberais, a desindustrialização negativa e a ampliação dos setores típicos e de moldes semelhantes à economia colonial, como os mais relevantes para a economia nacional, como é o caso da mineração.
É possível observar ainda a relação da economia política com as ciências sociais, no que tange ao problema da interação do Estado e do direito com o capitalismo dependente e subdesenvolvido. Justamente porque, em certa medida, há uma crença de que o direito é capaz de dirimir as divergências de luta de classes, para que os atingidos por rompimento de barragens – fruto da expansão da economia mineradora extrativista e predatória destinada às exportações -, por exemplo, possam alcançar suas reparações civis legais.
A contradição vigente, contudo, que se relaciona com tal afirmativa, é o fato de que o trâmite para se atingir as reparações, via sistema de justiça burguês, se dá de forma desigual e genérica, de caráter de relações entre sujeitos individualizados, livres e iguais, com sua mais perfeita tradução na figura do contrato, do “acordo de vontades independentes”.
Dada a importância que o setor da mineração possui para a economia brasileira, bem como a exaltação e estímulo que contemporaneamente se faz pelo crescimento dos setores arcaicos como saída para os problemas nacionais, revela-se que o aporte teórico e político, dominantes na reflexão sobre o Estado e o direito, andam de mãos dadas com a reprodução do capitalismo em prol do bem estar de uma minoria.
Percebe-se, ainda, que há completa omissão estatal materializada nos procedimentos jurídicos conciliatórios (TTAC), contrato este em que se criam Fundações designadas como gestoras de ações reparatórias com o objetivo, em tese, de suprir as deficiências do Estado. Tais acordos, meramente técnicos a priori, supostamente nutridos de mecanismos “ideais” para alcançar o consenso e o bem-comum, ignoram a capacidade assimétrica dos grupos sociais envolvidos e o contexto de desigualdade socioeconômica no interior dos quais, interesses e conflitos, ascendem às arenas públicas como “conflitos ambientais”.
Ademais, ao lidar de forma mais detida com o modo de operação das mineradoras, os riscos envolvidos e os impactos ambientais e sociais oriundos da extração de minério de ferro e a forma de reparação dos atingidos, abre-se caminho para apreender as relações do Estado e da política com os interesses da iniciativa privada nacional, estrangeira e das elites que se apropriam dos frutos de uma economia com nexos coloniais e uma sociedade extremamente desigual.
As transformações no funcionamento interno da estrutura jurídico-política dos Estados dizem respeito às articulações e mudanças historicamente atravessadas pelo capitalismo até os dias atuais. A importância de analisar mais detidamente a função específica do Estado capitalista, e também as particularidades nacionais, quanto à temática da exploração na atividade de mineração, é a razão pela qual este trabalho se dedicou às questões teóricas acerca da autonomia relativa do Estado frente à estrutura econômica e às classes dominantes, bem como o papel que essa autonomia desempenha na conciliação de conflitos. E tais temas se atam a uma apologia ao “desenvolvimento” – sem qualificá-lo e vinculando-o novamente a mero crescimento econômico – via exportação de bens primários, extrativismo e depredação ambiental. Em outras palavras, a economia é tratada de forma descolada das relações sociais, da política, do poder, da desigualdade interna, da dependência externa, da cultura e, finalmente, da história; o que reduz consideravelmente as possibilidades de pensar os problemas nacionais e a capacidade de vislumbrar um futuro, senão de forma metafisicamente teleológica e/ou negativamente fatalista.
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VIEIRA, Carlos Alberto Cordovano. “Interpretações da Colônia: leitura do debate brasileira de inspiração marxista”. Dissertação de Mestrado, Campinas, IE-UNICAMP, 2004.
Palabras clave:
Sentido da Colonização; Desenvolvimento; Mineração; Estado.