Resumen de la Ponencia:
O conteúdo deste trabalho é resultado da pesquisa de mestrado que está sendo desenvolvida desde 2022 no âmbito do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Trata-se, portanto, da apresentação de ideias e conceitos preliminares da reflexão teórica que antecede a ida à campo que ocorrerá durante o ano de 2023. O assunto gira em torno da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICS) por agricultores familiares que fazem parte da comunidade escolar da E. E. Professor Homero Calvoso, que se localiza no município de São Pedro do Turvo, São Paulo. Por se tratar de uma pesquisa que considera o período de 2020 a 2023, e assim abarcando o advento da pandemia do vírus causador da Covid-19, e mais especificamente os desafios tecnológicos que o combate à propagação da doença trouxe à tona para essas famílias de agricultores, optamos, assim, por considerar apenas as famílias vinculadas a E. E. Professor Homero Calvoso. Com isso, caracterizando a pesquisa como um estudo de caso, singular em sua eventualidade no tempo e espaço. Na introdução, o trabalho traz um breve relato do contexto que levou a formulação do problema de pesquisa. Em seguida, desenvolvemos a questão teórica sobre as mudanças do mundo rural diante da realidade da digitalização da vida familiar. Conclui-se, por fim, apresentando uma hipótese bourdieusiana em resposta ao problema levantado, hipótese que deverá ser testada empiricamente na próxima etapa da pesquisa.
Introducción:
A percepção social que originou a pesquisa decorreu da observação das mudanças ocorridas na dinâmica do funcionamento da E. E. Professor Homero Calvoso durante o advento da pandemia do vírus SARS-Cov-2. Tais mudanças foram observadas devido à atuação do pesquisador como professor do Projeto de Apoio à Tecnologia e Inovação (PROATEC) nessa escola, localizada no município de São Pedro do Turvo, São Paulo, que conta com cerca de 7.724 habitantes, segundo estimativa do IBGE (2010).
Cumpria-se, nessa função, a tarefa de acompanhar as atualizações das plataformas digitais implementadas pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEDUC), assim como auxiliar o uso dos equipamentos de tecnologia recém implementados na escola. Além disso, a elaboração de formações para professores e alunos apresentando as principais mudanças que ocorriam periodicamente na plataforma de aula online.
Como PROATEC e estando diariamente em contato com alunos e familiares, ficou claro que a necessidade de adaptação às tecnologias necessárias para o cumprimento das atividades escolares se tornou uma preocupação familiar, principalmente àqueles que residiam distantes da escola, na área rural do município, com pouca cobertura das operadoras telefônicas (empresas que fornecem internet por rede móvel).
Nesse processo acelerado de aquisição de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), computadores, celulares e internet sem fio, tornaram-se instrumentos de importância sem precedentes para estudantes integrantes de famílias de agricultores, já que deixar de adquirir uma das tecnologias necessárias para o acesso à internet trazia o risco de que esses alunos ficassem à margem do processo de aprendizado, uma preocupação familiar que foi constatada no decorrer do ano letivo de 2021.
No dia a dia, ficou evidente que o isolamento social como instrumento de combate à propagação do vírus, e a consequente implementação do ensino remoto pelo Estado, acelerou a adoção de TICs no espaço escolar. E a indagação sociológica acerca de tal experiência enquanto integrante da comunidade escolar, resultou na proposta desta pesquisa acerca das transformações ocorridas no ambiente das famílias que pertencem à agricultura familiar de São Pedro do Turvo.
Ressaltamos que não se trata de uma pesquisa sobre educação ou gestão escolar, mesmo que o ponto de partida da indagação se encontre em observações do pesquisador enquanto professor da escola pública. De fato, a escola pode nos interessar enquanto instituição do Estado, capaz de criar demandas culturais e materiais que afetam a vida dos agricultores que possuem algum vínculo com a instituição. Mas, o nosso foco está, enfim, em articular questões referentes ao contexto da propriedade rural, em nível local, considerando as mudanças nas relações intrafamiliares do pequeno agricultor, tema sobre o qual trata o campo da Sociologia Rural.
Portanto, a pesquisa toma como questão central a seguinte problematização: como as famílias de agricultores que compõem a comunidade escolar da E. E. Professor Homero Calvoso, desde o ano letivo de 2020, utilizam as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)?
Indícios do processo de digitalização das famílias podem ser observados a partir de dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Informações divulgadas pela Agência parecem evidenciar que o processo de rápida digitalização não ocorreu apenas em espaços mantidos e financiados pelo Estado de São Paulo, como é o caso do E. E. Professor Homero Calvoso; muito além disso, boa parte da população do município de São Pedro do Turvo parece ter acompanhado a mesma onda de aquisição acelerada de equipamentos com acesso à internet.
Considerando o período estudado, dados da Anatel (2023) mostram que houve um salto de grandeza considerável no número de acessos à telefonia móvel entre 2020 e 2021, contabilizando cerca de 1.211 novos acessos no período, saltando de 4.987 para 6.198, e assim se aproximando do total da população do município. ( Para conferir essas informações, acessar o link disponível na bibliografia)
Tendo em vista esse cenário de mudança, em que equipamentos tecnológicos capazes de acessar a internet foram rapidamente adquiridos por famílias do município que vivenciaram o período de pandemia, seguimos nossa análise para uma breve releitura do pensamento da socióloga Maria de Nazareth Baudel Wanderley, considerando sua contribuição acerca da teorização das estratégias aplicadas por agricultores familiares no que diz respeito à lógica de adaptação dessa categoria social diante das mudanças da sociedade moderna.
Desarrollo:
Agricultura familiar como conceito genérico
No artigo Raízes históricas do campesinato brasileiro apresentado no XX Encontro Anual da Anpocs em 1996, Maria de Nazareth Baudel Wanderley, intelectual expoente da sociologia rural no Brasil, conduziu uma discussão necessária naquela época sobre a agricultura familiar como categoria social a ser repensada em seu real significado. A necessidade conjuntural que justificava sua apresentação, segundo a autora, era exatamente o tratamento que o conceito de agricultura familiar vinha recebendo no Brasil, com ares de novidade e renovação, assumindo significados que expunha a abrangência do conceito e a consequente necessidade de redefinição conceitual.
No artigo citado (1996, 2009), mas também em outros trabalhos publicados pela socióloga (2004), Wanderley desenvolve hipóteses sobre o tema em questão, mais especificamente, sobre este tipo específico que é o campesinato como conceito histórico. Selecionamos duas dessas hipóteses como ponto de partida no desenvolvimento de um argumento que contribua para o estudo de “novos atores rurais” que considere o contexto de um rural cada vez mais digitalizado. Portanto, partimos das seguintes hipóteses propostas pela autora:
c) a agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar-se a um contexto socioeconômico próprio destas sociedades, que a obriga a realizar modificações importantes em sua forma de produzir e em sua vida social tradicionais;
d) estas transformações do chamado agricultor familiar moderno, no entanto, não produzem uma ruptura total e definitiva com as formas “anteriores”, gestando, antes, um agricultor portador de uma tradição camponesa, que lhe permite, precisamente, adaptar-se às novas exigências da sociedade. (p.156, 1996, 2009).
Percebemos que as duas hipóteses se inter-relacionam como partes complementares de um mesmo movimento, sendo que o contexto de acelerada modernização é assumido como relevante na definição de categorias como campesinato e ruralidades, aceita-se, assim, o particularismo histórico das manifestações sociais enquanto critério na formulação da categoria “agricultura familiar”: o conceito é gestado pela história.
Portanto, cabe retomarmos a esta perspectiva que considera o valor histórico na definição do chamado campesinato tradicional pontuando os atributos desta conceitualização como elencados por Maria de N. B. Wanderley. O camponês tradicional associado a um rural ainda de pouco dinamismo representa o ponto de partida dos estudos sociais a respeito do campesinato como uma forma particular de manifestação da agricultura familiar.
Desta maneira, é definido como núcleo produtivo que associa família, produção e trabalho, que tende a implicar em consequências particulares no tratamento do ambiente rural, tanto em nível econômico quanto no que diz respeito à reprodução social e cultural.
O sistema tradicional de produção camponesa se caracterizaria na sua bem-sucedida combinação entre diferentes técnicas de plantio, pecuária e artesanato, congregado em um sistema de produção sustentável que relaciona produtos e subprodutos na manutenção das necessidades familiares; enquanto o excedente produzido é encaminhado para relações de trocas informais ou comercialização. Como núcleo familiar produtivo, se opõe à monocultura que responde à interesses da indústria exportadora, ao manter-se econômica e socialmente direcionada na espacialidade local de vilas, bairros e cidades, de acordo com interesses de sua própria independência e interconectividade perante os iguais socialmente (p. 159, 2009).
Por ser um sistema predominantemente autocentrado, a manutenção e reprodução da tradição familiar é considerada uma questão estratégica. A maneira que cada família irá alocar seus membros no estabelecimento, a intensidade do trabalho, a associação de parentesco e vizinhança, são questões que sucedem a cada geração na busca por gerir as conquistas materiais e a sobrevivência da própria cultura (p.160, 2009).
Para Wanderley (2000, 2004), ao tratar do mundo rural do camponês, a modernização deve ser compreendida em seu potencial transformador de relações com a natureza que são reavaliadas na vida cotidiana do agricultor familiar.
É assim que devemos pensar as transformações globais que culminaram em inovações na produção como o uso massivo de agrotóxicos, sementes geneticamente modificadas, insumos químicos e uso massivo de maquinários em substituição da força de trabalho humana, modificando desigualmente a paisagem rural de países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Ou também, no que diz respeito às transformações na comunicação com a implementação de novas Tecnologias de Informação e Comunicação que ampliaram a conectividade do mundo, como o rádio, telefone, televisão, computadores, aparelho celulares em comunicação direta com satélites, tornando o consumo de bens e entretenimento uma prática cotidiana, modificando radicalmente a relação entre rural e urbano, local e global, agricultura familiar e agroindústria e etc..
Ademais, Maria de N. B. Wanderley ainda nos aponta que, como consequência da aproximação cada vez maior entre rural e urbano por meio de novas tecnologias, a agricultura familiar passa a ser observada sob lentes teóricas que refletem duas perspectivas distintas: uma baseada numa visão modernizante e outra que considera a importância da tradição para a definição do conceito. A agricultura familiar seria assim ou resultado de ações definidoras advindas do Estado, por exemplo, em sua caracterização legal na formulação de leis como a nº 9.064, assim como sujeitos de políticas públicas; ou, por outro lado, como um modo de produção que possui raiz histórica camponesa que relaciona família-produção-trabalho no ambiente rural, portador de um saber específico de gestão da propriedade, costumes e valores, e estratégias familiares (WANDERLEY, 1996, 2000, 2001, 2004).
Não cedendo a esta oposição, Wanderley propõe uma resposta possível sem abrir mão das duas perspectivas, em que considera o espaço local como um lugar do encontro entre dois “mundos” que não se anulam mutuamente ou decreta o fim do rural, pelo contrário, mas que mantém as particularidades em integração e cooperação, resultando na “configuração de uma rede de relações recíprocas, em múltiplos planos que, sob muitos aspectos, reitera e viabiliza as particularidades” (p.34, 2004).
Assim, ao invés de uma desintegração das singularidades do rural e do urbano, sua proposta encaminha a reflexão para uma incorporação do urbano ao nível local, trazendo a ideia de rupturas e continuidade no processo de modernização do modo de vida camponês.
Realidade digital na agricultura em nível local
O aspecto fundamental das mais recentes transformações que implicam desafios para a agricultura familiar na contemporaneidade brasileira, exigindo destas famílias estratégias que seguem uma lógica de rupturas e continuidades, é a da realidade vigente que ultrapassa o limite da teorização sobre a modernização baseada somente na mecanização do mundo rural, isso porque o “rural digital” começa cada vez mais fazer parte da vida local e do quadro geral de teorizações sobre “novas” ruralidades e “novos” atores. Neste capítulo, será exposto exemplos da crescente incorporação de TICs no micro espaço da propriedade do agricultor familiar.
Antes de tudo, vale lembrar que neste ano de 2022 foi iniciada em Brasília a implementação da Internet 5G, primeiro passo de um investimento que deverá cobrir todo o território nacional. A expectativa é que a nova tecnologia, que promete tornar o compartilhamento de dados na rede uma experiência simplesmente espontânea, seja tão impactante que modifique as relações sociais em semelhança (ou talvez ainda mais impactante) às produzidas por outras revoluções tecnológicas que ampliaram a velocidade de comunicação em décadas anteriores.
Pesquisa produzida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) em 2021, identificou um crescimento na proporção de usuários de internet nas áreas rurais no Brasil, passando de 53% em 2019 para 73% no ano da pesquisa, apontando para a influência do período pandêmico no acelerado processo digitalização do mundo rural, mas que, porém, pode representar apenas o preâmbulo de mudanças que se avizinham com a implementação bem-sucedida do 5G em território nacional.
Indo além das informações disponibilizadas pela CGI.br, que indica a dinâmica de mudanças em grande escala , podemos citar artigos que tratam da realidade local de agricultores familiares, como nos artigos “O perfil, o uso e a apropriação de TIC pela agricultura familiar do Vale do Caí-RS” (2016, 2020), e “Brasil e Desenvolvimento rural: a importância das TICS e dos controles econômicos e financeiros na visão dos agricultores familiares do Vale do Caí-RS” (2018), ambas realizadas em oito municípios que compõem a região do Vale do Caí no Rio Grande do Sul, e que igualmente tiveram como foco o acesso, o uso e a apropriação de TICS por agricultores familiares.
Mesmo que a pesquisa publicada em 2018 tenha tomado como referência o resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2005, a observação realizada em campo constatou que em 86% das 375 propriedades analisadas havia uma clara preferência pelo aparelho celular como principal ferramenta tecnológica de acesso à internet, mostrando estreita compatibilidade com o resultado da PNAD Contínua de 2019:
Em 2019, no País, dentre os equipamentos utilizados para acessar a Internet no domicílio, o uso do telefone móvel celular continuou na vanguarda e já próximo de alcançar a totalidade dos domicílios que acessavam a Internet (99,5%). Em segundo lugar, mas abaixo da metade dos domicílios em que havia acesso à Internet, estava o microcomputador (45,1%), seguido pela televisão (31,7%) e pelo tablet (12,0%). (PNAD, p.6. 2019).
No caso da pesquisa “Ruralidade e tecnologias de informação e comunicação” (2017), os pesquisadores empregaram entrevistas para compreender as diversas formas de uso de TICs na microrregião de Santa Cruz do Sul-RS, área em que prevalece a produção de tabaco. Nesta pesquisa notou-se questões pertinentes como o recorte de gênero e sua correspondência com diferentes maneiras de utilizar os aparelhos celulares conectados à internet:
No caso das mulheres, inclusive das duas jovens, nas moradias onde há o alcance do sinal, o telefone celular é fundamentalmente utilizado para a integração familiar. Apenas uma idosa não possui telefone celular e, portanto, não o utiliza com essa finalidade. As demais assumem o papel de mantenedoras dos vínculos familiares, atribuindo, em quase sua totalidade, especial importância a esse meio para a comunicação com os familiares. Nesse tipo de uso, o celular é visto como uma ‘tecnologia do coração’: [...] No caso das agricultoras entrevistadas, o telefone celular permite controlar as distâncias e os tempos daqueles que são próximos, mas que se encontram dispersos: ‘eu tenho irmãos morando em Porto Alegre, eu tenho irmãos morando [...] em Gravataí [...] se todos têm telefone eu consigo fala[r]. Eu não posso ir lá [visita-los], mas posso [falar] com eles... por isso que eu gosto do telefone’ (AP, 45 anos). (ESCOSTEGUY; FELLIPI, 2017).
Já sobre a irregularidade na distribuição de TICs no ambiente rural que considera o convívio entre o modo de trabalho do pequeno agricultor e a agroindústria, Maurício Fernandes (2020), no artigo “Tecnologia e ruralidades”, argumenta que o agro tech não é uma realidade geral do campo brasileiro, pelo contrário, a realidade da agricultura nacional é o da desigualdade na transferência de tecnologia, e assim um confronto permanente entre a tecnologia rústica do camponês e a tecnologia industrial do agronegócio, que pode ser compreendido sob a perspectiva da tese da colonização de Jürgen Habermas:
O sujeito do campo é portador de uma tecnologia, de uma forma específica de tecnologia arraigada no próprio modo de transformação do mundo, na tessitura própria de sua existencialidade, uma forma de tecnologia que não obedece a lógica de avanço do capitalismo tardio, e nem a lógica da ideia de progresso que sustenta este. O que ocorre atualmente no campo pode ser descrito sob a perspectiva da tese da colonização de Jürgen Habermas. Forças diretivas burocrático-administrativas forçam um avanço tecnocientífico sobre estruturas que não são de sua alçada. Tal é o caso da esterilização das sementes. Esta lógica obedece ao mercado apenas e visa ações exitosas no sentido de expandir o poder econômico e tecnológico das empresas transnacionais. (FERNANDES, 2020, p. 295).
Remetendo ao dilema hipotético de rupturas e continuidade, a tecnologia camponesa estaria alinhada com a ampla dinâmica do mundo-da-vida, uma reprodução material (econômica e política) que não subjuga e enfraquece a capacidade de reprodução simbólica (tradição, cultura e personalidade) da sociedade. Por outro lado, o advento das sociedades capitalistas tardias colocou em marcha acelerada o avanço do mundo dos sistemas em que a reprodução material intervém cada vez mais nas esferas de reprodução simbólica do mundo-da-vida:
No âmbito das relações e usos das tecnologias no campo podemos compreender a partir deste prisma. O campo, longe do que foi historicamente construído sobre o mesmo, é marcado por um processo constante de racionalização. O trato com o mundo, com a Natureza, imprime uma exigência de racionalização. É preciso compreender, interpretar e reescrever o mundo e a nós mesmos, e neste processo de racionalização e redescrição chega-se ao horizonte da crise, há um estresse nas constituições epistêmico-cognitivas que constituem as sociedades campesinas, que precisa ser resolvido sob o peso da manutenção das condições de vida. (FERNANDES, 2020, p. 299).
Na esteira dessa questão podemos pretensiosamente sugerir, tendo como base a reflexão desenvolvida no artigo “Do rural tradicional ao rural socioambiental”, de Alfio Brandenburg (2010), que um possível “rural digital” possa ser pensado como um fenômeno social que não rompe, mas sim reconfigura certos aspectos já encontrados na definição do termo “rural moderno”: este rural que incorporou a racionalização industrial da relação com o meio ambiente, seja no modo de produção agrícola, no enraizamento da lógica capitalista de consumo influenciado pelos meios de comunicação como televisão e rádio, ou na política latifundiária aplicada como política de Estado.
Por exemplo, considerar que o modo de interação em redes sociais digitais é parte do amplo processo de colonização do mundo rural não necessariamente leva a conclusão do fim do modo de vida camponês, pelo contrário, na perspectiva da teoria de “novos atores” a internet poderá ser alçada a um campo de pesquisa privilegiado para a observação da tradição reinventada e de racionalidades emergentes:
Novos atores e colonização do mundo rural são dois conceitos complementares que traduzem, de um lado, novas racionalidades emergentes (racionalidade ambiental) e, de outro, a tradição reinventada, base para ação reflexivamente construída que articula dimensões do ambiente social e natural. Novos atores nesse sentido são os personagens emergentes que se contrapõem ao domínio exclusivo da racionalidade ambiental e desenvolvem ações afirmativas no sentido de construir projetos de vida que consideram a relação com a natureza e a interação no interior da sociedade. (BRANDENBURG, 2010, p.191).
Assim, ensaiar a formulação de respostas às hipóteses apresentadas neste artigo, passa necessariamente pelo estudo de como essas famílias de agricultores percebem tais transformações e orientam suas próprias estratégias de adaptação da tradição camponesa a um contexto de crescente presença de TICs – principalmente no que diz respeito a maior presença de tecnologias que conectam o ritmo da vida rural ao fluxo de compartilhamento informacional da gigantesca rede global de computadores, a internet.
Um dos principais autores que poderá auxiliar-nos neste sentido é o sociólogo espanhol Manuel Castells, autor de uma obra quase enciclopédica a respeito do paradigma da internet como o principal tecido da vida social no século XXI.
No debate presente no capítulo “Comunidades virtuais ou sociedade em rede do livro “A galáxia da Internet", o autor aborda a oposição recorrente defendida por pesquisadores entre a pretensa ideia de uma comunidade local harmoniosa de um passado idealizado e a existência alienada e solitária do “cidadão da internet” (CASTELLS, 2003, p.98). Esta maneira polarizada de pensar a influência da internet na vida em sociedade seria fortalecida por pesquisas ainda pouco numerosas na época da publicação do livro (e ainda hoje!) que apresentavam resultados aparentemente contraditórios no que diziam a respeito do fortalecimento ou enfraquecimento de laços sociais em nível local (familiar, vizinhança, comunidade): já que algumas dessas pesquisas apontavam o fortalecimento de laços já existentes de parentesco e amizade, enquanto outras, ao contrário, traziam resultados opostos mostrando que o uso corriqueiro da internet influenciaria no enfraquecimento destes laços acarretando numa crescente não participação dos indivíduos na dinâmica da vida social em nível local (2003).
Como exemplo de uma pesquisa mais recente, o tema da fragmentação familiar como consequência da adoção cada vez maior das TICs por jovens, foi tratado no artigo “Geração, família e juventude na era virtual” de Simone Pereira da Costa Dourado e outros pesquisadores da área da Psicologia e das Ciências Sociais (2018).
Neste, foram coletados relatos que evidenciam o abismo geracional entre “nativos” e “imigrantes digitais”, ou seja, entre os filhos naturalmente adaptados ao uso das tecnologias e os pais que se esforçam na tentativa de adaptação às constantes mudanças nessa área. Os jovens mais ajustados nas exigências digitais do mundo atual estariam tomando o lugar dos seus pais como responsáveis pela educação ao se tornarem tutores no uso destas tecnologias no domicílio familiar.
As consequências desta inversão de papéis explicariam as características observáveis nas famílias contemporâneas, como o recuo de alguns pais em assumir a posição de autoridade, criando uma paridade e até uma disparidade ao inverter a lógica da responsabilidade da educação intrafamiliar (DOURADO; et al, 2018, p. 433).
É neste contexto de profunda desigualdade na distribuição da tecnologia no campo, em que o pequeno agricultor se depara com a necessidade de adaptação a um modo de reprodução material que esvazia de sentido sua tradição camponesa, que nos colocamos pensar nas causas sociológicas para a definição de estratégias para a aquisição e incorporação do uso de TICs nas propriedades de agricultores familiares em São Pedro do Turvo – SP.
Conclusiones:
O habitus como limite do cálculo estratégico
Como pretendemos sustentar até aqui, a digitalização do modo de vida do agricultor familiar contemporâneo representa um real desafio à hipótese proposta por Maria de N. B. Wanderley (1996, 2009), especificamente a proposta de que: “estas transformações do chamado agricultor familiar moderno não produzem uma ruptura total e definitiva com as formas “anteriores”, gestando, antes, um agricultor portador de uma tradição camponesa, que lhe permite, precisamente, adaptar-se às novas exigências da sociedade”.
Obviamente a autora não poderia prever no ano de publicação deste seu artigo, 1996, a revolução que representaria a popularização da internet, e poderíamos ser justamente acusados por conduzir um argumento anacrônico se tentássemos invalidar o argumento proposto em uma década em que a internet não fazia parte da realidade da grande maioria da população rural. Longe deste risco, nossa reflexão propõe pensar em possíveis continuidades da tradição camponesa no contexto de um rural em processo de digitalização, recolocando a questão de rupturas e continuidades em estratégias assumidas pelos agricultores familiares modernos, mas agora dentro do alcance explicativo da teoria de Pierre Bourdieu.
Nessa direção, nas conferências que compõem o livro “Esboço de uma teoria da prática” (2003), Bourdieu apresenta as linhas mestras da teoria do que ele denominou por habitus, conceito objeto de ampla discussão, mas que pode ser entendido como a disposição em um agente ou classe à reprodução de certas práticas, gostos, necessidades e etc., que resulta relativamente da condição objetiva (situação material de vida) e a relação desta condição com outras posições concorrentes no espaço social estruturado e temporalmente determinado.
Bourdieu buscou ir além do estruturalismo objetivista já consolidado na França, linha teórica que na sua opinião cometeria o erro de ser super explicativa e metodologicamente distante do objeto social a ser compreendido, se opondo abertamente à tradição da linguística saussuriana, a qual influenciaria o pensamento antropológico de Claude Lévi-Strauss. Assim como se opôs ao empirismo das pesquisas norte-americanas desenvolvidas pelos sociólogos da chamada Escola de Chicago, pois ela seria demasiadamente comportamentalista e incapaz de produzir generalizações. O resultado de tal investida intelectual, nos mostra Sérgio Miceli (2015), foi o habitus como um: “princípio operador que leva a cabo a interação entre dois sistemas de relações, as estruturas objetivas e práticas. O habitus completa o movimento de interiorização de estruturas exteriores, ao passo que as práticas exteriorizam os sistemas de disposições incorporadas” (MICELI, p.61).
Na proposta bouerdieusiana do conceito de habitus, a maneira de se fazer algo ganha uma importância simbólica, por exemplo, a maneira natural de praticar uma ação, de agir diante de uma entrevista de emprego, de escolher o prato no cardápio de um restaurante, ou de escolher a loja que “convém” comprar vestuário mesmo que seja exacerbada a oferta em um shopping center e etc., são todas práticas que partem do critério de distinção social que é, por sua vez, constituído pelas diferenças associadas às posições desigualmente distribuídas na sociedade em questão.
Portanto, dirá Bourdieu (2011), a distribuição das posições em um espaço social que determinará a estruturação de tipos de habitus, deve ser construído pelo pesquisador, considerando a relação entre a distribuição do capital global, que é a soma do capital econômico e cultural, e a posse ou falta desses capitais em particular num sujeito ou classe: produzindo um espaço que relaciona posições diferentes, um campo de relações, outra noção importante de sua sociologia.
Sua obra “A Distinção” (2011) mostra a potencialidade de suas formulações teóricas em uma pesquisa aplicada à realidade social francesa da década de 70, em que se utilizou de variados métodos de pesquisa, como entrevistas e estatística de correlação, para explorar dados como o gosto e a escolha por obras musicais, literaturas, preferências gastronômicas ou por artefatos decorativos. Sua análise desvendou a lógica da distribuição irregular de capital cultural e econômico, apresentando o habitus como resultado de um processo que naturaliza diferenças objetivas da sociedade (como o capital herdado, transferido ainda na primeira educação familiar) e que tende a reproduzir-se e reproduzir sua condição de constituição (a depender das chances de que este capital herdado seja legitimado por instituições de ensino responsáveis por chancelar um conhecimento por meio do reconhecimento e certificação de seu valor social), expondo uma crítica social sobre a reprodução material e simbólica da sociedade.
Outra parte importante da contribuição do conceito de habitus está no que tal conceito nos auxilia a pensar as diferenças que o processo de socialização, iniciado ainda no berço familiar, pode gerar em relação ao comportamento diante de questões da vida presente.
Assim, em “ O camponês e seu corpo” (2006), o sociólogo francês pôde observar a situação embaraçosa quando no baile de um vilarejo camponês, os homens de meia idade que nunca deixaram seu modo de vida tradicional são confrontados com a maneira urbana das jovens mulheres vindas da cidade: a modernização das músicas do baile, ou seja, a velocidade implicada no ritmo assim como o temática citadina, intimidam e vão além da capacidade corporal desses homens, diminuindo a chance da dança a dois ocorrer, frustrando as expectativas amorosas depositas na noite do baile.
Assim, finalmente, ao pensarmos em um rural em processo de digitalização, a perspectiva teórica apresentada por Pierre Bourdieu nos conduz a uma outra proposta, em que se aceita que as estratégias de adaptação da família de agricultores a uma realidade de digitalização poderá seguir a hipótese de rupturas e continuidade apresentada por Wanderley, mas que dependerá, ao nosso ver, dos limites deste cálculo estratégico que visa a adaptação diante as mudanças estruturais causadas pela acelerada digitalização do ambiente rural. E com isso levanta-se a seguinte questão: até que ponto não se produz no agricultor familiar de São Pedro do Turvo um embaraço tecnológico semelhante ao embaraço do camponês diante da música urbana no baile?
Indo além das propostas de pesquisa que analisaram a realidade do Vale do Caí ou da região de Santa Cruz do Sul-RS, não somente a questão de quais os aparelhos tecnológicos são preferidos pelos agricultores familiares para acessar à internet, mas também o conhecimento das diferentes funcionalidades do aparelho conectado à rede, seu uso e as maneiras do uso de aplicativos, assim como quais aplicativos são preferencialmente instalados no aparelho, poderá ser analisado sob a noção de hábitos, conceito em que se considera a transferência de capital econômico, cultural e, também, “digital”, iniciado ainda sob a influência familiar, e as consequências que esta transferência distintiva causa no modo de uso das TICs.
Portanto, tendo retomado a questão clássica de rupturas e continuidade na análise histórica das transformações contextuais do agricultor familiar, tomamos à mão o conceito de habitus como principal instrumento analítico para a condução de uma resposta suficientemente esclarecedora à questão norteadora da pesquisa.
Ao se desvencilhar da literatura que nos serviu como base para justificar a pertinência de nossa proposta, nos encontramos seguros suficientes para estabelecer uma hipótese que seja produto particular desse esforço de pesquisa. Assim, conclui-se a proposta do trabalho estabelecendo como hipótese que será testada em relação aos dados empíricos da pesquisa, a que segue: no período de acelerada digitalização da prática escolar durante o isolamento social, e a consequente digitalização do ambiente intrafamiliar dos camponeses de São Pedro do Turvo - SP, diferentes estratégias de adaptação ao novo contexto foram empregadas pelas famílias que constituem o corpus empírico da pesquisa, estratégias que seguiram a lógica de distinção social nas escolhas e no modo de utilizar as TICs, baseada nos diferentes tipos de capital de origem familiar propostas pela teoria sociológica de Bourdieu: cultural, social e econômico.
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Palabras clave:
Agricultura familiar, Tecnologia, Habitus