Resumen de la Ponencia:
O semiárido do Nordeste brasileiro tem um histórico de escassez de água, por sua vez associado a conflitos, estratégias de dominação das elites, fome, morte e saída dos flagelados da seca para o litoral e outras regiões. Os órgãos públicos procuraram durante décadas dar resposta à seca através da construção de infraestruturas hídricas (barragens, adutoras, poços...), mudando de estratégia nas últimas décadas para a convivência com o semiárido, que incluiu um outro entendimento sobre o problema, assim como adoção de tecnologias sociais operadas pelos usuários e políticas sociais de fortalecimento das comunidades mais vulneráveis. Apesar do que foi feito e da chegada da água da transposição do rio São Francisco, vários especialistas questionam os encaminhamentos, a visão sobre a seca e gestão da água. No seguimento de reflexões internacionais, João Abner Guimarães Júnior, entre outros, tem insistido que o problema do Nordeste, e em particular do Rio Grande do Norte, é de gestão, havendo água para suprir as demandas do abastecimento doméstico e da agropecuária. A última seca 2012-2018 coloca a questão em outro patamar, na medida em que introduz a temática do agravamento das mudanças climáticas e, por consequência, da necessidade de planejamento adaptativo, resposta emergencial e justiça hídrica. O objetivo do artigo é discutir a resposta dos órgãos públicas em termos hídricos ao impacto das mudanças climáticas, analisando em particular se a visão sobre usos da água e acesso seguem a discussão sobre clima e justiça social ou se se mantém o paradigma de construir infraestruturas para alimentar o modelo agro-exportador consumidor de grandes quantitativos de água. Para se cumprirem os objetivos, analisamos a literatura e as políticas públicas com incidência na questão climática.
Introducción:
O histórico de secas do semiárido do Nordeste brasileiro marca a sua identidade, associando a dimensão climática a dimensões socioculturais, a políticas públicas e a práticas tradicionais que permitem lidar com a escassez de água. A seca se apresenta através de dimensões sociológicas impregnadas no modo de ser e se relacionar das comunidades. A literatura e o jornalismo desde cedo deram a conhecer o problema ao Brasil e ao mundo, contribuindo igualmente na construção de uma identidade regional em que a seca se apresenta como elemento central. Os relatos não mostram apenas os episódios de seca, mas igualmente a resistência do sertanejo face à seca e às desigualdades no acesso à terra e água, bem como as características do bioma e o desenvolvimento de atividades econômicas em um contexto climático adverso e dominado pelas elites regionais históricas (Cunha, 2016; Albuquerque Júnior, 2011; Ferreira, 2021).
Sobre a dimensão social do fenômeno, Djacir Menezes (1970, p.185) afirmou que “a sêca é fenômeno sociológico mais que meteorológico", repercutindo-se "no meio humano com tanto mais força quanto mais densas as relações humanas” . O tema tem a ver essencialmente com os interesses enraizados e capacidade de influência das elites, que historicamente se articulam para tirar benefício do reforço da resposta hidráulica à seca. A discussão é conhecida como "indústria da seca", sobre a qual Callado (1960, p. 5-7) afirma que “Naturalmente, há uma teia de interesses criados que envolvem uma tradicional calamidade brasileira. Mas é uma indústria disfarçada e indefinida”, beneficiando aqueles cujas terras ficarem na área irrigável dos açudes, que enriquecem do dia para a noite.
A seca é conhecida desde a chegada dos portugueses e a construção de açudes foi a primeira medida que implementaram. A partir da Grande Seca de 1877-1879 o problema ganhou atenção nacional. Mais tarde, a criação de órgãos federais específicos procurou dar resposta à seca através da construção de infraestruturas hídricas, destacando-se a construção de açudes, barragens, adutoras, e a abertura de cacimbas e poços. Buscou-se igualmente conhecer mais sobre a região através do envio de Comissões Científicas, ainda assim demorando a consolidar a resposta federal ao problema.
A criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909, e dos desenvolvimentos posteriores, constitui um marco importante, assistindo-se gradualmente a uma mudança de tipologia de resposta ao problema, enveredando pela chamada convivência com o semiárido. Do ponto de vista interno podemos considerar que essa mudança foi influenciada por dinâmicas por sua vez ligadas a perspectivas de desenvolvimento decorrentes da criação, em 1959, da SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste.
A partir da década de 1990, pela forte influência dos movimentos e organizações da sociedade, o paradigma da convivência com o semiárido operou uma grande transformação que repercutiu com maior amplitude no espaço rural nordestino, diminuindo os problemas socioeconômicos mais latentes da região. A nova visão inclui, nomeadamente, outro entendimento sobre o problema da seca, assim como adoção de tecnologias sociais operadas pelos usuários e políticas sociais de fortalecimento das comunidades mais vulneráveis, no que apresenta um forte vínculo à dinamização da agricultura familiar e promoção da agroecologia como proposta de soberania alimentar (Buriti e Barbosa, 2018; De Moura e Granja, 2022). No paradigma hidráulico foram importantes os avanços no armazenamento de água, mas ainda é necessário fazer muito quanto à universalização do acesso e à gestão. O último período de seca 2012-2018, coloca a questão em outro patamar, na medida em que introduz a temática do agravamento das mudanças climáticas e a necessidade de planejamento adaptativo, reforçando a preocupação com a justiça hídrica, o cumprimento do direito humano à água e dos objetivos de desenvolvimento sustentável.
A chegada da água da transposição do rio São Francisco, em 2017 aos estados de Pernambuco e Paraíba, e em 2022 aos estados do Ceará e Rio Grande do Norte, atenuou a rejeição sofrida inicialmente, passando a ser questionada de forma menos conflituosa, dado se tratar de um reforço na garantia hídrica regional. Ainda assim, no seguimento de reflexões de autores como Pedro Arrojo Agudo (2009), vários especialistas questionam os encaminhamentos e a visão sobre a seca e gestão da água, quanto ao fato da crise hídrica ser primeiramente uma crise de governança e de ser necessária uma nova cultura da água. Sobre o Nordeste, e em particular do Rio Grande do Norte, João |Abner Guimarães Júnior (2016) tem insistido que o problema é de gestão, havendo água para suprir as demandas do abastecimento doméstico e da agropecuária.
É nosso objetivo discutir os novos desafios da gestão de recursos hídricos no Rio Grande do Norte face ao impacto das mudanças climáticas, analisando em particular se a gestão detém capacidade de resposta para o agravamento de problemas relacionados à escassez hídrica ou se mantém estruturas políticas que tornam o acesso à água desigual. Em particular, analisamos se a visão sobre usos da água e acesso seguem a discussão sobre clima e justiça social ou se se mantém o paradigma de construir infraestruturas para alimentar o modelo agro-exportador consumidor de grandes quantitativos de água. Para tal, partimos do pressuposto que a convivência com o semiárido se coloca já como uma política de adaptação climática, porém, com limitações de contexto e tipologia de resposta, essencialmente decorrentes do abastecimento de água rural e de sistemas produtivos familiares que garantam soberania alimentar; enquanto isso, a adaptação remete para o planejamento adaptativo de cidades e municípios de forma mais abrangente. Para cumprir nossos objetivos, procedemos à revisão da literatura sobre as temáticas do semiárido e da adaptação e à análise das políticas públicas estaduais com incidência na questão climática.
*A pesquisa integra o projeto Desafios para a gestão sócio-ambiental e de adaptação às mudanças climáticas em cenários de riscos e vulnerabilidades socioambientais em municípios do semiárido do Rio Grande do Norte financiando pela FAPERN – Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio Grande do Norte, com coordenação geral no Programa de Pós Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da professora Zoraide Souza Pessoa.
Desarrollo:
Evolução das estratégias de resposta às secas no semiárido nordestino
Historicamente, uma das dificuldades na resposta às secas era não só a ausência do tema na agenda política mas, sobretudo, a falta de conhecimento sobre o território e a falta de vias e meios de transporte, o que atrasava a chegada de notícias e de auxílio. Por ordem imperial foram nomeadas várias comissões científicas. Antes da Grande Seca, a Comissão Científica de Exploração que esteve no Ceará, de 1859 a 1861 acabou não encontrando um quadro climático crítico, pois foram anos regulares. A partir de 1877 seguiu-se uma Comissão Científica do Instituto Politécnico presidida pelo Conde D’Eu, que propôs importantes obras para a região. Em 1881, outra Comissão Científica recomendou a criação de uma instituição voltada ao combate da seca e a construção de açudes, consolidando-se a partir daqui a açudagem como instrumento de combate à seca (Macedo, 2014).
A Grande Seca do séc. XIX foi marcada pelas primeiras políticas de auxílio aos chamados retirantes ou flagelados da seca, que passam a ser enviados para as frentes de trabalho na região, mas também para a exploração da borracha na Amazônia e para a produção de café no eixo São Paulo-Rio de Janeiro (Ferreira; Paiva; Mélo, 2020). Face à gravidade do problema, em 1878, no Ceará foi aprovada a proposta Pompeu-Sinimbú com o objetivo de dar trabalho aos flagelados (Cândido, 2012; Sousa, 2019), iniciando uma nova fase nas políticas de resposta à seca, que deu trabalho, permitiu construir várias infraestruturas, como sejam as linhas de trem, e afastou os retirantes da ‘ociosidade’ e constituiu uma imposição aos considerados aptos para acessarem ao socorro do governo (Cândido, 2012).
A ocorrência de secas no início do séc. XX impulsionou a criação, em 1904, no Ceará da Comissão de Açudes e Irrigação e no RN da Comissão de Estudos e Obras Contra os Efeitos das Secas e da Comissão de Perfuração de Poços, as quais, segundo Guerra (1981), estiveram na origem da criação de instituições nacionais: primeiro, da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), criada em 1909, através do Decreto 7.619 de 21 de Outubro, sendo o primeiro órgão a estudar a problemática do semiárido; passando a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1919, pelo Decreto 13.687; e finalmente a Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), em 1945 pelo Decreto-Lei 8.846, de 28 de Dezembro. Não menos importante foi a Constituição Federal de 16 de julho de 1934, que introduziu uma primeira tentativa de planejar possíveis respostas à seca e cujo Art. 177, regulamentado pela Lei 175, de 7 de janeiro de 1936, criando o Polígono das Secas, a primeira delimitação territorial a ser beneficiada com ações governamentais de defesa contra os efeitos da seca, envolvendo grande parte do atual território do Nordeste brasileiro neste recorte espacial. Ao longo do tempo, foram incorporados outros territórios de estados localizados na região sudeste do Brasil.
É conhecido historicamente o fenômeno das secas no semiárido nordestino, porém, durante séculos pouco ou nada foi feito, à exceção de peditórios assistencialistas e da construção dos primeiros açudes para armazenamento de água. A construção de reservatórios marcou as políticas durante o Império, nesse sentido os governos provinciais tentavam a todo custo garantir as suas necessidades de água. A severidade das secas da primeira metade do séc. XIX, em particular das secas de 1844 e 1845, mostrou ser urgente avançar com políticas públicas de reforço do armazenamento de água e de apoio às populações. Todavia, mais três décadas sem a ocorrência de secas quase fizeram esquecer o problema, deixando a região impreparada. A Grande Seca de 1877-1879 provocou milhares de mortos por ausência de auxílio alimentar, motivando a atenção do Imperador, que em visita a Fortaleza afirmou: “Venda-se o último brilhante da coroa, contanto que nenhum brasileiro morra de fome!" (Ferreira, 2021).
Data de 1707 o primeiro relato da prática da construção de açudes, atribuído ao padre Manoel de Jesus Borges, mas a prática seria comum, uma vez que os portugueses usavam-nos na metrópole. Seguiram-se outros, geralmente construídos de pedras ou terra a reter a água aproveitando o relevo. O açude Velho de Campina Grande foi construído em 1830. Com a ocorrência da Grande Seca a açudagem ganhou novo fôlego, ficando marcada pela construção, por ordem de D. Pedro II, do Açude do Cedro, em Quixandá, Ceará. A partir da criação do IOCS aumentou o número de reservatórios, tanto públicos quanto privados. Em 1936 foi construído o açude Itans (Caicó), em 1942 o Sistema Curema-Mãe D`Água; em 1961 foi concluído o açude Orós, no Ceará; em 1968 o açude de Pau dos Ferros; em 1973 foram iniciadas as obras da barragem do Sobradinho integradas nas políticas do Governo federal de construção de grandes projetos hidroelétricas.
Das obras contemporâneas, destaca-se a inauguração, em 1983, da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, a maior do Rio Grande do Norte; e em 2003 foi inaugurado o açude Castanhão, no Ceará, o maior açude do Nordeste. Em 2017 foi inaugurado o Eixo Leste da transposição da água do Rio São Francisco, que viu em 2022 ser inaugurado o Eixo Norte. No Rio Grande do Norte a expectativa é que em 2023 seja inaugurada a barragem de Oiticica, que além do controle de inundações e segurança hídrica dos municípios do interior do estado, terá a função de reservatório de armazenamento da água da transposição disponível para uso na barragem Armando Ribeiro Gonçalves.
Transição de agendas governamentais no Nordeste: do combate à seca à convivência com o clima semiárido
A região persiste na insistência hidráulica, que considera as obras hídricas como indutoras de desenvolvimento. Esse paradigma não é um exclusivo do Brasil, foi assim durante cerca de um século, mas a partir da década de 1960 deu destaque a preocupações com a disponibilidade do recurso, a desigual distribuição e a contaminação, temas colocados em pauta na cena internacional, que evoluíram e repercutiram na tipologia de resposta à seca nordestina, que em muitos momentos contou com o socorro de instituições multilaterais como as Nações Unidas e o Banco Mundial, nas últimas décadas..
A mudança de paradigma iniciou-se a partir da criação da SUDENE, em 1959, quando na presidência de Juscelino Kubitschek, com Celso Furtado na coordenação do novo órgão e de uma nova de estratégia de desenvolvimento do Nordeste, fica notória uma preocupação em criar condições para que os flagelados da seca não tivessem de abandonar os seus territórios. A sua visão mais alargada de desenvolvimento e os planos de irrigação nacionais e regionais subsequentes visaram criar condições de emprego e diversificação das atividades econômicas, incluindo agrícolas. Contudo, não evitou o grande fluxo de migração registrado no Nordeste entre as décadas de 1960 a 1980 em direção ao sudeste brasileiro.
A passagem do combate à seca para a convivência com o semiárido apenas começaria a incorporar essa perspectiva a partir da segunda década de 1990, integrando igualmente a proposta de implementação de tecnologias sociais, que como afirmam Buriti e Barbosa (2018, p. 62), passam por ações “desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social”. O combate à seca significa enfrentar o clima através de obras hidráulicas e de políticas assistencialistas no auxílio às populações. A convivência com o semiárido implica políticas transversais de apoio ao retirante, mas também à agricultura familiar, aplicação de tecnologias sociais e de políticas de apoio aos trabalhadores do campo (Buriti e Barbosa, 2018; De Moura e Granja, 2022). Os desenvolvimentos ocorridos a partir desta década seguem três tendências complementares.
Desde a aprovação da Constituição Federal de 1988 e até meados da década seguinte assiste-se ao surgimento de novos atores sociais (De Moura; Granja, 2022) resultantes da abertura participativa e democrática, a novas políticas públicas transversais e desenvolvimentos no campo científico que beneficiaram proprietários agrícolas ou mesmo sem terra, que até essa data praticavam agricultura de subsistência. Destacam-se as transformações na ciência dos solos e agroecologia que acaba estando na origem do forte fomento da agricultura familiar no Brasil através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), criado em 1995 pelo Governo Federal. Paralelamente, é importante destacar os seguros de colheita e a assistência técnica e extensão rural. Entre outras medidas que se foram fortalecendo de referir a aposentadoria rural, a expansão da rede de escolas, o abastecimento de água, a criação de unidades de saúde e outros serviços públicos igualmente importantes.Centralidade do clima e tecnologias sociais através de políticas públicas de baixo para cima, correspondendo ao momento da criação da Articulação Semiárido (ASA), surgida no contexto da discussão climática internacional ocorrida em Recife, em 1999, da Conferência das Partes sobre Mudança Climática (COP3). A ASA lançou uma alteração de paradigma com preocupações de acesso universal à água e terra por parte das famílias do semiárido. O P1MC – Programa Um Milhão de Cisternas e o P1+2 Programa Uma Terra e Duas Águas foram importantes indutores da pequena agricultura familiar e da valorização da mulher do semiárido. Esta fase alarga-se igualmente a preocupações com o desenvolvimento sustentável e o acesso universal a outros serviços públicos, entre eles a saúde, educação, a moradia e igualdade de gênero. Com críticas ao modelo depradatório da natureza, “a lógica da convivência emergente na lei adere ao discurso de protagonismo social da sociedade civil”, ou seja, consolida-se a convivência com o semiárido não como apenas uma tipologia, vem pautada com a lógica da democratização do acesso à terra e à água, e influenciando “novas formas de ações das organizações da sociedade civil” e das políticas públicas regionais, assim como “novas relações entre Estado e Sociedade” (De Moura; Granja, 2022, p.3-4)Nos anos mais recentes têm emergido uma preocupação mais abrangente sobre território, clima e adaptação planejada. Esse momento resulta das preocupações climáticas globais, mas também do fato da seca 2012-2018 trazer novas preocupações. A expectativa é que se implementem políticas com visão integrada do problema, respostas diversificadas e articuladas entre a União, a política estadual e municipal.
O enfrentamento das mudanças climáticas nos coloca perante desafios de diferentes níveis e problemas que fomos adiando e que agora se multiplicam (Marengo, Cunha & Alves, 2016). A ausência de soluções de saneamento na maioria dos municípios, a poluição setorial da agricultura ou indústria são uma dificuldade acrescida. Mas também os problemas na gestão (Guimarães Junior, 2016) e dificuldades estruturais de garantia de reserva de água nos mananciais, o que obriga à aplicação de medidas como sejam rotatividade do abastecimento e situações de corte no abastecimento e a necessidade de recorrer ao carro-pipa, mas também problemas com a qualidade da água abastecida, que obriga à aquisição de água mineral. A transposição da água do rio São Francisco, cujos canais percorrem mais de 700 km para levar água aos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, ganhou aceitação com o avanço do impacto climático, na medida em que pode constituir-se como uma reserva estratégica para o nordeste em contexto de seca prolongada.
Como será possível a convivência com o semiárido em um contexto de mudança climática?
Demonstramos neste tópico que a convivência com o semiárido e a adaptação climática não seguem caminhos totalmente convergentes, na medida em que a convivência acaba sendo mais restrita do ponto de vista do território e com uma preocupação no sentido da coesão social e cidadania, enquanto isso, a adaptação tem uma base social e política que demanda mais do planejamento e dos órgãos públicos. Um dos maiores problemas não é necessariamente de falta de água, mas de gestão, crise de governança e falta de capacidade adaptativa, impossibilitando a região para enfrentar as mudanças climáticas. Institucionalmente, o setor de recursos hídricos é bastante vulnerável, sem quadro de pessoal efetivo e quadro de funcionários bastante rotativo, desatualização dos planos de recursos hídricos estaduais e de bacias, lacunas na participação, não implementação dos instrumentos da política federal de recursos hídricos, como por exemplo, a cobrança pelo uso da água. Tais lacunas foram identificadas por Dias (2020), que realizou uma análise da capacidade adaptativa da gestão de recursos hídricos no Rio Grande do Norte às mudanças climáticas.
Persistem problemas no acesso à água e esgotamento sanitário, tal como persistem resquícios do paradigma de combate à seca, em opções como a construção de grandes infraestruturas hídricas, em muitos casos por insistência em um modelo agro-exportador consumidor de grandes quantitativos de água. Durante a seca 2012-2018 a fruticultura irrigada viu aumentar a área de cultivo de melão e melancia recorrendo a água subterrânea, uma utilização sem avaliação de possíveis impactos. Também as ações emergenciais, nomeadamente o recurso ao carro-pipa, faz ressurgir as inquietações quanto ao controle da terra e água pela citada “indústria da seca”. Sem esquecer que o desinvestimento em tecnologias sociais pelo anterior governo agrava a situação das comunidades rurais difusas, que sem a continuidade do programa de construção de cisternas mantém as dificuldades no abastecimento de água.
O modelo produtivo e as soluções de adaptação que venham a ser questionadas terão de levar em conta que as secas são cada vez mais prolongadas e afetam os territórios de forma desigual. A falta persistente de informação sobre poluição e água subterrânea constitui uma limitação à elaboração de bons diagnósticos. Por outro lado, persistem dificuldades na elaboração dos Planos de Bacia, na cobrança por água bruta, nos processos participativos e nos mecanismos de governança com vista à resolução de conflitos. Em resultado, as decisões essencialmente técnicas não permitem a consolidação de processos de governança, persistindo conflitos pelo território e pelos usos da água.
Sobre a questão climática vinculada às discussões globais, entre as questões que se colocam é se políticas estaduais de convivência com o semiárido se constituem como políticas de adaptação climática ou se temos políticas climáticas para dar resposta aos problemas do semiárido no sentido estadual? Na análise realizada não identificamos essa vinculação e não encontramos de forma abrangente e consolidada a existência de instrumentos de planejamento associados à temática climática. Identificamos essencialmente planos com a preocupação tradicional de dar resposta à seca, a preparação para a convivência com o semiárido, a prevenção da desertificação ou com o desenvolvimento sustentável, mas sem apresentarem aprofundamento e manifestarem uma tendência antecipatória de eventos climáticos da parte das políticas públicas.
O estado do Ceará, através da Lei nº 14.198, de 05 de agosto de 2008, foi o primeiro a apresentar a sua Política Estadual de Combate e Prevenção à Desertificação, entendendo:
por desertificação a degradação das terras nas zonas semi-áridas e sub-úmidas secas resultante de fatores diversos, entre os quais as variações climáticas e as atividades humanas capazes de causar redução ou perda da complexidade do solo e da produtividade biológica ou econômica, também deve-se entender a degradação da cobertura vegetal e o esgotamento dos recursos hídricos, tanto superficiais como subterrâneos (Governo do Estado do Ceará, 2008).
O estado da Paraíba aprovou através da Lei nº 9950 de 07/01/2013, a Política Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, definindo convivência com o semiárido como a:
relação entre o homem que trabalha na perspectiva do manejo sustentável dos recursos e o seu habitat, através da capacidade de aproveitamento dos potenciais naturais e culturais em atividades produtivas apropriadas ao meio ambiente, inclusive do conhecimento tradicional e práticas relacionadas à forma de conhecer e intervir nessa realidade, visando a melhorar as condições de vida e a permanência das famílias residentes no semiárido brasileiro (Governo do Estado da Paraíba, 2013).
Identificamos igualmente a Lei nº 13.572 de 30 de agosto de 2016, que aprova a Política Estadual de Convivência com o Semiárido do estado da Bahia, a qual define convivência com o semiárido como a:
perspectiva orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável do semiárido, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania no campo e na cidade, por meio de iniciativas educacionais, sociais, econômicas, culturais, ambientais e tecnológicas, contextualizadas e adequadas à vida na região (Governo do Estado da Bahia, 2016).
A ligação entre a convivência com o semiárido e o desenvolvimento sustentável aparece também no Rio Grande através da Lei nº 10.851, de 20 de janeiro de 2021, a qual estabelece a Política Estadual de Convivência com o Semiárido, referindo-se à política de convivência com o semiárido como uma “perspectiva orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável do semiárido, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania, por meio de iniciativas sociais, econômicas, culturais, ambientais e tecnológicas contextualizadas e adequadas à vida na região” (Governo do Estado do Rio Grande do Norte, 2021).
A Política Estadual de Convivência com o Semiárido de Pernambuco, aprovada através da Lei nº 14.922, de 18 de março de 2013, indica que a “estratégia para promover o acesso à água no meio rural tem como princípio fundamental assegurar água para beber e demais usos domésticos, água para a comunidade, água para a produção de alimentos e dessedentação animal, água para emergência e água para o meio ambiente” (Governo do Estado de Pernambuco, 2013).
Por último, na Política Estadual de Combate à Desertificação (PECD) do estado de Sergipe, aprovada através da Lei nº 8785 de 6 de novembro de 2020, é feita ligação à temática do desenvolvimento sustentável, que na redação da política é “alcançado por meio de medidas de apoio financeiro e não-financeiro que visam conferir operacionalidade e viabilidade econômica para as ações sobre combate à Desertificação, Degradação da Terra e Seca” (Governo do Estado de Sergipe, 2020).
A análise preliminar permite concluir que estamos ainda marcados pelo paradigma da convivência com o semiárido, com tentativas de resposta à desertificação e de inclusão do paradigma do desenvolvimento sustentável, mas que mesmo assim se refere essencialmente à inclusão de dimensões sociais nas preocupações políticas, refletindo-se de modo incipiente nos instrumentos de planejamento e na resposta climática global. A preocupação é essencialmente com terra, solo, vegetação e acesso à água indicado ao meio rural. A sustentabilidade é vista como concretização da cidadania, não refletindo preocupações climáticas com mitigação e adaptação, o que mostra uma visão da seca histórica essencialmente como um problema regional.
Conclusiones:
A seca no semiárido nordestino enfrenta um novo desafio com o agravamento da condição climática global, podendo se repercutir na severidade de mais eventos extremos. Perspectiva-se um novo paradigma focado no impacto dos eventos climáticos e não apenas de convivência com o semiárido e combate à desertificação, na medida que a persistência dos eventos extremos climáticos também repercutirá sobre as ações utilizadas para convivência no Nordeste. A seca de 2012 a 2018 foi a mais severa dos últimos 150 anos e uma das mais longas da história. Ainda que não tenha ocorrido o fenômeno dos retirantes em massa de décadas passadas e os estados tenham conseguido mitigar as carências de abastecimento, mostra-se necessário repensar as políticas no sentido da antecipação dos impactos, de modo a reduzir situações de escassez junto das comunidades e sistemas produtivos.
A matriz histórica da seca enquanto elemento enraizado no tecido social e modelando relações de poder necessita ser ultrapassada. Precisamos avançar no sentido do planejamento e projetando ações igualmente no sentido do desenvolvimento regional, bem como em dispositivos participativos e de governança que envolvam os órgãos públicos, a sociedade civil, as empresas, as escolas e universidades. O tema tem ganhado grande amplitude internacional, mas tarda em integrar as políticas regionais vinculadas ao semiárido e à nova agenda do clima. União, estados e municípios têm maior responsabilidade, na medida em que a articulação entre atores sociais e o avanço de ações é da sua competência.
As conclusões da pesquisa apontam para uma resposta enquadrada na tipologia tradicional de enfrentamento da seca e desertificação do semiárido. Estamos longe de integrar problemas abrangentes e gravosos que compõem as preocupações globais. É notória uma preocupação com as comunidades rurais no sentido do provimento de água e fomento de pequenas atividades produtivas, como sejam a agricultura familiar. A inclusão da temática da sustentabilidade parece essencialmente inclinada para as dimensões sociais decorrentes de desigualdades no acesso à terra e água, bem como preocupações com a temática dos solos e do bioma através da inclusão da desertificação. Entretanto, esses aspectos não dialogam com as perspectivas de observância de mecanismos de adaptação às mudanças climáticas e aos possíveis riscos e ameaças que pode provocar aos avanços alcançados com as ações de convivência.
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Palabras clave:
Semiárido brasileiro, seca, mudança climática, gestão da água, adaptação.