Brasil -
antonio.angelo@usp.br
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Resumen de la Ponencia:
O capitalismo, na sua etapa de dominância do capital fictício, acentuado pelas dimensões de sua crise pandêmica, econômica e ecológica tem intensificado a superexploração da força de trabalho no mundo e, particularmente, no Brasil. Nessa perspectiva, o presente artigo tem como objetivo analisar as manifestações da superexploração da força de trabalho entre trabalhadores(as) da saúde num contexto de pandemia de Covid-19 no Brasil. O artigo está estruturado em três partes. A primeira discute os mecanismos de superexploração da força de trabalho. A segunda discorre acerca das manifestações da superexploração entre os/as trabalhadores(as) da saúde, nos últimos anos. A terceira parte apresenta dados de como tem se dado a superexploração no cenário atual da pandemia de Covid-19 no Brasil. Atualmente, num cenário de pandemia de Covid-19 observa-se um percentual significativo de profissionais da saúde com sobrecarga de trabalho, com jornadas para além das 40 horas semanais, alguns tendo que recorrer a mais de um vínculo de trabalho para poder sobreviver. Tais manifestações representam as péssimas condições de trabalho dessa categoria de trabalhadores, além de contribuir para o adoecimento e o elevado número de acidentes de trabalho.
Introducción:
Ao analisar concretamente a história do capitalismo do ponto de vista da sua totalidade é possível identificar a existência de elementos constitutivos desse sistema. Entre tais elementos estão as formas de exploração da força de trabalho, que determinam as relações de produção na sociedade moderna. Para que se mantenham os padrões globais de acumulação, no modo de produção capitalista, a produção da riqueza social implica, necessariamente, a ampliação do grau de superexploração da força de trabalho.
A classe trabalhadora vivencia desde sempre formas intensas de exploração da força de trabalho e de precarização ilimitada, no Brasil não é diferente. O capitalismo na sua atual fase (com a predominância do capital fictício) e sua crise na inter-relação com as crises pandêmica, econômica de “longa depressão” e a ecológica (Mendes, 2022) tem intensificado uma massiva desigualdade de classe, raça, etnia e gênero na sociedade como um todo e demonstrado a incapacidade do sistema de metabolismo antissocial do capital de suprir as necessidades básicas da humanidade.
Para almejarmos compreender como tem se dado a superexploração da força de trabalho entre trabalhadores(as) da saúde, no atual cenário de crise do capitalismo e de pandemia de Covid-19, se faz necessário empreender uma análise da estrutura e dinâmica do capitalismo dependente brasileiro, que permeie a sua consolidação, o seu desenvolvimento e as condições que determinam suas crises. Nesta perspectiva, o objetivo deste artigo é analisar as manifestações da superexploração da força de trabalho entre trabalhadores(as) da saúde num contexto de pandemia de Covid-19 no Brasil.
Deste modo, o artigo se ampara em pesquisa bibliográfica tendo como unidade de análise os trabalhadores da saúde. Para tanto, o artigo encontra-se dividido em quatro seções. Na primeira, apresentamos uma discussão sobre as dimensões do valor da força de trabalho. Na segunda, discorremos sobre os mecanismos de superexploração da força de trabalho. Na terceira, expomos as manifestações da superexploração entre os/as trabalhadores(as) da saúde, nos últimos anos. Por fim, na quarta seção apresentamos como tem se dado a superexploração no cenário atual da pandemia de Covid-19, que aprofundou a crise contemporânea do capitalismo, intensificando a exploração, a miséria e o sofrimento da classe trabalhadora brasileira, e evidenciamos as repercussões da superexploração nas condições de vida e saúde dos trabalhadores da saúde.
Desarrollo:
1. Os mecanismos de superexploração da força de trabalho
É possível identificar quatro mecanismos principais de superexploração da força de trabalho (que atuam de forma isolada ou combinada) que possibilitam a continuidade do processo de acumulação na periferia, são eles: a) o prolongamento da jornada de trabalho; b) o aumento da intensidade do trabalho; c) a apropriação, por parte do capitalista, de parcela do fundo de consumo dos (as) trabalhadores (as) - então convertido em fundo de acumulação capitalista -, sendo que esse mecanismo atua no sentido de criar as condições pelas quais o capital viola o valor da força de trabalho; e d) a ampliação do valor da força de trabalho sem que seja pago o montante necessário para tal (Amaral; Carcanholo, 2012).
Para que possamos entender o mecanismo de prolongamento da jornada de trabalho, analisaremos, inicialmente, as formas de existência de mais-valia do ponto de vista da totalidade e da reprodução. Afinal, é “a partir do conceito de mais-valia que se chega ao conceito de exploração, de exploração do trabalho pelo capital”, afirma Carcanholo e Sabadini (2011, p. 131).
O primeiro passo significa entender que o dinheiro recebido pelo trabalhador na forma de salário, é um título (um papel ou papéis) que lhe dá direito para comprar, para se apropriar de um conjunto limitado de bens. Tais bens foram produzidos anteriormente por outros (as) trabalhadores (as), ou seja, os próprios trabalhadores (as) produziram antes o que vão se apropriar agora. Importante ter em mente que os trabalhadores só se apropriam de uma parte do produto do seu trabalho (Carcanholo; Sabadini, 2011).
Logo, é presumível que o dinheiro que inicialmente saiu do bolso dos capitalistas, no fim das contas volta para eles, uma vez que os/as trabalhadores (as) vão gastar seus salários comprando bens essenciais. Isso significa que os capitalistas se apropriam da mais-valia sem dar nada em troca; só permitem que os trabalhadores se apropriem de parte de algo que já produziram (Carcanholo; Sabadini, 2011).
Assim, para Carcanholo e Sabadini:
a relação salarial (que produz mais-valia) é e não é ao mesmo tempo uma relação de exploração. Do ponto de vista da essência, é exploração; na aparência, pode ou não ser exploração. Com certeza, mesmo na aparência, será exploração quando os salários são baixos e/ou quando as condições de trabalho são insatisfatórias para a reprodução dos trabalhadores (Carcanholo; Sabadini, 2011, p. 136).
Mais-valia é o valor produzido pelo trabalho que supera o valor da força de trabalho, ela é um produto da exploração do trabalho (Marx, 2013). A mais-valia absoluta, por sua vez, é a forma que o capital utiliza para incrementar a massa de mais-valia produzida pelos (as) trabalhadores (as). Por exemplo, no prolongamento da jornada de trabalho, mantém-se constante a parte que é destinada ao pagamento da força de trabalho sob a forma de salário.
Numa jornada de trabalho de 8 horas diárias, por exemplo, suponhamos que 2 horas sejam destinadas à reprodução da força de trabalho, e as demais 6 horas caracterizem a mais-valia que é apropriada pelo capitalista. Se a jornada é ampliada para 10 horas, então está se produzindo um excedente. Tal prolongamento da jornada de trabalho sem alterar o tempo de trabalho necessário (o salário), ou mesmo aumentando-o, exigindo, portanto, maior esforço dos (as) trabalhadores (as). Aqui está uma das formas de se alcançar a mais-valia absoluta.
O segundo mecanismo consiste na intensificação da jornada de trabalho. “Dada uma quantidade determinada de horas de trabalho por dia, a intensificação consiste em elevar o ritmo de trabalho dos trabalhadores, de maneira que se produza um volume maior de valores de uso, no mesmo tempo”, nos lembra Carcanholo e Sabadini (2011, p. 138).
A produção da mais-valia absoluta, por um lado, implica um esforço adicional do trabalhador, por outro, a decisão de ampliar ou intensificar a jornada em certa magnitude tende a ser tomada pelo capitalista. “O fato de que o salário do trabalhador seja elevado em certa medida não impede que a massa de mais-valia produzida cresça com a mais-valia absoluta”, acrescenta Carcanholo e Sabadini (2011, p. 138).
Outra maneira que o capital encontra para aumentar a massa de mais-valia sem que para isso tenha que ampliar a jornada de trabalho para além dos limites estabelecidos e nem intensificá-la, é diminuindo a parte da jornada de trabalho que é paga ao trabalhador sob a forma de salário, aumentando consequentemente a parte do trabalho excedente. A massa de mais-valia produzida através desse mecanismo é denominada mais-valia relativa (Marx, 2013).
Nesse processo o trabalhador não recebe necessariamente um salário real menor, pois continuará a receber uma remuneração que lhe permite adquirir os meios de subsistência básicos para a reprodução. A redução do valor da cesta de consumo dos (as) trabalhadores (as), permitindo que estes a comprem (mesmo tendo seu tempo de trabalho socialmente necessário reduzido) só é possível com o aumento da força produtiva do trabalho (produtividade) nos setores que produzem os bens de consumo dos trabalhadores ou os insumos e os meios de produção necessários.
Existem outros métodos que, aplicados de maneira conjunta com os anteriores, contribuem para que os capitalistas aumentem o volume total de lucro obtido do trabalho: diminuição do salário real e a remuneração abaixo do mínimo necessário à subsistência do trabalhador. Logo, o pagamento de um salário insuficiente para que trabalhadores (as) e suas famílias consigam reproduzir adequadamente a sua força de trabalho, ou seja, uma remuneração abaixo do valor da força de trabalho correspondente a superexploração da força de trabalho.
2. Superexploração e saúde
A “saúde” no modo de produção capitalista é uma mercadoria (meio de subsistência) que contribui para a reprodução da força de trabalho, ou seja, o valor (ou magnitude do valor) da mercadoria saúde se incorpora ao valor da força de trabalho.
Se o trabalhador é privado de “saúde”, ele acaba sendo privado de uma condição fundamental para sua reprodução e isso diminui a sua vida útil, consequentemente diminuindo o valor total da força de trabalho, já que este é mensurado com base no tempo total de vida útil do trabalhador ou no total de dias em que o possuidor da força de trabalho vende sua mercadoria no mercado, em boas condições.
Em nota técnica publicada em setembro de 2019, intitulada “Reforma trabalhista e os trabalhadores da saúde”, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) argumenta que existem algumas especificidades relacionadas ao mundo do trabalho na saúde, que precisam ser consideradas ao analisar o mercado de trabalho neste setor específico. Em primeiro lugar, verifica-se que o capital constante no setor saúde não é necessariamente substitutivo da força de trabalho. A partir desta constatação decorrem duas considerações: (1) sendo o trabalho na saúde uma atividade-fim (diferente de uma atividade desenvolvida no setor industrial, por exemplo, que é uma atividade-meio), os investimentos no setor saúde (ou seja, a destinação de maiores gastos em capital constante, desta forma, elevando a produtividade) são geradores de novos postos de trabalho, ao contrário de outros setores da economia, em que o aumento da massa de capital constante em relação a força de trabalho (capital variável) leva à formação de um exército industrial de reserva (EIR); e (2) o aumento de produtividade no setor saúde é mais limitado (DIEESE, 2019).
A mesma nota técnica defende ainda que as atividades na área da saúde são suscetíveis a ‘falhas de mercado’, dada a elevada incerteza quanto à qualidade do produto ou serviço prestado, já que, ao contrário de outros produtos e setores de atividade, não pode ser testado antes de sua aquisição. Ao se acrescentar mais à frente que “diante disto, a melhor maneira de se garantir a qualidade do serviço prestado não é tão somente o padrão tecnológico, mas, sobretudo, o processo de trabalho que deveria ser a base de orientação para ações de gestão do trabalho em saúde” (DIEESE, 2019, p. 5).
O Anuário dos Trabalhadores da Saúde, publicado pelo DIEESE em 2018, apresenta uma série de indicadores da situação de trabalho dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), no período de 2012 a 2016, que permitem analisar, em alguma medida, dados (por exemplo: vínculos de trabalho; estabilidade no emprego; jornada de trabalho etc.) sobre a força de trabalho na saúde naqueles anos e constatar (ainda que de maneira superficial) o grau de exploração com os quais trabalhadores e trabalhadoras da saúde estão submetidos no Brasil (DIEESE, 2018).
Por exemplo, entre os anos de 2012-2016 observa-se uma variação percentual positiva para os vínculos CLT (16%) e estatutários (5%) e negativa para outros vínculos (-2%). Contudo, ao segregar o período 2012-2016 em dois outros períodos, 2012-2014 e 2014-2016, observa-se para o segundo período uma variação percentual negativa nos vínculos estatutários (-0,7%) e outros (-14,1%). Para o DIESSE esta é uma constatação que revela como tem crescido no SUS as ocupações cuja natureza do vínculo é mais flexível e menos protegida. “Tanto no governo federal como nos estados e municípios, cresceram as contratações por CLT, cooperativas de trabalho, além da terceirização e dos contratos com organizações sociais”, destaca a nota técnica (DIEESE, 2019, p. 9).
Outra característica de grande expressão é a rotatividade do trabalho nos estabelecimentos vinculados ao SUS. O DIEESE estima que em 2016, 20% dos contratos de trabalho ativos foram encerrados no mesmo ano. Ainda neste ano, a taxa de rotatividade global para estatutários foi de 11,1%, para celetistas foi de 29,5% e, para os demais tipos de contrato foi de 83,3%. Técnicos (as) e auxiliares de enfermagem estiveram entre as categorias com o maior número (32,6% do total, ou 872 mil vínculos, sendo que, destes, 65,7% eram celetistas e 32,7% estatutários) de vínculos profissionais no SUS, em 2016. Em segundo, terceiro e quarto lugares estão os trabalhadores (as) nos serviços de promoção e apoio à saúde (12,9% do total, ou 345 mil vínculos, sendo 69,7% estatutários e 26,5% celetistas), as/os enfermeiras(os) (10,4% do total, ou 279 mil vínculos, sendo 60,3% celetistas) e as/os médicas(os) clínicas(os) (8,7% do total, ou 234 mil vínculos), respectivamente (DIEESE, 2019).
Os vínculos adicionais são outra modalidade de prolongamento da jornada de trabalho que se tornou usual no âmbito da saúde, na qual, muitas vezes, a uma jornada diária de 8 horas em algum estabelecimento público ou privado, é agregado horas extras (seja naquele mesmo estabelecimento ou em outro) com o intuito de complementar os rendimentos, uma vez que são baixas as remunerações pagas e limitadas às políticas de valorização da carreira. O DIEESE constatou um aumento, entre 1998-2008, no número de pessoas ocupadas, em algum trabalho principal, mas que mantinham trabalho adicional, em cinco (Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto Alegre, Recife e Salvador) das seis regiões analisadas, a exceção foi a região de São Paulo, cuja variação negativa foi de 5,9% (DIEESE, 2009).
Ao se analisar um período mais recente, o mesmo DIEESE encontrou que quase um quarto dos (as) trabalhadores (as) do SUS tem mais de um vínculo de trabalho, ou seja, trabalhavam em mais de um estabelecimento de saúde, no ano de 2016. Entre as categorias com maior número de vínculos adicionais, destacam-se os/as técnicos(as) e auxiliares de enfermagem (218 mil), médicas(os) (121 mil), enfermeiras(os) (75 mil) e farmacêuticas(os) (32 mil), totalizando 596 mil trabalhadores da saúde, de um total de 2,68 milhões de trabalhadores(as) no SUS, ou seja, 22% do total (DIEESE, 2019).
Sobre os limites que assinalam a duração possível de uma jornada de trabalho, Osorio expõe:
[...] o prolongamento da jornada tem como consequência uma elevação do valor da força de trabalho, ao requerer maior quantidade de bens necessários para repor o desgaste das horas extras. Porém quando ultrapassado certo ponto, a partir do qual o desgaste físico e mental não pode ser reposto, o aumento de horas diárias não consegue ser compensado pelo aumento do salário. Nesses casos, o capital está se apropriando hoje de anos futuros de trabalho, o que não só viola o valor da força de trabalho, mas implica a redução da vida útil do trabalhador e de sua expectativa de vida de acordo com as condições normais dominantes (Osorio, 2012, pp. 71-72).
Ainda que se tenha observado um aumento no contingente de trabalhadores (as) da saúde – segundo o DIEESE – entre os anos de 1998-2008, isso não refletiu na valorização destes (as) trabalhadores(as), pelo contrário, constatou-se naquele período uma redução na magnitude das remunerações. Ao se comparar os rendimentos médios reais pagos por hora aos ocupados do setor saúde em 2008, com aqueles auferidos em 1998, evidenciou-se a acentuada redução observada em praticamente todas as regiões analisadas, com destaque para a variações percentuais negativas identificadas na região metropolitana de São Paulo (-32,9%), de Recife (-25,0%) e de Salvador (-21,3%) (DIEESE, 2009).
A diminuição dos rendimentos na saúde, na maioria das regiões, reflete a retração dos salários em estabelecimentos privados que registraram reduções entre 32,0% em São Paulo, e 4,5% em Recife. Na esfera pública da saúde, houve queda do rendimento apenas em duas regiões: Recife (-23,3%) e Belo Horizonte (-3,4%). Nesta última região, identificou-se ainda uma variação percentual positiva (10,2%) no salário-hora de trabalhadores(as) vinculados a estabelecimentos de saúde privada (DIEESE, 2009).
Dando um salto no tempo e alcançando o ano de 2016, observa-se que entre as categorias ocupacionais na saúde, os médicos clínicos recebiam naquele ano a maior remuneração (R$ 9.913,00, com crescimento real, descontada a inflação, de 8,8% em relação a 2012), ao passo que cuidadores (as) recebiam a menor (R$ 1.377,00). Enfermeiras (os) tinham uma remuneração média de R$ 4.713,00 e crescimento de 3,4% em relação a 2012, já os técnicos de enfermagem recebiam uma remuneração média de R$ 2.203,00, com aumento real de 7,1% em relação a 2012. Técnicos (as) de enfermagem ganhavam 46,7% do recebido por Enfermeiros (as), que, por sua vez, auferiam 47,5% da remuneração de médicos(as). A distância entre a maior e a menor remuneração no SUS, em 2016, era de sete vezes (DIEESE, 2019).
Outra característica bastante expressiva quando se analisa o componente da remuneração entre trabalhadores celetistas vinculados a estabelecimentos do SUS é a desigualdade de gênero e raça, por exemplo, as mulheres recebiam, em 2016, 75% da remuneração dos homens (R$ 2.878,00 contra R$ 3.828,00). As mulheres negras (pretas e pardas) recebiam 60% da remuneração dos homens não negros (brancos, amarelos e indígenas): R$ 2.561,00 contra R$ 4.302,00. Os (as) trabalhadores (as) negros (as) têm remuneração equivalente a 80% da remuneração dos (as) não negros(as): R$ 2.711,00 contra R$ 3.396,00 (DIEESE, 2019).
As diferenças de remuneração que, por um lado, podem ser explicadas pela natureza dos postos de trabalho, como por exemplo, a constatação de que existem menos mulheres negras médicas (DIEESE, 2019), por outro lado, tem sua origem atrelada a formação do proletariado brasileiro, que foi profundamente marcada pelos fenômenos históricos, econômicos e sociais no Brasil, a exemplo da sua trajetória enquanto resultado de uma colonização predatória, na qual o país funcionou como espaço de apropriação de recursos naturais e financeiros para a metrópole portuguesa, com o trabalho escravo se estendendo por mais de 300 anos, ou mesmo depois da abolição da escravatura com a transição para o trabalho assalariado, não tendo sido proporcionado aos/às ex-escravizados(as) garantias de assistência social ou qualquer amparo estatal que lhes permitissem melhores condições de vida.
Mesmo numa comparação entre pessoas com escolaridade de ensino superior similares, os dados indicam que trabalhadores (as) negros (as) recebiam 12,5% menos que os/as brancos (as): R$ 3.981,00 ante R$ 4.549,00 (DIEESE, 2019). “Assim, foi em grande parte sobre a escravidão africana e indígena que se constituiu o proletariado brasileiro, e as contradições que residem na atualidade em relação a empregabilidade, taxas de mortalidade e natalidade, escolaridade dessa população resultam, essencialmente, desta origem” (PCB, 2021, p. 5).
Para o DIEESE, “faltam perspectivas de carreiras mais atrativas no SUS, inclusive para o reconhecimento da experiência tácita no trabalho, pois os dados indicam que a remuneração aumenta, na medida em que aumenta o grau de instrução” (DIEESE, 2019, p. 15). Contudo, de acordo com Martins (2011), a elevação da qualificação do trabalhador sem a remuneração equivalente ao incremento de valor da formação de trabalho é um dos mecanismos pelos quais se desenvolve a superexploração da força de trabalho, que se caracteriza pela queda dos preços da força de trabalho por baixo do seu valor.
3. Crise pandêmica, superexploração e os rebatimentos na saúde dos trabalhadores
No cenário atual de crise pandêmica temos visto um contingente considerável de trabalhadores(as) da saúde adoecidos física e psiquicamente. Ou seja, são trabalhadores(as) que apresentam alguma dificuldade na reposição de sua energia e saúde para voltar a trabalhar na jornada seguinte. Estes trabalhadores não têm os meios de subsistência suficientes para reproduzir a sua força de trabalho. Essa situação se configura enquanto sendo uma superexploração da força de trabalho.
Se somarmos a esse cenário a precarização histórica dos trabalhadores(as) do Sistema Único de Saúde (SUS), que através da sua assistência à saúde e serviços (mas não somente isso) confere o aporte de saúde necessário para que a classe trabalhadora reproduza a sua força de trabalho e continue trabalhando com melhores condições de vida, é possível conceber o quanto essa precariedade da saúde pública brasileira contribui para o rebaixamento do valor da força de trabalho, logo para superexploração da força de trabalho, para extração de excedente do trabalho, a mais-valia.
É o sistema capitalista se beneficiando de diversas formas e maneiras do campo da saúde. Seja através da privatização, desfinanciamento e desmonte do SUS (Mendes, 2022), seja por meio da superexploração da sua principal engrenagem (quem movimenta e constrói o SUS) que é a força de trabalho na saúde.
A pandemia de Covid-19 aprofundou as mazelas sociais manifestadas pelo capitalismo, impactando diretamente nas condições de vida e trabalho da população, ampliando os índices globais de mortalidade, de desemprego, de pobreza, de fome etc., além de aumentar o grau de exploração de trabalhadores(as) e intensificar as desigualdades de classe, raça e gênero na sociedade como um todo.
Nesse cenário de crise pandêmica, as pessoas que trabalham direta ou indiretamente na área da saúde foram especialmente afetadas. Projetos como o Observa Covid e Rede CoVida mostram em algumas de suas publicações e estudos, a situação particularmente preocupante daqueles que atuam nos estabelecimentos do SUS ou cuidam de pessoas com Covid-19, principalmente os que se encontram na linha de frente do combate à pandemia, garantindo o funcionamento dos leitos, além dos atendimentos ambulatoriais na rede de atenção básica e especializada (OBSERVA COVID, 2021; REDE COVIDA, 2020).
Silva et al. (2021) ao analisarem registros de inspeções sanitárias realizadas no estado da Bahia, no período de abril a novembro de 2020, verificaram, por exemplo, um maior número de casos no setor de serviços (n = 39), com destaque para os serviços de saúde com metade das inspeções (n = 20).
Já Mendes et al. (2021) ao analisarem casos de trabalhadores(as) da saúde contaminados com a Covid-19, na cidade de Salvador-Bahia, no período de abril a agosto de 2020, verificaram uma predominância feminina (75,9%), sendo maior na faixa etária de 20 a 39 anos (54,5%), além de uma predominância de casos entre pessoas autodeclaradas pretas/pardas (76,8%), bem como entre trabalhadores(as) que apresentam jornada de trabalho entre 40 e 60 horas semanais (88,4%). As autoras argumentam que a “multiplicidade de vínculos, encontrada em cerca de um terço dos trabalhadores investigados, e a extensão da jornada de trabalho são primordiais nesta análise, pois são fatores que aumentam a exposição do trabalhador” à Covid-19 (Mendes et al., 2021). No entanto, vale acrescentar que são estes procedimentos (prolongamento da jornada de trabalho e multiplicidade de vínculos) que caracterizam o modo de produção fundado na superexploração da força de trabalho e se apresentam enquanto elementos constitutivos do capitalismo dependente (Marini, 2011), como mencionado nas seções anteriores deste artigo
De acordo com “Carta aberta dos trabalhadores da saúde atuantes nas UBS do município de São Paulo”, publicada em janeiro de 2022, são muitos os problemas vivenciados por trabalhadores(as) no curso da emergência sanitária de Covid-19, entre os quais pode-se citar: a sobrecarga de trabalho; o número reduzido de profissionais; o aumento exponencial do número de atendimentos; a ampliação da jornada de trabalho (sem a devida remuneração das horas extras); o acúmulo de funções; a adição de atividades extras nas rotinas de alguns profissionais, com manutenção da cobrança de metas (de maneira truculenta) de atividades habituais; a realocação de profissionais, deixando setores específicos com sobrecarga e a população sem atendimento adequado (SIMESP, 2022).
Além disso, questiona-se também a falta de insumos mínimos para o atendimento da população (por exemplo: medicamentos essenciais para o tratamento das infecções; lençol para maca hospitalar; oxigênio; luvas; testes de gravidez e espéculos vaginais etc.).
De acordo com o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (SmartLab), ao tratar e analisar os dados do INSS/CATWEB e INSS/BENEFÍCIOS, o setor econômico com mais acidentes de trabalho (2012 a 2021) é o de atividades de atendimento hospitalar, sendo que a ocupação de técnico de enfermagem foi a que apresentou o maior número de acidentes de trabalho para o mesmo período, no Brasil (Smartlab, 2022).
Estes e outros aspectos acabam por comprometer a segurança e a saúde nos ambientes de trabalho, gerando adoecimento e mortes, bem como problemas de saúde mental associados às condições de trabalho, ao medo de contaminar-se e contaminar familiares e amigos, ansiedade, distúrbios de sono e/ou alimentares e depressão vinculada ao estresse decorrente do trabalho cotidiano, especialmente da atenção e do cuidado dispensado a pessoas com Covid-19.
Os fatores que contribuem para o desenvolvimento e piora do sofrimento mental (mas também das condições de vida e saúde de trabalhadores/as como um todo) perpassam as dimensões econômicas, sociais, ambientais, culturais, fisiológicas etc. Afinal, são fatores historicamente determinados pelo modo de produção capitalista.
Conclusiones:
O Brasil tem vivenciado uma ampliação de ocupações cuja natureza é mais flexível e menos protegida, situação que se reflete também no mercado de trabalho da saúde. Tem-se identificado ao longo dos anos uma diminuição dos vínculos estatutários, além de uma expressiva rotatividade no trabalho em estabelecimentos vinculados ao SUS. Outra grande expressão da superexploração da força de trabalho da saúde é o aumento dos múltiplos vínculos, por meio dos quais trabalhadores e trabalhadoras da saúde se submetem afim de alcançar uma remuneração que lhes permita a reprodução e manutenção da sua força de trabalho, e o mínimo para sua sobrevivência.
O cenário de exploração se completa com a constatação da redução na magnitude das remunerações dos trabalhadores da saúde ao longo dos anos, além da discrepância salarial entre as categorias profissionais na saúde, sobretudo na comparação salarial sob a dimensão do gênero e da raça. Para a apropriação do excedente-valor pelo capital, a força de trabalho da saúde é submetida jornadas extensas e intensas de trabalho, que em última análise só amplia o adoecimento da classe que vive do trabalho, além de o aumento de acidentes de trabalho.
Uma das consequências decorrentes da superexploração da força de trabalho é o aumento de acidentes, do adoecimento (físico e psíquico) e dos óbitos relacionados ao trabalho. É o sistema do capital mostrando suas garras e utilizando-se de todos os mecanismos possíveis e os aparentemente impossíveis, na extração e apropriação dos valores produzidos por trabalhadores e trabalhadoras da saúde.
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Palabras clave:
Superexploração da força de trabalho; trabalhadores da saúde; teoria marxista da dependência (TMD); crise do capitalismo; Covid-19.