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Resumen de la Ponencia:
O presente artigo aponta a experiência como ferramenta interessante para os estudos sociológicos. Sendo categoria analítica, a "experiência" diz respeito à forma como grupos sociais e indivíduos atuam e reagem diante de determinado fenômeno, situação ou encontro com outro, sendo útil para compreender os impactos no processo de reflexividade, modos de ação ou atuação nas dinâmicas complexas de tais indivíduos e grupos. Como questão norteadora, esse texto busca compreender os impactos de eventos e fenômenos traumáticos nos processos nas interações sociais. Para isso, teremos como objeto de análise o trabalho e escrita de Chimamanda Ngozi Adiche no livro “Notas sobre o luto” e o filme “Os amores de Maria” do diretor Andrei Konchalovsky, lançado em 1984. Como recorte analítico-metodológico, baseamos a construção dessa estrutura na fenomenologia social de Alfred Schutz, na noção de experiência de François Dubet (1994) e na noção de reflexividade de Margaret Archer. Tais conceitos permitem interpretar nas nuances da vida cotidiana ou experiência específica, escolhas e comportamentos individuais que, muitas vezes, podem contrariar as expectativas de determinado grupo social, por exemplo. Sugerimos que essa ferramenta analítica possa ser utilizada para pensar o sujeito como um corpo no mundo, como seres que corporificam papéis e funções sociais a partir não apenas da estrutura social, mas também das suas experiências de suas interações. Palavras-Chave: Experiência; ferramenta analítica; Schutz; Dubet, Archer; fenomenologia social.
Introducción:
De que maneira o conceito de experiência é encontrado na literatura? “Experiências sensoriais” (CARVALHO, 2011), “aprendizagem experiencial”, “experiência formativa”, “experiências sociais” (BÔAS, 2017) são alguns dos exemplos de como o conceito aparece nos mais diferentes campos do pensamento. Presente na sociologia, filosofia, psicologia, arquitetura e outros campos de conhecimento, o termo encontra significações singulares, mas que partem de um mesmo ponto de partida: o contato entre corpos — sejam eles objetos ou não, espaços abertos ou não. Partem da noção da percepção através dos sentidos (MERLEAU-PONTY, 2018) que produzem, ou não, sentidos individuais ou sociais (DUBET, 1994). Também presente no campo do marketing e da produção de bens de consumo, experiência se torna lugar comum e ponto de chegada na produção de espaços através da atuação dos agentes (CORREA, 1999), entendendo, como os sentidos sensoriais produzidos naquele ambiente favorece e estimula o consumo. A racionalidade no desenvolvimento produtivo, como uma forma de produzir, assim como uma forma de ludibriar, através de uma noção de reprodutibilidade, é uma questão de pauta em trabalhos de Walter Benjamin1 e Theodor Adorno2.
Como os fenômenos e acontecimentos sociais impactam as formas de condução dos indivíduos? Essa é a pergunta central deste trabalho, ao qual encontra consonância com uma preocupação pontuada por Simmel, em 1902. Simmel, ao observar o desenvolvimento das Grandes Cidades questiona como as novas configurações de sociabilidade e racionalidade na ação (ou a quantificação das coisas) alteram as formas de conduta e provocam situações ou comportamentos no indivíduo. Nesse interim, a intensificação da vida nervosa e a apatia aparecem como efeito e elementos centrais de sua análise como uma das formas de ameaça às identidades.
A partir da pergunta-guia, este artigo tem como objetivo trabalhar a noção de experiência ao nível do indivíduo, buscando descrever e entender, a partir dos acontecimentos externos e sistemas culturais, os impactos no interior do sistema de referência e explorar os rompimentos através das narrativas literárias e cinematográficas. A proposta metodológica para a construção analítica ocorre a partir da fenomenologia social e a descrição das trajetórias, buscando revelar, a partir dos processos de interação, a relação entre choques e experiência.
Encontramos em Alfred Schutz o marco teórico inicial. Em sua análise, a forma de relação com o “mundo da vida cotidiana” ou, apenas, com a realidade, coloca o indivíduo e seu corpo em ambiente de centralidade. Creusa Capalbo (1979) pontua essa relação fenomenológica vista em Schutz e da forma como o indivíduo se percebe e se relaciona com o mundo: “O corpo se percebe como o centro de sua orientação na ordem espaço-temporal do mundo” e continua: “Assim, o mundo aparece sob um certo prisma, sob uma certa ótica, sob uma perspectiva determinada, e eu o organizo num sistema de coordenadas cujo centro sou eu” (CAPALBO, 1979, p. 54-55). Essa perspectiva teórica é encontrada na fenomenologia tanto de Husserl, quanto de continuadores, como Merleau-Ponty. Em Merleau-Ponty (2018), o estabelecimento do diálogo sobre empirismo-idealismo e o debate na dualidade entre agência-estrutura aparecem como fatores centrais em sua Fenomenologia da Percepção. O autor estabelece a dualidade ao pontuar que “o mundo age sobre nossos olhos para fazer-se ver nós, tem-se agora uma consciência ou um pensamento do mundo, mas a própria natureza deste mundo não mudou: ele é sempre definido pela exterioridade absoluta das partes e apenas suplicado em toda a sua extensão por um pensamento que o constrói” (LIMA, apud MERLEAY-PONTY, 1999, p.69). Essas questões também aparecem em Schutz, aos quais suas análises o levam a entender que ocorre uma dupla relação entre o agente e estrutura e que ambas se retroalimentam (SCHUTZ, 2018 [1932]).
Como objeto de análise, partimos da obra “Notas sobre Luto” de Chimamanda Ngozi Adiche e do filme “Os amores de Maria” do diretor Andrei Konchalovsky, lançado em 1984. A hipótese centra-se que o encontro entre os sistemas de cultura e as experiências individuais entram em situação de desacordo despertadas por situações conflitantes ou limítrofes. A partir deste ponto, busca revelar como a noção de experiência constitui-se como uma ferramenta analítica a ser utilizada e captada durante as trajetórias de vida.
Na primeira parte deste artigo, discorremos sobre as implicações das experiências cotidianas como elementos de reflexividade; na segunda parte, pontuamos os encontros e desencontros entre os sistemas culturais e as experiências; por último, o rompimento com os sistemas de referência e a produção de novos sentidos.
Desarrollo:
Experiencia como elemento da reflexividade
“Os problemas sociais têm as falhas particularmente visíveis da experiencia social. É por esta razão que uma sociologia da experiencia social pode, em primeiro lugar, voltar-se para os problemas da escola e da educação, para os da doença, para os problemas urbanos, para os dos trabalhos e, de maneira geral, para as condutas que põem diretamente em causa a inadequação da subjetividade dos indivíduos às expectativas ‘objetivas’” (DUBET, 1994, p. 263)
A partir de qual ponto, a experiência vivenciada passa por um momento reflexividade?
Ivan, protagonista do filme “Os amores de Maria”, apresenta as causas e efeitos de um soldado que esteve na 2° guerra mundial. Impactado pelos choques da guerra, onde as dimensões e encontros com as limitações do corpo humano frente as forças das armas, retorna a sua cidade natal e é recebido como um herói de guerra. Sua comunidade, orgulhosa dos feitos de todos os soldados, estende as gratidões e os palcos para os soldados.
O retorno para o lar surge como primeiro elemento das vivências e os impactos percebidos pelos soldados. Schutz (1970) pontua que: “Muitos soldados na linha de frente ficam atônitos ao ver que faltam às cartas de casa qualquer compreensão de sua situação...” (SCHUTZ, 1970, p. 296). O encontro com narrativas e experiências vividas entram em choque, pois revelam em Ivan um desacordo com as experiências vividas. Ivan, recebido como um herói, não compreendia o fato de ser considerado um.
Parte dessas narrativas heroicas marca elementos de uma propaganda de guerra espedida e reforçada pelo cinema e meios de comunicação. Schutz analisa entre outros aspectos, que a propaganda do heroísmo de homens que foram combatentes de guerra – reforçada no cinema dos EUA –, e o status privilegiado em sua comunidade mascara a realidade vivida por eles e seus próprios sentimentos (SCHUTZ, 1970). Esses elementos presentes no cinema, como aspectos que estão intrínsecos na sociedade, também são revelados pelo trabalho de Kracauer no livro “De Caligari à Hitler” tanto na produção de uma ideia coletiva3 de uma narrativa, como formas de alcançar um apoio massivo e escoamento da produção. Esse é um dos choques vivenciados por Ivan.
A experiência de guerra, no caso do indivíduo enviado aos campos, e o encontro com o sistema de relevância4 aparecem como pressupostos para o choque e desencontros com as vivências, pois o agir consciente, no “aqui-e-agora” estavam ligados às lembranças anteriores.
Esses elementos aparecem como o estabelecimento do choque, pois, os sistemas culturais, ou em termos de Dubet, da experiência coletiva — ao qual coloca pode ser visto como um conceito de alienação em sua análise (WAUTIER, 2003, p. 181) —, associadas com as narrativas midiáticas, criaram o sentido de heroísmo não identificado por Ivan.
O retorno também revela outros elementos de choque com suas lembranças. O choque do encontro com a realidade e o quanto não condizem com os elementos presentes nas memórias. Em seus primeiros momentos do retorno, Ivan visita Maria, sua amiga de infância e amor desde então. Quando a encontrou, Maria estava em um outro momento de vida e com relacionamento com outra pessoa. Ele percebe que Maria está diferente, e até aquele momento ele não se percebe diferente, está vivenciando seu retorno, como uma forma de reconhecer seu lar. Nesse sentido, pode-se afirmar que a vivência não é integralmente percebida quando se vive (SCHUTZ, 2018). Schutz (2018) pontua que a partir da “recordação retrospectiva interativa” que se tem consciência do que foi vivido, para isso define três momentos: “o ser pré-fenomenal das vivências, seu ser antes de nos voltarmos reflexivamente para elas, e seu ser enquanto fenômeno. (SCHUTZ, 2018, p. 81).
Esse estranhamento não aparece como exclusivo ao encontro com Maria, mas também com seu pai. Ivan vivência um estranhamento de estar de volta ao lar, sentindo-se desconfortável e não encontrando um lugar para estar. O embate com seu pai, o questionando-o de suas ações durante a guerra e as motivações de não ter tomado ações necessárias para garantir sua salvação não encontram respostas. Ivan não consegue articular nenhuma palavra.
Para Schutz (1970), o retorno ao lar coloca em questão seu sistema de referências, pois o lar é o “ponto zero” nas coordenadas dos movimentos que fazemos no mundo, e o lar é “um estilo peculiar de vida, composto de pequenos elementos importantes e queridos” (p.291). Ivan retorna ao lar sendo outra pessoa pois, anexado ao seu estoque de conhecimento, há outras experiências que não coadunam com a realidade ou com aquilo que estava estabelecendo suas crenças. Quando ele sai do seu lar e acessa outra dimensão social, então as experiências vividas são substituídas por memórias que possuem significado até esse momento que ele deixa o lar. Há um rompimento aqui que paralisa o desenvolvimento (SCHUTZ, 1970). Essa mesma leitura pode ser feita para com aqueles que permanecem. Schutz, em “O estrangeiro” elenca, a partir dos processos de interacionismo, as formas como os indivíduos acessam o outro espaço e a distância entre aquele que parte e aqueles que ficam. No momento da partida, o conjunto de sistemas de referências tanto para um como para outro são paralisados no instante em que partem, sendo que serão conectados a partir das memórias que se tornam lembranças.
Vimos, até o momento, como situações com grandes dimensões, no cenário das guerras, infligem choques produzindo experiências que não dialogam com as memórias dos soldados. Como essas questões impactam, também, quando são proporções reduzidas?
Em “Notas sobre o Luto”, Chimamanda elabora um conjunto de memórias e passagens sobre a relação com seu pai, James Adichie. Esses escritos aparecem em 2020, no momento mais alto da pandemia do covid-19, ao qual os aeroportos estavam fechados e inviabilizava as viagens. Foi nesse momento, de difícil circulação, que ocorrera o falecimento de seu pai.
A notícia, recebida a partir de uma ligação através de plataformas online, trouxera momento de ruptura e descrença para a escritora: “A notícia é como um desenraizamento cruel. Ela me arranca do mundo que conheço desde a infância” (CHIMAMANDA, 2021, p.12). O choque, provocado através da notícia, surge como um cenário semelhante visto em anteriormente na trajetória construída a partir de Ivan: as estruturas sociais construídas, a partir das memórias, se rompem. O choque, apresenta novas experiências que, por sua vez, aparecem como nossos elementos para a reflexividade. Essa vivência, como algo concebido a partir de acontecimentos externos, provocam sensações antes não percebidas.
“O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo?” (CHIMAMANDA, 2021, p. 14)
O rompimento entre momentos, tanto do “aqui-e-agora” para um novo “aqui-e-agora” na narrativa de Chimamanda, estabelece um choque distintivo com potência para alterar sua percepção. Schutz pontua que a alteração das vivências se modifica, exclusivamente, “a depender se nos entregarmos ao curso da nossa duração ou refletirmos sobre ela, na esfera abstratamente espaçotemporal” (2018, p.75). As novas experiências entram em desacordo com o sistema de referência (ou sistemas culturais), produzindo elementos de reflexividade.
Quais são os novos sentidos que surgem a partir das novas experiências? Ou como ocorre a reflexividade a partir desse novo conjunto de referências que são dadas a partir das novas experiências?
“Arrependo-me das minhas antigas certezas”
Quando os sistemas culturais deixam de fazer sentido?
Na construção do realismo crítica em Archer, a autora estabelece um exercício pontuando que a reflexividade aparece como um elemento de ligação entre a estrutura e agência. A reflexividade é conceituada como uma conversação interna ao qual “executa um papel de mediação entre o indivíduo e a sociedade” (PIMENTEL, 2019, p.86).
“O luto expõe novas camadas em mim, raspando escamas de meus olhos. Arrependo-me das minhas antigas certezas: você certamente deve vivenciar seu luto, falar a respeito, encará-lo.” (CHIMAMANDA. p. 23)
A ponderação proposta por Chimamanda, coloca em encontro o choque estabelecido entre os sistemas culturais e os acontecimentos que produzem estranhamento. As certezas propostas pelo conjunto de vivências acumulados em um estoque de conhecimento, entram em desacordo com as antigas certezas. Desta maneira, o choque gera camadas de estranhamento, necessárias produtoras de novos sentidos que antes não era visto, assim como são cenários não aceitos. Chimamanda (2021) deixa explicito, em dois momentos do livro, discordâncias com os sistemas culturais:
“Esse jeito igbo, esse jeito africano de lidar com o luto tem seu valor: o luto exteriorizado, performático e expressivo, no qual se atende a todos os telefonemas e se conta e reconta o que aconteceu, no qual o isolamento é um anátema e ‘para de chorar’ um refrão. [...] Imagino a incompreensão de alguns parentes, sua reprovação até, quando se deparam com meu fechamento sobre mim mesma com as chamadas que não retorno, as mensagens que deixo de ler. Talvez eles considerem isso uma autoindulgência impossível de entender, ou então uma afetação ligada à fama, ou os dois.” (2021, p.42)
“Minha mãe diz que algumas viúvas foram lhe dizer qual é o costume. Primeiro a viúva deve ter a cabeça raspada — e antes de ela conseguir continuar, meus irmãos vão logo dizendo que isso é ridículo e não vai acontecer. Eu digo que ninguém raspa a cabeça dos homens quando suas esposas morrem; ninguém nunca faz os homens passarem dias comendo comidas insossas; ninguém espera que o corpo dos homens exiba a marca da sua perda. Mas minha mãe diz que quer fazer tudo: “Eu vou fazer tudo o que se faz. Vou fazer pelo papai.” (2021, p.84-5)
As novas experiências aparecem como um elemento que corrompe os sistemas de referência, por não encontrar um elemento de paridade entre aquilo que se sabe com aquilo que se sentiu a partir de um fato. Desta maneira, encontraríamos um ponto limitante na teoria da morfogênese de Margareth Archer.
Partindo do pressuposto que “estruturas sociais e sistemas culturais exercem seus poderes causais organizando a situação de ação através de influências limitadoras e habilitadoras [...] pode-se concluir que os atores mediam ativamente seu próprio condicionamento cultural e social” (VANDERBHERG, 2010, p. 263); as considerações de fenômenos traumáticos não aparecem como um elemento de reprodução, mas de produção de novos sentidos. À medida que a estrutura se configura a partir de um conjunto já esperado de situações, sem que tenha um elemento centralizador de uma mudança radical — tal como um falecimento não esperado, elementos sobre humanos de uma guerra, efeitos de uma pandemia ou de qualquer fenômeno não controlado ao nível individual — a reprodução do sistema cultural e o sistema de referência se perpetua, algo que entra em atrito com os objetos de estudo proposto neste estudo.
A experiência de Chimamanda colocou em posição delicada todo o sistema de cultura e as formas de relacionar com a morte. Chimamanda tinha questões na maneira como as pessoas lidavam, pois, ao nível individual, não entrava de acordo com as sensações que apresentou frente ao caso. Os costumes na Nigéria sobre as esposas também entram em desacordo com os entendimentos individuais. Mesmo que a mãe da autora se permite a passar por todos os fatores culturais, respeitando as tradições, o choque e comparativo com as ações desempenhadas pelos homens, quando colocados em uma balança, são muito distintos.
Esse conjunto de choques e estranhamentos frente ao sistema cultural, gera um conjunto de ações, provocando, em escala individual, desconfortos que, na proposta de Archer, não alteram, necessariamente e pontualmente, o sistema cultural. Mas que, a partir das conversações internas o agente passa a mudar em seguida a própria estrutura.
Partindo da perspectiva fenomenológica, a construção dos sistemas de referência ocorre através dos processos de interação aos quais são geradores do estoque de conhecimento. Esses sistemas culturais, imbuídos de todos os conjuntos de práticas, ações e formas constituem-se como todos aqueles elementos de crença. As formas de experienciar também são aprendidas nesse conjunto de práticas, sendo todo o acúmulo de vivência geradoras da experiência. Até o momento que antecede a morte do pai de Chimamanda ou a ida de Ivan para a guerra, todo o sistema se mantém a partir de uma proposta de reprodução ou manutenção de um espaço, sem que haja elementos disruptivos.
Vale salientar que, os aspectos de transformação não perpassam elementos de choques. O estranhamento pode ocorrer também relativo às formas que o desenvolvimento das ciências, da militância ou de toda maneira que levanta uma demanda ao sistema cultural ocorra. Lahire (2005) elenca que, relativo às perguntas elaboradas pela ciência, podem ser produtoras de novas visões. Isso nos auxilia a entender a importância dessas experiências para o estabelecimento das críticas aos sistemas tradicionais.
O choque, portanto, são os elementos abruptos, não esperados, que podem ocorrer e produzir novos contingentes que vão de encontro com toda o conjunto de referência presentes no sistema cultural.
Em medidas distintas, as experiências presentes na trajetória de vida da Chimamanda e do personagem Ivan, aparecem como elementos do choque como fatores causais de uma transformação nas formas de agir e de pensar. Os elementos presentes no choque, em primeiro momento aparece como uma experiência irrefletida, não se torne, em primeira mão, uma ação consciente. Para que isso ocorra, considerando a noção de Schutz sobre a formação da consciência, a vivência deve passar por um processo de reflexão.
Ivan não encontra as formas de se posicionar frente as novas situações, após sofrer os impactos de um estado de anomia proposto pela guerra; Chimamanda encontra as certezas que deixaram de ser. Há dois pesos e duas medidas, Chimamanda se vê confrontada com uma outra ideia de luto vivida em outras situações de luto que viveu, mas não impactante tanto quanto a morte do pai. Essa ideia de luto que vivia antes da morte do pai, talvez seja uma compreensão mais geral que interiorizada sem a reflexividade proporcionada pelo sentir, pela percepção proposta pelo próprio corpo. O sentir em sua trajetória aparece como elemento transformador.
A sociedade, nestes exemplos, garante a sua reprodução, mas as experiências surgem como elementos que apresentam um sintoma que alteram a percepção das coisas. Schutz pontua que:
“A personalidade do outro não é mais acessível como uma unidade; foi despedaçada. Não existe mais a experiencia total da pessoa querida, seus gestos, seu modo de andar e de falar, de ouvir e de fazer as coisas; o que resta são lembranças, uma fotografia, algumas linhas escritas”. (SCHUTZ, 1970, 291).
“Pouco importa se quero ser mudada, porque estou mudada”
“Uma voz nova faz força para vir a luz na minha escrita, cheia de proximidade com o que sinto em relação a morte, da consciência da minha própria mortalidade...” (Chimamanda, 2021, p. 108)
O qual seria o “motivo-para” de determinada mudança? Após refletir sobre o luto em sua obra, Chimamanda se declara mudada, ainda que não tenha sido esse o seu desejo. Passada a vivência da morte de seu pai, suas reflexões alteram sua forma de encarar suas preocupações, descontroem e reconstroem suas percepções com relação ao sistema cultural.
Da perspectiva da sociologia fenomenológica que a cada vivência de um novo agora “encontra experiências em seu estoque de consciência, tem conhecimento de mundo; tem dele um pré-saber” (SCHUTZ, 2018, p. 129). Portanto, em seu contexto, a produção de novos sentidos ocorre através da síntese entre as antigas noções com as novas experiências. Em suma, a experiência produz novos sentidos quando interpretada a vivência passada pelo eu.
O sujeito da sensação não é nem um pensador que o nota uma qualidade, nem um meio inerte que seja afetado ou modificado por ela; é uma potência que co-nasce com certo meio de existência ou se sincroniza com ele. (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 285).
As motivações das mudanças identificadas aqui nesta análise como agir consciente, tem relação com a auto interpretação do agir pelos agentes, e nos casos de Ivan e da Chimamanda, ambos experimentam uma quebra com os sistemas de referências social e cultural. Para Schutz (2018), o agir se fundamenta desde o projeto (em um outro agora-e-assim) onde existia um fundamento significativo, um contexto; o motivo poderia ser justificado ora no “para” (evento futuro), ora no “porquê” (evento passado).
Na frase de abertura deste tópico, utilizamos fragmento do texto onde Chimamanda toma consciência da sua própria mortalidade (a partir de experiencia do luto pela morte do seu pai), ou seja, foi despertada nela a ação de escrever diferente, de considerar sua relação com a morte. Ela se depara não aceitando a morte, ela questiona os rituais culturais quando ela acontece e a deixam em situações desconfortáveis. Situações que ela mesma reproduzia antes de vivenciar as sensações.
No filme, após voltar da guerra e casar-se com Maria, ele estranha a si mesmo ao não conseguir ter relações sexuais com sua companheira; entre outros momentos de estranhamento consigo e com sistema social e cultural em que está inserido, entende que há algo diferente em si. Depois de algumas vivencias e reflexões provocadas, fase a fase, Ivan consegue compreender que está no mundo real de fato e não mais numa fantasia com Maria. As motivações para que Ivan tenha conseguido ter rompido as barreiras subjetivas com Maria, lhe proporcionaram a experiência e o fizeram apreender o seu novo aqui-e-agora. Não mais na guerra, não mais no sonho com Maria, mas na realidade material.
Conclusiones:
Considerações finais
No presente artigo discutimos como os fenômenos e acontecimentos sociais impactam as formas de condução dos indivíduos a partir das suas experiências. Nessa perspectiva, a sociologia fenomenológica de Alfred Schutz oferece caminhos para que a experiência possa ser uma ferramenta analítica e metodológica desse campo do saber na coleta e no tratamento das informações.
Nos dois casos analisados, os atores sociais lidam com um choque, um evento traumático que desconfigura seus sistemas de referências social e cultura, passam a lidar com a inadequação do mundo. A partir das vivências e reflexões, a experiência então se apresenta como elemento que produz significado que possibilita uma auto interpretação e intepretação das ações no mundo da vida.
O material qualitativo mobilizado para este estudo indica dois movimentos básicos que coadunam com as noções de “mundo da vida”: um momento anterior e um momento posterior. Essa análise, criteriosa em observar as nuances e organicidades do fenômeno, sugere olhar não como um elemento episódico ou pontual, mas de que, assim como processo de causalidade, visualizar no continuum da história as experiências como elementos cumulativos. Tanto no caso de Ivan como na narrativa de Chimamanda, os sistemas referência sofrem um rompimento provocado por um elemento que fogem ao controle de ambos.
Essas situações podem ser vistas, também, na literatura de Anton Tcheskov. Um dos elementos principais em sua literatura é a cotidianidade. As descrições sobre o dia-a-dia dos mujiques, de oficiais, de trabalhadores perpassam, sem altos ou baixos, sua produção. No conto “O professor de letras” publicado no Brasil na coletânea “O Assassinato e Outros Histórias” pela editora Cosac & Naify em 2015 e pela editora abril entre 2010 e 2012, trata da mais tradicional história de cotidiano da vida urbana na Rússia. O protagonista, o professor, se apaixona por uma jovem e passa a frequentar sua casa, tal como orienta os costumes e práticas. Situações alimentadas por uma reprodução e manutenção da sociedade, seguindo os pressupostos da teoria da morfogênese de Archer.
Em uma dada noite, ao chegar mais tarde em sua casa e encontrar sua esposa já recolhida na cama, o professor questiona sua companheira sobre suas investidas durante o momento em que eles se conheciam. Nesse interim, a esposa revela que aquele comportamento já era o esperado. Ela e suas irmãs, no início, sentiam dúvidas sobre quem ele gostaria de desposar, mas que suas investidas de nada adiantariam, pois, entre elas, a decisão já havia sido tomada entre elas sobre quem iria ser a esposa.
Esse elemento, na obra de Tchekhov, consiste no choque. O agir projetado do Professor, em que ele seria aquele que tinha a intencionalidade de desposar, entende que havia uma ação arquitetada e que era evidente a ele. Suas certezas — aos quais podem ser lidas como comportamentos de uma cultura masculina — rompem-se por entender que havia uma maquinação que suas experiências anteriores pouco desconheciam.
Diante da presente discussão, concebemos que é na experiencia cotidiana que o indivíduo estrutura suas ações e tomada de decisões a partir de um “repertorio” de ações. No entanto, os elementos que compõem a ação social podem variar em realidades incertas, permeadas por dados temporais, traumas, choque ou adoecimento. Dessa perspectiva, a experiencia como ferramenta sociológica implica em considerar tais elementos para pensar a construção da ação individual. Isso não quer dizer deixar de lado outros elementos como os marcadores sociais, se trata sim de descrever a realidade para melhor interpretá-la.
A Sociologia busca estudar os fatos sociais e fornecer interpretações que sejam mais próximas da realidade, o que é um grande desafio para os cientistas da área, visto que nem todos os elementos de uma realidade estão expostos. À exemplo, na experiencia de Chimamanda com o luto, ela sentiu-se estranha com a morte do pai, e também pela maneira como sua mãe viveu o luto, considerando a tradição nigeriana; como saber sobre os significados que as pessoas dão as coisas? Então, a experiência se constitui como ferramenta para que cientistas sociais possam conhecer a realidade estudada da perspectiva de quem vivência no próprio corpo as sensações, acessar lugares que não conhece, muitas vezes longe da sua própria realidade social. Considerar as experiencias nas pesquisas na Sociologia é abrir espaço para mais indagações, o que sem dúvida, engrandece a ciência.
“Estou escrevendo sobre meu pai no passado, e não acredito que estou escrevendo sobre meu pai no passado” (CHIMAMANDA, 2021, p. 110)
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Palabras clave:
Experiência; ferramenta analítica; Schutz; Archer; fenomenologia social.