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Resumen de la Ponencia:
Durante as décadas de 1960 e 1970, o teatro brasileiro frequentemente se organizou sob o formato de espetáculo cantado para responder, de modo crítico, ao regime militar instaurado em 1964. As soluções plásticas mobilizadas nessas peças reeditaram as práticas nacionais da farsa e do teatro de revista, assimilaram influências estrangeiras (como dos alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht e do musical americano) e, acima de tudo, afirmaram caminhos artísticos originais, capazes de envolver o público. Os textos musicais registraram instantes históricos, ao mesmo tempo em que fixaram tendências que transcenderam aquela conjuntura específica e deixaram lições estéticas às quais se pode voltar hoje. As estratégias épicas, isto é, as narrativas (a maneira de a música se inserir no enredo) e os diálogos em verso estão entre essas lições. Em sintonia com tais práticas, vou abordar a importância política do grupo Dzi Croquettes, criado em 1972 por atores/bailarinos que se tornaram referência da contracultura ao confrontarem a ditadura usando a ironia e a irreverência. Eles revolucionaram os palcos com suas exibições andróginas que guardavam semelhanças com a companhia norte-americana The Cockettes, famosa pelo visual psicodélico. O escracho era uma das suas marcas: desobedientes e debochados com performances de homens com barba cultivada e pernas cabeludas, que contrastavam com sapatos de salto alto, visual exuberante, maquiagem pesada, figurinos arrojados e trajes femininos. Seus integrantes, 13 homens, vestiam-se, atuavam, falavam e dançavam como mulheres. São homens? São mulheres? São gays? O que são esses rapazes? Ao que eles respondiam nas montagens: “Nem homem, nem mulher: gente”. Prenúncio do que hoje se designa “agênero”? Examinar a trajetória da companhia equivale a revisitar, de certa forma, o momento vivido no Brasil: seus espetáculos denunciam e subvertem enquanto nos possibilitam uma aproximação com estilos narrativos diferenciados de representação do poder institucionalizado. Delineia-se, assim, uma experiência artística que mesclava, sem dúvida alguma, comportamento, existência, sexualidade(s) e criação estética. Nessa esteira, focalizo de que maneira a utilização do discurso musical afeta o espectador não só por meio dos parâmetros sonoros, mas igualmente pela sua capacidade de sugerir imagens e de inventar espaços e lugares ao criar figurações cênico-dramáticas. A propósito, acrescente-se que a música sempre foi uma referência fundamental no trabalho de diferentes grupos teatrais (como o Arena e o Opinião), dramaturgos e diretores (como Augusto Boal e João das Neves). Daí a pertinência da discussão que envolve o contraponto entre as linguagens musicais e plásticas na composição da polifonia intrínseca do seu teatro.
Introducción:
Kátia Paranhos / UFU/CNPq-Fapemig/Brasil
“[Apresentador] Miéle: Muita gente tem perguntado o que vem a ser Dzi Croquettes. E vocês saberão dentro de pouco a tradução. / Ator 1: É o artigo definido. É aquilo que define. / Ator 2: É tudo. O que está para frente inclusive. / Ator 3: Os faróis do carro. /Ator 4: Os seios femininos. Eu disse femininos. Ator 5: [...] / Etc. /”.
Peça Dzi Croquettes. Boate Monsieur Pujol, Rio de Janeiro, 1972 apud Lobert (2010, p. 17).
História & teatro
Com os desdobramentos da história cultural, voltada ao diálogo com a antropologia, com a crítica literária, com a história da arte e a crítica cultural, o historiador se viu em contato com documentos não apenas escritos, mas também sonoros e iconográficos. Assim, a produção historiográfica mais recente tem feito uso abundante de fragmentos textuais, como cartas, poemas e crônicas, de fragmentos sonoros, como partituras, letras de músicas e performances, e fragmentos iconográficos, como fotografias, pinturas, esculturas, objetos de arquitetura. A utilização de fontes literárias no centro da pesquisa histórica é uma prática que vem de longa data. Já no universo dos metódicos positivistas do final do século XIX, evidencia-se aceitação de textos literários como documentos para o historiador, desde que guardadas algumas precauções.
Ao chamar para a necessidade do diálogo da história com outras áreas, propunha-se, nesse movimento, o contato com fontes até então desconhecidas ou desconsideradas. A abertura para os “novos objetos” trouxe a ideia de que tudo deve ser historicizado, portanto, todo vestígio é documentação. No campo da historiografia, alguns trabalhos também têm cruzado as fronteiras de outros campos do saber. É recente a aproximação de historiadores com textos teatrais. Um contato nem sempre fácil, pois, como constata Robert Paris (1987-1988), os objetos artísticos – como o texto literário – são documentações portadoras de determinadas especificidades, que cabe ao historiador investigar.
Convém sinalizar que o texto escrito tem uma presença visual, assim como a imagem, a página impressa é visualizada como quadro tanto quanto a imagem. Destarte, o trabalho com documentos imagéticos se insere numa lógica de construção e desconstrução de alegorias, definindo práticas de apreensão que requerem rigor crítico, científico e afeito a sensibilidades. É certo que hoje se admite que a imagem não ilustra e nem reproduz a realidade; ela a constrói fundamentada numa linguagem própria que é produzida num dado contexto histórico. Na tentativa de compor e recompor esse discurso nu de palavras, o investigador se depara com uma zona fronteiriça entre história e imagem, cujos múltiplos setores – arte, antropologia, fotografia, arquitetura, design e diferentes artefatos da indústria cultural – constituem universos a serem explorados.
Em virtude das transformações que abalaram tanto a escrita da história quanto a eleição de novos objetos a serem estudados, constata-se a necessidade de uma redefinição do campo de ação do pesquisador contemporâneo. Por um lado, uma história dos elementos constitutivos do espetáculo teatral não se apresenta como uma “outra história” em oposição e, portanto, divergente daquela que vem sendo repetida e tradicionalmente elegeu o texto teatral como documento central de suas reflexões. Por outro lado, tampouco interessa banir o texto teatral deste espectro de discussão, mas sim esforçar para entendê-lo como mais um elemento constitutivo, com o qual se trama o fio da história.
Diante disso, é possível perceber que os objetos teatrais podem ser utilizados como documento na pesquisa do historiador, ajudando a compreender e a refletir sobre a realidade social de um determinado período. A lógica é que, ao longo dos vários períodos da humanidade, a capacidade de apreender e de compreender a história e, portanto, a forma de fazê-la está vinculada ao espírito do tempo. Arte memorial na sua essência, que se eterniza unicamente na memória do espectador, o teatro tem a tendência a englobar todas as artes, sendo algumas vezes tributário dessas outras manifestações.
Denis Guénoun (2003), por exemplo, destaca o caráter multifacetado do teatro em suas articulações e possibilidades, levando em consideração, para uma análise mais aprofundada, tanto o público como a arquitetura teatral, o autor e o ator. Da mesma forma, Roger Chartier (2002) evidencia outro aspecto extremamente importante para o trabalho historiográfico: a “negociação” entre o teatro e o mundo social, ou seja, a “materialidade do texto” deve ser entendida como uma operação que inclui a produção do próprio texto (o discurso, a época), o lugar de produção e sua transmissão.
Como se percebe, o espectro de ação do fato teatral, por si mesmo, transborda a própria representação de um texto teatral e, consequentemente, a sua multiplicidade é fulgurante. O teatro, sendo uma prática coletiva inscrita no corpo social, está sujeito, por isso, a interrogações várias sobre a sua história, livre de preconceitos e enriquecida por tratamentos metodológicos específicos, condizentes com a natureza dos elementos que o constituem. Desse modo, os estudos históricos podem ainda colaborar de modo bastante importante para o aprimoramento da pesquisa na área de artes cênicas: em primeiro lugar, com uma discussão sobre as fontes documentais usadas em pesquisa nesta última área e, em segundo lugar, com uma reflexão acerca de teorias da história.
Tanto na área de história quanto nas histórias de teatro existentes, há uma nítida ênfase no texto teatral. Com a superação do chamado “textocentrismo”, a pesquisa teatral, para ampliar seu campo de ação, vê-se obrigada a buscar novos documentos: fotografias, desenhos, cartazes, artigos de jornais, depoimentos e partituras. Se, por um lado, observa-se atualmente uma riqueza em relação aos tipos de documentos utilizados para a pesquisa, por outro, há questões bastante complexas que envolvem a ideia de documento, por exemplo: a relação entre documento e monumento. O documento, seja ele texto, notícia de jornal ou mesmo foto, nunca é totalmente objetivo e inocente. O documento é sempre mais do que uma prova de um fato real ocorrido; ele é no mínimo o resultado de uma intenção de quem o produziu. Assim como um monumento é erguido por determinado grupo para exaltar um acontecimento ou uma pessoa, o documento é resultado da ação de alguém ou de um grupo e traz em si as marcas dessa ação.
A reescrita do teatro é um processo constante, tanto pela transformação do objeto – os discursos teatrais –, como pelas mudanças dos códigos dos discursos críticos e dos deslocamentos de interesses ideológicos e estéticos dos sujeitos sociais que escrevem a história. Nisso tudo é relevante perceber diferentes categorias de discursos teatrais e, indo além da concepção teatral hegemônica, incorporar a preocupação que diz respeito à problemática das inclusões e exclusões, seja na seleção do corpo textual ou mesmo espacial. Tal opção significa eleger também outros textos e não apenas os fundadores, legitimados pela tradição cultural, e ainda tentar compreender como se deu o silenciamento dos textos não coincidentes ou não aceitáveis por essa tradição. Ir atrás do “não lugar”, lembrando Michel de Certeau (1982); introduzir o leitor, como ator, em outro(s) cenário(s).
Fazer um estudo sobre os espetáculos musicais, na década de 1970, – em que pese um diálogo essencial com os pesquisadores que enfrentaram este tema –, que privilegia práticas e representações, implica estabelecer uma relação importante no campo das linguagens, sobretudo ao interrogar os textos, as imagens e os sons como fontes (ler-ver-ouvir). O interesse concentra-se em compreender como é “historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação” (Chartier, 1988, p. 24). Partindo destes princípios reguladores, cabe lembrar que, no campo da história cultural, a recuperação das “práticas, complexas, múltiplas, diferenciadas” está sintonizada com a preocupação de entender como essas “constroem o mundo como representação” (Chartier, 1988, p. 24). Portanto, trabalhar a história cultural do social, a partir de sua “matéria-prima” essencial que são os textos, significa tomar “por objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais (sujeitos), traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (Chartier, 1988, p. 19). Os textos não possuem um sentido oculto, intrínseco e único que caberia à crítica descobrir; “é necessário relembrar que todo o texto é o produto de uma leitura, uma construção do seu leitor” (Chartier, 1988, p. 61).
Durante as décadas de 1960 e 1970, o teatro brasileiro frequentemente se organizou sob o formato de espetáculo cantado para responder, de modo crítico, ao regime militar instaurado em 1964. As soluções plásticas mobilizadas nessas peças reeditaram as práticas nacionais da farsa e do teatro de revista, assimilaram influências estrangeiras (como dos alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht e do musical americano) e, acima de tudo, afirmaram caminhos artísticos originais, capazes de envolver o público. Os textos musicais registraram instantes históricos, ao mesmo tempo em que fixaram tendências que transcenderam aquela conjuntura específica e deixaram lições estéticas às quais se pode voltar hoje. As estratégias épicas, isto é, as narrativas (a maneira de a música se inserir no enredo) e os diálogos em verso estão entre essas lições. Como a atividade musical dialoga com outros campos do fazer artístico, trata-se, portanto, de compreender o “fato música” como uma “colcha” extensa e complexa de relações dinâmicas e plurais. Estas variam entre a semiologia, a história, a sociologia, a antropologia, técnica e arte, ideologia e política, e comportam relações que se exprimem dentro e “fora” do fenômeno musical. O fazer teatral, espaço plural de signos, aponta para uma multiplicidade de tramas e de narrativas: uma dinâmica complexa que articula textos, programas, contextos, cenas, atuação e interpretação (Paranhos, Lima e Collaço, 2014, p. 96).
Em sintonia com tais práticas, vou abordar a importância política do Dzi Croquettes. O grupo criado por atores/bailarinos em 1972, se tornou uma referência da contracultura ao confrontar a ditadura usando a ironia e a irreverência. Eles revolucionaram os palcos com suas exibições andróginas que guardavam semelhanças com a companhia norte-americana The Cockets, famosa pelo visual psicodélico[1]. O escracho era uma das marcas dos “Dzi”: desobedientes e debochados com performances de homens com barba cultivada e pernas cabeludas, que contrastavam com sapatos de salto alto, visual exuberante, maquiagem pesada, figurinos arrojados e trajes femininos. Seus integrantes, 13 homens, vestiam-se, atuavam, falavam e dançavam como mulheres. São homens? São mulheres? São gays? O que são esses rapazes? Ao que eles respondiam nas montagens: “Nem homem, nem mulher: gente” (Issa e Alvarez, 2009).[2] Prenúncio do que hoje se designa “agênero”? (Paranhos, 2019, p. 9).
Em diferentes momentos, a troupe mobilizou linguagens do teatro, do cabaré, dos shows da Broadway, do improviso cênico, da mímica, da dança. Os temas abordados seguiam a linha do deboche das situações do cotidiano, das frases e situações de duplo sentido e principalmente da crítica e desconstrução da família, da Igreja e do Estado. A despeito disso, o próprio grupo se considerava uma “família”, e os nomes de palco de suas personagens demonstram isso: o pai, a mãe, as tias, as filhas, as sobrinhas, a empregada.
Os Dzi Croquettes, por meio das montagens musicais, fundiam diferentes expressões, versos, metáforas, alegorias e outros elementos que, em conjunto, compõem um cenário significativo de articulações de um modo de pensar e agir, uma visão do mundo. Esse resultado reitera a noção de que as formas e produções culturais se criam e se recriam na trama das relações sociais, da produção e reprodução de toda a sociedade e de suas partes constitutivas. Mariângela Alves de Lima, num texto escrito no final dos 1970, afirma que a constituição de um grupo de teatro:
significa reunir fiapos de informação dispersos, criar um espaço expressivo para sedimentar a amargura, levantar a dúvida e ensaiar a resistência. Independentemente do espetáculo que venha a produzir, a formação de um grupo é uma ação cultural e uma ação social (Lima, 2005, p. 238).
[1] The Cockets era uma das manifestações do gay-power nos Estados Unidos que estavam no auge nos anos 1970.
[2] Fala capturada no documentário Dzi Croquettes, de Issa e Alvarez (2009).
Desarrollo:
A família
O arranjo familiar funcionava como um suporte para duas percepções de família: uma encenada, levada ao palco, e outra, a família interna, dos bastidores. É como se o texto engendrado para ser apenas uma peça ganhasse vida, se espraiando para o dia a dia e misturando as fronteiras entre bastidores, palco e vida cotidiana. Bayard Tonelli (era a Tia Bacia Atlântica), Benedito Lacerda (Old City London), Ciro Barcelos (Silinha), Carlos Machado (Lotinha), Claudio Gaya (Claudete), Claudio Tovar (Clô), Eloy Simões (Eloína), Paulo Bacellar ou Paulette (Letinha), Reginaldo de Poly (Rainha), Rogerio de Poly (Pata), Roberto de Rodrigues (Tia Rose), Wagner Ribeiro (Silly, a mãe) e Lennie Dale (o Pai). Wagner Ribeiro, uma espécie de mentor filosófico do grupo, era responsável pelos textos e canções.[1] Um ator com qualidades cômicas singulares e forte presença cênica. Ele se apresentava travestido e encarnava a persona Silly Darling, que, com sua voz fina, pregava o amor como forma de resistência à brutalidade política do momento.
Esses treze homens praticamente nus, cobertos de purpurina, cílios postiços, perucas multicoloridas, com todos os pelos masculinos do corpo presentes, até porque não se depilavam, dançavam com sensualidade embalada por uma força sublime que mexia com a sexualidade do público. Travestidos, eles quebravam a quarta parede com atuações memoráveis em que exaltavam a liberdade em todos os sentidos. A barba e o brilho dividiam o mesmo rosto. Os corpos viris, que executavam graciosamente um bailado, carregavam no palco a dualidade entre os universos masculino e feminino, subvertendo a lógica capitalista heteronormativa do que é ser homem e do que é ser mulher. A inteligência dramática era tamanha que a censura mal conseguia enquadrá-los, uma vez que a nudez não era a única coisa a ser reprimida na encenação. “O problema não é a música, é a ideia” (Lobert, 2010, p. 64), afirmava um dos censores à época.
Faço menção, aqui, a primeira apresentação da companhia, Gente computada igual a você, de 1972, que se originou de um show de boate, no Rio de Janeiro, posteriormente levado para o Teatro 13 de maio, em São Paulo, que fez enorme sucesso com números cantados, dublados e dançados, entremeados por monólogos sobre as experiências de vida dos próprios atores numa concepção teatral diferenciada. Os textos de interligação primavam pela ironia, pelo trocadilho e tom farsesco. A montagem reciclou práticas da antiga revista musical, do cabaré e da tradição norte-americana de entretenimento. As coreografias “Tinindo trincando”, dos Novos Baianos, e “Assim falou Zaratustra”, de Richard Strauss, em versão dance e technopop, mostravam inventividade, intensidade e transgressão. Luzes piscantes, movimentos de alta precisão, frases incompreensíveis, gritos, vestimentas desarrumadas e o contraste dos corpos masculinos em trajes femininos imprimiam tons de grotesco, de deboche e espírito ferino. O ponto de partida dos espetáculos, seja de Gente computada (1972-1973) ou Dzi família croquetes (1974), estava centrado na ambiguidade. As histórias não se desenrolavam cronologicamente, mas a trilha sonora e os efeitos luminosos davam o clima e a medida do tempo; montavam-se e desmontavam-se quadros, esquetes improvisados, gestos e códigos numa profusão de acordes e cenários. A variedade de temas, de ritmo, de músicas, a “imprevisibilidade” da ação cênica, a troca entre as diferentes dimensões – a poética, a política, a ética, a história – dos testemunhos que vão se desdobrando em “atos performáticos”, em discursos de caráter multitemático, caleidoscópicos por assim dizer.
Claudio Tovar, em seu depoimento para o documentário de Tatiana Issa e Rafael Alvarez, Dzi Croquettes, de 2009, relembra a sequência “Bolero”, o duo romântico com dois galalaus fortes, Lennie Dale e Wagner Ribeiro numa interpretação sensual e provocante de “Dois pra cá, dois pra lá”, canção de Aldir Blanc e João Bosco, na gravação de Elis Regina. Lirismo articulado, pensado, que colocou em cena o mote de que “somos de carne, como croquetes” (Tovar apud Issa e Alvarez, 2009). Apesar de supostamente remeter-se ao sexo físico, vibravam sexo sensorial. Os pelos bufando, gritando entre as maquiagens e os corpos masculinos: “Não somos homens, não somos mulheres. Somos gente, como vocês”, dizia Lennie (apud Issa e Alvarez, 2009). Outros quadros musicais significativos, como “Bolero”, serão criados como “Mágica”, com Eloy Machado, “Ne me quitte pas”, com Paulo Bacellar com um vestido rosa longo e vaporoso, um chapéu enorme de abas e um tênis preto 48, “Os Carlitos”, com Cláudio Gaya e Cláudio Tovar, “Billie Holliday”, com Carlos Machado de sandália cinza metálica, flores no cabelo negro e um vestido branco tomara que caia branco, “Gafieira”, com Cláudio Tovar, Cláudio Gaya e Roberto de Rodrigues. Os Croquettes, em plena ditadura militar, representavam de maneira irreverente e ousada. No Brasil e no exterior, antropofagicamente, absorveram as experimentações existentes e acionaram o improviso como ferramenta política.
Examinar a trajetória dos Dzi Croquettes equivale a revisitar, de certa forma, o momento vivido no Brasil: seus espetáculos denunciam e subvertem enquanto nos possibilitam uma aproximação com estilos narrativos diferenciados de representação do poder institucionalizado. Delineia-se, assim, uma experiência artística que mesclava, sem dúvida alguma, comportamento, existência, sexualidade(s) e criação estética. Nessa esteira, a utilização do discurso musical afeta o espectador não só por meio dos parâmetros sonoros, mas igualmente pela sua capacidade de sugerir imagens e de inventar espaços e lugares ao criar figurações cênico-dramáticas. A canção converte-se numa espécie de pontuação, um comentário dirigido que marca os pontos essenciais da ação. É a música que argumenta e que interpreta o texto tal como um contraponto dramatúrgico. Patrice Pavis, noutro contexto, considera que a música, na encenação teatral, pode ser utilizada para preencher várias funções:
Criação, ilustração e caracterização de uma atmosfera introduzida por um tema musical, podendo se tornar um leitmotiv; durante esses intervalos o auditor faz um balanço, respira, imagina o que segue. A música é então um “remédio de conforto”.
[...]
Às vezes, a música é apenas um efeito sonoro cujo objetivo é tornar uma situação reconhecível.
Pode também ser uma pontuação da encenação, sobretudo durante as pausas da atuação, as mudanças de cenário (Pavis, 2008, p. 133).
A propósito, acrescente-se que a música sempre foi uma referência fundamental no trabalho de diferentes grupos teatrais (como o Arena, o Opinião, o Asdrúbal Trouxe o Trombone), de dramaturgos e diretores (como Augusto Boal e João das Neves). Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Vianinha, Ferreira Gullar, Paulo Pontes, entre tantos outros, engajaram-se na tentativa de criar um tipo de teatro musical que fosse ao mesmo tempo popular e autenticamente brasileiro. Por sinal, Brecht contribuía com sua teorização e o exemplo de sua dramaturgia para derrubar os preconceitos em relação ao musical. De fato, a música não precisava, “diluir e abafar a força das ideias” (Willett 1967, p. 157). Daí a pertinência da discussão que envolve o contraponto entre as linguagens musicais e plásticas na composição da polifonia intrínseca do seu teatro.
A família Dzi desenvolveu um tecido social e afetivo e uma complexa rede que envolvia toda uma geração de atores, dramaturgos, músicos e artistas visuais. Dos Secos & Molhados às Dzi Croquettas, uma versão feminina batizada de “As Frenéticas”. Toda vez que cantamos “abra suas asas/solte suas feras/caia na gandaia” evocamos um pouquinho do legado dessa companhia. A diretora Tatiana Issa, que conviveu com o grupo quando era criança enquanto seu pai, Américo Issa, fazia parte da produção, recorda: “Hoje eu olho para traz e vejo como eles foram importantes, esquecidos, celebrados, geniais. Mas, para mim, eles vão ser para sempre aqueles palhacinhos, de enormes cílios postiços, mas com uma ingenuidade quase infantil. De menino. Meu pai sempre me dizia, bicha não morre, filha, vira purpurina” (Issa apud Issa e Alvarez, 2009).
[1] Dos treze integrantes originais, nove faleceram. Destes, quatro morreram em decorrência da aids, como Leonardo Laponzina/Lennie Dale (1936-1994), Cláudio Gaya (1946-1992), Eloy Simões (1951-1987), e Paulo César Bacellar (1952-1993). Três foram assassinados, como Reginaldo de Poly (1949-1984), em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Os outros dois, como Carlos Machado (1943-1987) e Wagner Ribeiro de Souza (1936-1994), foram vítimas de latrocínio. Roberto de Rodrigues (1945-1989) sofreu um acidente vascular cerebral. Rogério de Poly (1952-2014), faleceu em decorrência de um coma provocado pelo diabetes e pela hepatite C.
Conclusiones:
Arte e política
Situar espetáculos (e/ou filmes) no contexto histórico em que eles foram concebidos, produzidos e distribuídos não significa “fazer a obra confessar um sentido inconsciente” que ela esconderia, não se trata de absorver o social ou o histórico pelo teatro, ou vice-versa, nem se trata tampouco de postular que o sentido seria importado de um “exterior” num recipiente, que deveria ser extraído como um “corpo estrangeiro”. Trata-se de examinar simplesmente como o sentido é produzido – mas este “simplesmente” exige atenção, saber, precaução (Leutrat, 1995, p. 45). Exatamente porque ler significa “articular”, estabelece-se um processo de interação dialética, que implica uma atividade mental, à medida que envolve o desenvolvimento da capacidade de organização das sensações. Ettore Scola ao se pronunciar sobre por que “deixa suas histórias em aberto”, diz: “é o público que deve concluí-las. Um filme não tem o poder de mudar uma realidade, mas pode convidar ao questionamento. Esta, para mim, deveria ser a função do cinema. Por isso prefiro não ter finais muito fechados, nem heróis” (Scola, 2001, p. 18). Mais do que elaborar quadros explicativos que organizam o real, a encenação abre brechas, sim, para a casualidade, para o imponderável. Nessa perspectiva, importa mais compreender e refletir sobre a realidade social de um determinado período. Interessam mais as indagações sobre a história ou, se quiser, a miscelânea de linguagens.
De certa maneira, a proposta cênica dos Dzi pode ser entendida como um discurso que, como um ato comunicativo, utiliza códigos – verbais, gestuais, visuais, auditivos, culturais, estéticos etc – que possibilitam múltiplas percepções e que se situam em complexas lógicas sociais, sempre passíveis ao olhar do espectador. Torna-se possível perceber como o teatro é um lugar privilegiado para captar, em diferentes momentos, as articulações e as negociações de ideias e imagens, as tensões entre distintos modelos estéticos.
Arte e política se misturam e se contaminam, trazendo consigo não só a transgressão da ordem e a crítica bem-humorada aos papéis convencionais de gênero, mas também a crítica da forma e do conteúdo de sua própria atividade (Denis, 2002, p. 88). Isso se faz evidente na fala do diretor de teatro José Possi Neto:
"Eles não estavam nem um pouco engajados com política institucional. Mas é claro que era político. Qualquer ato é político. E havia uma revolução de comportamento, e liberação sexual e de valores morais com relação à masculinidade e feminilidade, que eles são o grande grito” (Neto apud Issa e Alvarez, 2009).
Toda essa movimentação performática era recheada de alegorias, objetos, roupas, corpos, músicas, imagens e de um palavreado muito particular no Brasil da década de 1970. “Tá boa santa?/ Tá sentada/ Que eu já tô com o pé na estrada!/ Não sou dama, nem valete, eu sou um Dzi Croquette” (Lins apud Issa e Alvarez, 2009).
Bibliografía:
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Filme
Issa, T. e Alvarez, R. (dir.). (2009). Dzi Croquettes. Tria Productions e Produções Artísticas, 110 min., son., color. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=OGrIMj-4UWc>. Consulta em 10 dez. 2022.
Palabras clave:
Dzi Croquettes; sonoridades; performances; androginia.