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Resumen de la Ponencia:
El trabajo discute las tendencias y contratendencias involucradas en el binomio neoliberalismo y autoritarismo en América Latina, tomando como casos centrales de análisis los gobiernos de Jair Bolsonaro (iniciado en 2019) en Brasil y el de Jeanine Áñez (2019-2021) en Bolivia. La propuesta traza comparaciones entre el bolsonarismo y el movimiento golpista que llevó a Añez al poder, con el objetivo de aprehender las similitudes y diferencias de estos procesos y proyectar algunas hipótesis sobre las superposiciones entre autoritarismo y neoliberalismo en los actuales proyectos de poder de extrema derecha. La coyuntura macro a la que se insertan estos gobiernos es la de la crisis post 2008. De manera destacada, Brasil sufre recesión, lenta recuperación y estancamiento económico desde 2015, mientras que Bolivia vive un momento económico diferente al escenario brasileño en 2019. En el debate entre perspectivas críticas, el ascenso actual de la extrema derecha es un fenómeno global asociado habitualmente a la coyuntura abierta por la crisis de 2008. Las crisis económicas tienden a imponer nuevas rondas de despojo, retirada de derechos y niveles de explotación más intensos y, por tanto, exigen un recrudecimiento de la represión violenta, provocando que se ajuste el patrón de dominación, ya que se reducen las posibilidades de construir conciliaciones y arreglos entre clases. En América Latina, este cambio presenta dinámicas particulares condicionados por formaciones sociales y tendencias de largo plazo. En este sentido, la historia de la dominación abiertamente coercitiva en la región – constituida por sociedades de origen colonial – va incluso más allá del debate sobre el fascismo clásico.Con estos antecedentes en cuenta, sería imposible no mencionar la dictadura de Pinochet que transformó a Chile en el primer laboratorio de choque neoliberal en 1973. El arreglo no lineal, pero posiblemente tendencial (lo que no significa ausencia de resistencias internas y fisuras) entre neoliberalismo, autoritarismo y conservadurismo no sólo se insinúa en la literatura de sus próceres – Hayek, Mises y Friedman – como, por supuesto, en su entrega. Además, tales características también pueden identificarse en los gobiernos de Reagan y Thatcher. Tales antecedentes pueden ser vistos como contrapuntos a la noción de que la crisis de 2008 es la causa de la atracción entre neoliberalismo, autoritarismo y conservadurismo, análisis de la coyuntura diseminada tras la elección de Trump en 2016. De hecho, parece que los momentos en que el orden neoliberal global convivía con gobiernos que ampliaban los derechos eran la excepción, no la regla. En alguna medida, busco contribuir en el debate sobre si los gobiernos ultraderechistas del post crisis de 2008, como los de Bolsonaro y Áñez, representan una continuidad o una singular ruptura con la derecha tradicional latinoamericana.
Introducción:
Meu objetivo é iniciar uma discussão sobre as atuais tendências e contratendências envolvidas na relação entre neoliberalismo e autoritarismo na América Latina, tomando como casos centrais de análise os governos de Jair Bolsonaro (2019-2022) no Brasil e o de Jeanine Áñez (entre novembro de 2019 e novembro de 2020) na Bolívia. Este trabalho é resultado de investigações atualmente em desenvolvimento no âmbito de minha pesquisa de doutorado na Universidade de Brasília (UnB). Portanto, possui um caráter de exposição de reflexões e resultados ainda preliminares e provisórios.
O objetivo da proposta é apreender as semelhanças e diferenças entre esses processos e projetar algumas hipóteses sobre as sobreposições entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo nos atuais projetos de poder de extrema direita na periferia do sistema capitalista, mais precisamente nos países latino-americanos Brasil e Bolívia. Nesse sentido, analiso se a extrema-direita em ascensão no pós-crise de 2008, como a liderada por Jair Bolsonaro no Brasil e a representada por figuras como Luis Fernando Camacho e Jeanine Áñez[1], representa uma continuidade ou uma singular ruptura histórica em relação à direita latino-americana hegemônica anteriormente a esse período. Em um nível macro de análise, busco confirmar a hipótese de que esses projetos se inserem em um contexto mais amplo de “periferização do mundo” (Canettieri, 2020), processo no qual a crise neoliberal e seu caráter resiliente têm expandido a condição periférica – ao meu entender, marcada pela precarização das condições de trabalho e de vida, violência estrutural[2], marginalização (Nun, 1978; Quijano, 1971), superexploração da força de trabalho (Marini, 2000; Martins, 2011) e majoração da superpopulação relativa (Marx, 2013) – para dentro da centralidade do sistema capitalista.
Cabe alertar que existem desafios metodológicos importantes na comparação entre governos que se desenvolvem em temporalidades assíncronas, apesar de que ambos estejam formalmente finalizados. Para próximos desenvolvimentos, pretendo traçar alguns apontamentos sobre como os atuais governos progressistas do Brasil e da Bolívia estão enfrentando a extrema-direita. No intuito de se conhecer as diferentes faces do objeto de estudo, penso ser necessário entender também como as extremas-direitas analisadas se comportam depois de terem perdido o controle do aparato estatal. Não por acaso, em abril de 2022, Bolsonaro perguntou aos seus apoiadores: “Alguém sabe onde está a senhora Jeanine Áñez nos dias de hoje? Está presa. Já tentou suicídio mais de uma vez. Sabe do que ela foi acusada? Atos antidemocráticos. Entenderam? É o que nós vivemos no Brasil atualmente” (Paz, 2022). A declaração revela que Bolsonaro, além de temer estar diante do próprio destino, não esconde a identificação e suscita a comparação entre seu governo – então no último ano – e o de Jeanine Áñez.
[1] Ambos se encontram presos no atual governo do Movimento ao Socialismo - MAS (trabalho completo enviado em fevereiro de 2023). Ao contrário do que se refere à liderança de Jair Bolsonaro, não seria possível chamar o movimento de extrema-direita na Bolívia de “añenismo” ou algo do gênero, visto que a então “interina” foi, na verdade, uma testa-de-ferro e chegou ao poder por uma série de fatores contingenciais.
[2] Nos últimos anos (Loth, 2021), venho buscando determinar e identificar mecanismos de causalidade e vinculação entre a dinâmica de acumulação do capital na periferia do sistema e processos de violência e extermínio contra camadas particulares da classe trabalhadora.
Desarrollo:
A conjuntura macro a que se inserem esses governos é de pós-crise do capitalismo global estalada a partir de 2008 e suas consequências de médio prazo. Entretanto, é necessário ter em conta as diferenças em termos de como e quando os impactos desse evento global, a crise econômica, são absorvidos por cada uma dessas formações sociais. Uma questão significativa, por exemplo, é o tempo que estes países tardaram em sofrer os impactos da debacle no crescimento econômico global. Naquele contexto, a queda da demanda e dos preços das commodities, das quais Brasil e Bolívia são cada vez mais dependentes e suscetíveis às flutuações internacionais, repercutiu diretamente na crise do padrão de conciliação de classes e de estabelecimento de consensos pelo menos desde 2015. Em 2016, o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) sofreu um impeachment – de caráter eminentemente político, mas sob alegações e pretextos técnicos e jurídicos – no Brasil; e na Bolívia, meses antes, Evo Morales foi derrotado em um referendo sobre a legitimidade de mais uma reeleição. Ambos os reveses, para além da ofensiva da direita, mostraram o descenso na capacidade desses governos de mobilizarem suas bases e apoios populares amplos.
No período, vários governos de direita passaram a alçar o poder na América Latina, dando fim à chamada Onda Rosa ou Progressista (Santos, 2018). O processo de direitização é também identificado, evidentemente, nos Estados Unidos com Donal Trump (2017-2020), na Europa – França, Itália, Polônia, Ucrânia, Hungria etc. – e em outros países periféricos – como Índia, Filipinas, Turquia etc. – indicando se tratar de um movimento global.
No Brasil, os resultados negativos da crise econômica foram sentidos com mais intensidade. Registrou-se recessão e um forte crescimento nas taxas de desemprego aberto, bem como da informalidade e do subemprego, além de uma aposta na austeridade, o chamado ajuste fiscal, que contrastava com o programa de governo apresentado e reeleito em 2014. No pleno auge da onda conservadora na América Latina, enquanto no Brasil era finalizado o primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro, na Bolívia, as consequências negativas não foram tão dramáticas em termos de recessão e a derrocada do bloco no poder só se concretizou com o golpe de novembro de 2019, depois da renúncia forçada de Evo Morales, García Linera e tantos outros membros do MAS na linha sucessória. Bolsonaro logrou sua eleição após o fim do governo extremamente impopular de Michel Temer (MDB) que, por sua vez, chegou ao poder por meio de um complô golpista contra a presidente Dilma Rousseff (PT). No entanto, Temer enfrentou dificuldades na imposição da reforma do sistema público de pensões, passando inclusive por uma greve geral que conseguiu um nível considerável de adesão. A inédita militarização do poder desde a redemocratização, prenunciada por Temer na escolha de um militar para o Ministério da Defesa e na intervenção federal no Rio de Janeiro (2018), e consolidada durante o governo Bolsonaro com a nomeação de mais de oito mil militares para cargos de governo, parece ter paralelo na Bolívia: lá o golpe teve como face protagonista militares em complô e policiais amotinados.
O ciclo progressista teve como um de seus resultados a redução da diferença entre as classes pobres, compostas em sua maioria por pessoas racializadas, e a chamada classe média. Também implicou a diminuição das desigualdades e econômicas e de incidência no poder político entre homens e mulheres, entre indígenas e brancos, negros e brancos, assim como beneficiou outras minorias políticas como a população LGBT+ (Saad-Filho, Morais, 2018). Ao se enxergar distante dos ricos, mas com mais dificuldade para contratar serviços à custa da superexploração da força de trabalho, a classe média, majoritariamente branca, sentiu uma desvalorização relativa de seu capital material e simbólico.
É importante mencionar o quanto os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimiento al Socialismo (MAS) por vezes desmobilizaram suas bases sociais ou as instrumentalizaram para legitimar projetos que iam contra seus antigos princípios (em especial no que se refere à estratégia neoextrativista (Svampa, 2019) e aos direitos da natureza e das comunidades originárias e tradicionais), o que desmotivou em partes a defensa de seus governos frente a ataques sucessivos da oposição e da imprensa corporativa.
No caso brasileiro, o mal-estar também afetava extratos mais baixos da classe trabalhadora urbana, em especial jovens, que também haviam sido beneficiados por programas de inclusão nos anos anteriores, mas que então desejavam satisfazer novas necessidades sociais e se sentiam indignados diante das más condições do transporte público e outros problemas de longa duração na educação pública e no sistema de saúde. Este sentimento amplamente revelando durante a Jornadas de Junho de 2013 foi em grande medida capturado por discursos pretensamente anti-sistêmicos que já não tinham respaldo na esquerda institucional. A crise foi entendida como uma consequência da incompetência administrativa, da corrupção e da grande extensão do Estado. Assim, a extrema-direita se apresentou como uma novidade e seus líderes como forasteiros que diziam o que pensavam sem filtros, dando expressão no espaço público às crenças mais preconceituosas, excludentes e violentas entranhadas no seio de uma sociedade de origem colonial.
A própria direita tradicional já vinha convencendo sistematicamente grande parte da população, por meio da imprensa corporativa, de que o maior problema dos países era a corrupção e que por isso os serviços públicos seguiam precários. Ao mesmo tempo, a difusão de ideias tecnocráticas fez com que parte da população depositasse confiança no poder judiciário supostamente apolítico, mais precisamente nas figuras relacionadas à Operação Lava-Jato no caso brasileiro.
Finalmente, a burguesia apostou que os governos de direita que apelavam ao conservadorismo e ao moralismo cristão fundamentalista seriam capazes de despertar afetos e apoio popular de setores não alcançados pelas organizações de esquerda e conseguiriam viabilizar as agendas que em tempos normais implicariam uma grande resistência social. Além do poder judiciário, os militares que haviam sido desacreditados pela ditadura – ainda que saídos impunes da transição democrática tutelada – começaram a se vender como técnicos salvadores da nação, incrivelmente, obliterando seu profundo histórico de corrupção e privilégios. Por seu lado, corporações policiais se sentiram moralmente liberadas para matar sem contestação. O Pacote Anticrime proposto pelo então ministro da Justiça de Bolsonaro Sérgio Moro, que incluía o Excludente de Ilicitude (praticamente uma licença para matar concedida às forças policiais), foi um dos maiores símbolos dessa legitimação.
Parcela significativa da população encontrava-se anestesiada pelas práticas gerenciais e burocráticas de governo, além das ações de desmobilização e da cooptação de lideranças populares. Ante a crise que havia recrudescido desde 2015, um governo que poderia mobilizar os afetos da população parecia uma boa alternativa para a implementação de reformas neoliberais. A estratégia foi levada a cabo no Brasil, com Luís Inácio Lula da Silva preso e Bolsonaro chegando ao poder com relativa popularidade.
Não obstante, no caso da Bolívia, apesar de que amplos setores da região da Media Luna e outros estratos sociais, sobretudo os majoritariamente brancos, muito ressentidos com o simbolismo e as implicações da construção de um Estado Plurinacional, estiveram mobilizados para tirar o MAS do poder, foi necessário um golpe de Estado ao estilo da estratégia de contra-insurgência da segunda metade do século XX. Os massacres perpetrados pelas forças armadas da Bolívia em repressão às mobilizações contra o golpe evidenciam a importante diferença nas dimensões de resistência dos movimentos populares em cada um dos países em análise. Pelo menos 27 pessoas foram mortas somente nos massacres de Sacaba e Senkata (Prensa Senado, 2020).
Além disso, parece-me relevante destacar o papel da conjuntura geopolítica regional e global para a concretização dos golpes. Na Bolívia, a intervenção do imperialismo, intensa e aberta, foi protagonizada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Assim como, não se deve deixar de mencionar a importância dos então governos de direita do Brasil e da Colômbia para os resultados alcançados pelo movimento golpista na Bolívia em 2019.
O processo de neoliberalização na América Latina possui alguns fatores econômicos básicos: a reprimarização, o extrativismo e a financeirização das economias, todos processos associados ao rentismo. A predominância do extrativismo e da economia primário-exportadora concede poder desmedido para as frações da classe dominante associadas ao capital estrangeiro que historicamente controlam os latifúndios e o campo no Brasil e na Bolívia. No caso específico do Brasil, não se realizou uma reforma agrária mesmo nos períodos de ascensão de governos desenvolvimentistas e de caráter popular, em consequência, trata-se de um dos países com a estrutura agrária mais concentrada e desigual do mundo. Na Bolívia, o latifúndio monocultor e exportador é predominante na região conhecida como Media Luna, onde se encontra o centro político de oposição aos governos de Evo Morales, em especial, Santa Cruz de La Sierra.
Nos dois países, a monocultura, a mineração e as grandes obras de infra-estrutura para transportar as mercadorias são fatores que favorecem conflitos violentos que vitimam populações tradicionais, em especial os indígenas, e outros grupos que lutam por acesso à terra e território. Nos parlamentos e na sociedade civil, os setores da burguesia que controlam o acesso à terra e aos recursos naturais são, em geral, os mais conservadores. Mesmo com a derrota de Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022, esse setor, tanto da economia legal quanto da ilegal (como o garimpo clandestino na Amazônia), segue majoritariamente apoiando Bolsonaro e até mesmo financiados manifestações golpistas, com singular entusiasmo pela pauta armamentista e, evidentemente, contra a demarcação de terras indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais e o combate à degradação ambiental. Os ramos do neoextrativismo também estão diretamente associados à forte elevação dos preços dos alimentos e do regresso do Brasil ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Em suma, são setores que reforçam um projeto que destoa do desenvolvimento de uma indústria para consumo interno e que remonta ao paradigma colonial.
Passado o momento excepcional de boom das commodities, a queda dos preços e a sucessiva ascensão de governos direitistas – na qual a crise econômica teve grande influência – não trouxeram o abandono da estratégia, mas levaram a uma intensificação da aposta no extrativismo como compensação das perdas. Assim, o extrativismo tornou-se um elo que, de certo modo, une a esquerda moderada, a direita e a extrema-direita na América Latina. Essa continuidade também reduz em muito o teor pós-neoliberal que possa haver sido encarnado por governos progressistas.
Um dos efeitos do processo de reprimarização é o acirramento da cisma entre a produção e o mercado consumidor interno. O trabalhador produz, mas não compra o que é produzido nacionalmente, então seu salário pode ser tendencialmente minimizado até os limites da sobrevivência. Na teoria marxista da dependência, segue-se a chamada modalidade predominante de exploração no capitalismo dependente, a superexploração da força de trabalho (Marini, 2000). A cisão entre mercado produtor e consumidor está na base da produção de um padrão excludente de cidadania.
Na atualidade, a produção monocultora e latifundista de soja e a mineração possuem uma alta composição de capital fixo e não são intensivas em trabalho, muito pelo contrário, são poucos os empregos gerados por hectare em comparação com as práticas de produção envolvidas na agricultura familiar, por exemplo. As commodities não se destinam à população e não são produzidas por uma ampla parcela da população, mesmo que sejam as atuais protagonistas da balança comercial. Reiteradamente, o núcleo do projeto neoextrativista é expulsar – no limite eliminar – pessoas dos territórios e não explorar seu trabalho. Isso está dramaticamente claro no caso da pressão massacrante promovida pelo garimpo contra os ianomâmis no Brasil. Para a investigação sobre a reatualização dessa paradigma colonial na extrema-direita brasileira, um pronunciamento de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, de abril de 1998, é perturbadoramente esclarecedor: “A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país” (Kotscho, 2022).
Outra face do padrão atual de acumulação: os lucros imediatistas do mercado financeiro tampouco dependem prioritariamente da produção de valor pela mão-de-obra. Pelo contrário, as promessas de audaciosos cortes na mobilização de capital variável (Marx, 2013) costumam aumentar o desempenho das empresas entre os acionistas.
O resultado é uma economia que promove por todos os lados padrões informais, flexíveis e precarizados de trabalho, afetando diretamente a capacidade da classe trabalhadora de politizar o debate econômico, pressionar por direitos e organizar greves e movimentos por melhores salários e condições de trabalho e de vida. As tendências atuais do mercado laboral desorganizam os setores subalternizados e debilitam sua posição nos conflitos de classes e igualmente sua influência no Estado. Portanto, essa situação promove um padrão de dominação de classe que cada vez mais abre espaço para a violência e a coerção contra os despossuídos.
Sob formas precárias de trabalho, as condições para a reprodução social estão em sério risco. Não é casualidade que esta parte da classe trabalhadora, situada nos estratos da chamada superpopulação relativa (Marx, 2013), se encontre sobrerrepresentada entre as vítimas de violência de Estado e constitua a clientela mais frequente do Estado Penal, que, como argumenta Loic Wacquant (2001), revela como o neoliberalismo não tem a ver com a diminuição do Estado, mas sim com a reconfiguração do Estado: o Estado Máximo Penal é como a contraparte do Estado Mínimo Social. Dessa forma, podemos entender que, na prática, o Estado de direito, um dos pilares da democracia liberal, não é linear e homogêneo, abarcando toda a população, mas descontínua, especialmente nas periferias do sistema capitalista.
Além disso, é necessário sinalizar o caráter de classe do Estado no capitalismo e sua funcionalidade essencial para a reprodução e acumulação do capital. Bem como a diferença entre o poder governamental e o aparelho estatal capitalista. O que é muito importante para entender o caso da da Onda Progressista Bolívia, na qual grupos que não fazem parte da classe dominante assumiram o poder, mas não lograram mudar radicalmente o Estado desde dentro e superar seu caráter capitalista, apesar de avanços como a constituição que promoveu uma inovação significativa: o estabelecimento do Estado Plurinacional. Tanto na Bolívia, por meio de todas as forças armadas e policiais (mas também com ação direta do imperialismo), como no Brasil, com protagonismo do poder judiciário e depois do parlamento (sem que os militares se omitissem obviamente, afinal, tutelam a democracia desde a abertura política), o aparato estatal se reorganiza e executa o golpe de Estado que expulsa do poder governos que não representavam diretamente as frações das classes dominantes internas e externas, voltando estas a governar sem precisar negociar com figuras susceptíveis à pressão de movimentos sociais progressistas.
Neoliberalismo e autoritarismo
Como já mencionei, a ascensão atual da extrema direita é um fenômeno global associado habitualmente na literatura à conjuntura aberta pela crise de 2008. No capitalismo, as crises econômicas tendem a impor, como forma de compensação, novas rodadas de despojo, espoliação de bens públicos e comunitários, retirada de direitos e níveis de exploração mais intensos e, por isso, exigem um recrudescimento da repressão violenta, provocando um ajuste no padrão de dominação, já que as possibilidades de construir conciliações e acordos entre classes se reduzem significativamente. Na América Latina, esta mudança apresenta dinâmicas particulares condicionadas por estruturas sociais e tendências de longa duração. Dessa forma, a história da dominação abertamente coercitiva na região – constituída por sociedades de origem colonial, escravistas e estruturalmente racistas e etnocêntricas – ultrapassa os debates sobre o fascismo clássico e a extrema-direita atual.
Tendo esses processos estruturais em conta, para pensar o autoritarismo no neoliberalismo, seria impossível não mencionar a ditadura militar de Augusto Pinochet que transformou o Chile no primeiro laboratório do choque neoliberal em 1973. Torna-se evidente que as transformações produzidas pelo neoliberalismo não foram promovidas apenas por meio de estratégias sutis de internalização e de construção de novas formas de vida, mas igualmente dependem de métodos incisivamente destrutivos e repressivos, como as estratégias de contra-insurgência (Lazzarato, 2019).
O arranjo contraditório e não linear, mas possivelmente tendencial (o que não significa ausência de resistências internas e fissuras) entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo não só se insinua na literatura de seus próceres – Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman[2] – como, por suposto, está em sua instauração sangrenta no Chile. Além disso, tais características também podem ser identificadas nos governos pioneiros do neoliberalismo na centralidade do sistema capitalista, como os de Ronald Reagan (1981-1989) e Margaret Thatcher (1979-1990).
Entendo que a seguinte observação escrita pela antropóloga Letícia Cesarino sobre o movimento neoconservador nos Estados Unidos é de extrema relevância histórica, e indica que, na maioria das ocasiões, o neoliberalismo realmente existente sempre flertou com o autoritarismo, uma vez que o neoconservadorismo ao negar o direito à existência e à prática de modos de vida dissidentes é essencialmente antidemocrático:
Essa afinidade se manifestava no resgate, a partir do governo Reagan, do espírito das chamadas poor laws do século XIX, que imputavam à família o dever de cuidar de seus membros quando esses estivessem desempregados, doentes ou velhos demais para trabalhar. Assim, num contexto de desmonte do Welfare State, esperava-se que a família absorvesse os efeitos de precarização gerados pelas políticas neoliberais: lembremos que a famosa frase de Thatcher “Não existe sociedade, apenas homens e mulheres individuais” não termina aí, mas continua com “e suas famílias” (Cesarino, 2019, p.540).
Essa afinidade que aqui analiso se repetiu mais uma vez em sucessivos “episódios” posteriores na América Latina. Por exemplo, os governos eleitos – e quase sequenciares – de Alberto Fujimori (1990-2000), que se autogolpeou em 1992, no Peru, e de Álvaro Uribe (2002-2010), na Colômbia, foram altamente repressivos e inequivocamente neoliberais e conservadores.
Esses casos anteriores poderiam ser entendidos como contrapontos à noção de que a crise de 2008 é a causa da atração entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo, uma análise de conjuntura bastante difundida após a eleição de Donald Trump em 2016. Ou poderiam reforçar contestações às posições que defendem que o que ocorre na atualidade, na verdade, é uma mutação que produziu algo que já não tem nada a ver com o neoliberalismo, e que talvez poderia ser chamada de “populismo” de extrema direita[3].
No entanto, concluo preliminarmente que os momentos em que a ordem neoliberal global conviveu com governos que ampliaram a democracia substancial e os direitos da cidadania foram a exceção, não a regra. Então, a Onda Rosa ou Progressista no século XXI teria sido um período muito atípico, intimamente relacionado à valorização também incomum dos produtos primários no mercado internacional.
[2] Assim o argumentam os autores europeus Chamayou (2019), Lazzarato (2019), Dardot e Laval (2016).
[3] Uma outra ideia tem sido aventada por filósofos e cientistas sociais de vários continentes: estaríamos presenciando algo análogo ao que Antonio Gramsci denominou como interregno (2007, p.134), um impasse imposto por certas conjunturas. Nos momentos de interregno, uma série de sintomas mórbidos manifestam-se por todos os lados, tornando a saída do labirinto ainda mais opaca para os sujeitos envolvidos nessa atmosfera sombria. O acirramento do racismo, melancolia, depressão, destruição de todas as formas de solidariedade, o conformismo e fragmentação das lutas e coletivos podem ser lidos como sintomas sociais que se manifestam em tempos nos quais o velho ainda não morreu e o parto do novo parece impossível.
Conclusiones:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. [...] Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX "ainda" sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável (Benjamin, 1994, p. 226).
Com esta citação da Tese 8 em Sobre o conceito de história (1940), desejo enfatizar que, em último caso, para a classe explorada e os setores oprimidos, o Estado de exceção é permanente. E não há garantias naturais na democracia liberal que assegurem que o fascismo sempre será superado, por existir uma tendência natural ao progresso que sempre coloca a ordem nas coisas no seu “devido” eixo. Derrotar o fascismo latente ou emergente é função do confronto político de classe, não uma mera correção de rumos.
É nosso trabalho como investigadores sociais compreender as particularidades dos movimentos e projetos de poder que levaram a Estados de exceção, como no fascismo, entendendo também que não há democracia substancial possível se há exploração e dominação de classe, racial e de gênero.
A busca pela singularidade dos fenômenos autoritários atuais torna-se ainda mais complexa na periferia do sistema capitalista, na qual muitos autores no século XX identificam tendências autoritárias de longa duração, entre eles Ruy Mauro Marini (2018), Heinz R. Sonntag (1974), Florestan Fernandes (1978), entre outros. Nesse sentido, as raízes coloniais que incluem a escravatura, a marginalização das massas populares e a consequente dependência econômica consolidada no período da independência e posterior industrialização tardia são processos cujas análises são inevitáveis no âmbito da presente agenda de pesquisa.
Nos últimos 40 anos, para além de todos os autores e autoras que defendem e defenderam a incompatibilidade entre democracia substancial e capitalismo (Wood, 2011), no campo marxista, no escopo da tradição foucaultiana e entre os defensores da heterodoxia econômica amplificou-se a atenção aos processos de desdemocratização e corrosão da democracia liberal – já limitada – desde dentro. Essa degradação tenderia a ser um fator impulsionado pelo padrão de acumulação neoliberal que possui desencadeamentos profundos não apenas em termos de remodelagem econômica, mas igualmente como produtor de uma subjetividade específica, uma subjetividade neoliberal (Dardot, Laval, 2016).
No tempo presente, alguns autores entendem que o acelerou e promoveu o devir-periférico do mundo (Canettieri, 2020) fazendo com que as teses utilizadas para analisar as particularidades das formações sociais da periferia agora também ganhem pertinência para a compreensão das transformações políticas e no mundo do trabalho em nível global. Nas investigações sobre a periferização que marca o tempo histórico atual, se destacam os problemas da violência e dos conflitos sociais, a crise da democracia liberal e a degradação das condições de trabalho e de vida das populações ao redor do globo.
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Palabras clave:
capitalismo periférico; extrema-direita; neoliberalismo; crise; bolsonarismo; golpe na Bolívia