Brasil -
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Resumen de la Ponencia:
Nesta comunicação busco pensar o cinema e seus imbricamentos políticos, por meio de produção do imaginário e memória, a partir do filme Bacurau (Mendonça e Dornelles, 2019) e o contexto brasileiro; atualmente um governo de extrema direita, que aponta para recolonização e subalternização internacional e ataca o cinema nacional. Evidencia-se uma arena em que os sentidos de povo e da história brasileira estão em ampla disputa. O imaginário e as formas de representar são questões essenciais para a ideia de nação, principalmente se admitirmos a noção de comunidades imaginadas e Benedict Anderson (2008). Aqui, junto a noção de memórias subterrâneas (Pollak, 1989) à ideia de nações enquanto comunidades imaginadas (Anderson, 2008) e a visão do cinema como produtor de memórias e imaginários. Compreendo Bacurau na trilha dos cinemas nacionais do terceiro mundo, puxando um debate que foi central para o Cinema Novo brasileiro que é a ideia de povo, em uma reapropriação do cinema enquanto arma anticolonial, formulando uma estética da resistência (Stam; Shohat 2006) nas disputas de imaginários e memória nacionais. Por fim, vemos em Bacurau que a “dominação política requer a definição da história e da memória” (ZAMBRANO; GNECCO, 2000, p.12), e os subalternos e dominados estão ativamente nessa luta. Bacurau foi produzido enquadrando memórias de insubordinação, que buscam produzir outras imagens do país. O povo em sua diversidade é o ponto de resistência heroica do filme, trazendo um horizonte utópico onde podemos alimentar nossa imaginação política para disputar as representações de identidades nacionais mais plurais, ou, quem sabe, como diria Appadurai (1997, p.33), imaginar para chegar além da nação.
Introducción:
Bacurau (2019) é um filme brasileiro dirigindo por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho. É um filme pernambucano, filmado no Sertão do Seridó do Rio Grande do Norte, acaba por ser compreendido como o apogeu de um momento muito frutífero do cinema nacional.
A exemplo de o filme ter ganho o prêmio do júri no 72 Festival de Cannes, e mesma edição o filme A vida invisível de Eurídice Gusmão (2019)dirigido pelo cearense Karim Ainouz arrematou Un Certain Regard prêmio de uma mostra paralela ao festival. Houve um período de 57 anos para que o Brasil voltasse a protagonizar um dos maiores festivais de cinema do mundo, o que indica o momento de visibilidade da produção nacional.
Este momento de reconhecimento não aconteceu por mágica, mas é fruto de todo um processo de fomento do cinema independente que ocorreu nos últimos 20 anos, que acabou por furar barreiras de público e mercado, começando a criar um nicho específico onde essas produções autorais pudessem circular de forma mais abrangente.
“Em 2001, o Brasil possuía 1.620 salas de cinema, com 30 filmes brasileiros lançados. Já em 2019, último ano antes da pandemia, foram lançados 153 longas-metragens brasileiros, num mercado com 3.496 salas” (Ikeda, 2022)
A revista Cahiers du Cinéma ajuda a legitimar o amadurecimento dessa produção trazendo, em sua edição do mês de setembro de 2019, um número especial sobre o cinema brasileiro organizado pelo crítico, membro do conselho de redação da revista e professor de cinema na Universidade Paris 8, Ariel Schweitzer. Este considera essa nova geração de cineastas brasileiros a melhor “desde o cinema novo e os chamados marginais” (Schweitzer como citado em Araújo, 2019). Os ano de 2019 marcou a produção cinematográfica brasileira, que estava produzindo e circulando uma quantidade inédita de filmes, rompendo as barreiras de grandes produtoras como a Globo Filme, ou, obrigando-as abraçar uma diversidade maior de filmes, o que reflete na construção e representação de uma identidade nacional mais diversa e plural para o cinema brasileiro. A descentralização das produções do eixo Rio – São Paulo, por exemplo, cria uma veia mais diversa para a produção nacional e por isso mesmo chama a atenção do mundo. Mas esse momento profícuo foi gestado em coletivos de cinema independentes, e vem de uma série de políticas públicas que começam na década de 90 e culminam nos anos 2000 como a criação da Agência Nacional de Cinema (ANCINE)- e a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). E, logo agora, em seu momento mais diverso, o cinema nacional passa a sofrer severos ataques do governo federal.
O Brasil vive desde 2018 em um governo de extrema-direita, ultraliberal, rentista e neoextrativista com orientação recolonizadora em pró dos Estados Unidos (Gomes & Mascarenhas, 2020; Albuquerque & Oliveira, 2021), onde os poucos avanços progressistas que iam em torno de uma independência nacional e de uma democratização das instituições estão sendo rapidamente retrocedidos. Essas mudanças, vem direcionando o país a um processo de recolonização e subalternização internacional, ao mesmo tempo que intensifica o colonialismo interno, fortificando fronteiras hierárquicas nacionais, que possuem fundamentos étnicos, econômicos, culturais e funcionam a partir de mecanismos de controle análogos aqueles usados pela lógica do colonialismo histórico (Casanova, 2007).
Neste contexto, antevejo, no que se refere aos ataques ao cinema nacional, um processo de destruição de uma identidade imagética reflexiva e plural que esse cinema vem buscando proporcionar. Em seu lugar, emerge de uma construção monolítica, conservadora, daquilo que viria a ser o corpo e sujeito nacional válido e passível de direitos, construído de forma massiva por imagens, áudios e textos que produzem uma ideia de cidadão do bem e um sentimento de unidade em torno deste cidadão (Bosatti, 2020). Este jogaria para a exceção todos os outros, em uma lógica hierárquica de dominação que configura a colonialidade do poder, que é “um dos elementos constituintes do padrão do poder capitalista” (Quintero, 2018). Essa colonialidade sobrevive ao fim das colônias históricas se perpetuando enquanto mecanismos de controle e subalternizações locais, internacionais e translocais ao Estado-Nação.
Desarrollo:
Nesta pesquisa o cinema é compreendido como produto de relações sociais que compreende uma conjuntura sociopolítica específica e um modo de produção que o Jonathan Beller (2003) vai chamar de modo de produção cinemático; que por sua vez incorpora a modernidade e seu modo de produção industrial na relação mesma entre espectador e imagem. Observa-se que no contexto de produção do capitalismo tardio essa relação opera junto à mídias paralelas ao cinema (televisão, computadores, internet, vídeo) enquanto ‘fábricas desterritorializadas” (Beller, 2003, p.91) onde o espectador trabalha performando ele próprio as imagens e agregando valor a estas. Nesse processo o espectador passar a ser ativo, trabalhando com e nas imagens, enquanto produtores de fetiches e imaginários, ajudando assim na ascensão de um mundo pautado nas visualidades. Surge então uma nova forma, uma forma cinemática de tratar o imaginário. E o imaginário, as formas de representar são questões essenciais para a ideia de nação, principalmente se admitirmos a noção de comunidades imaginadas e Benedict Anderson (2008).
De tal forma a produção de sentidos de unidade, povo e temporalidade a partir dos símbolos nacionais é permeada pela reprodutibilidade técnica (Anderson, 2008), que produz e reproduz imagens, textos e sons em larga escala sobre determinados territórios ajudando a formar maneiras coletivas de representar e experenciar o mundo.
Maurice Halbwachs (1920) irá pontuar o caráter sociológico e coletivo da memória, ligando as memórias individuais à acontecimentos históricos ou coletivos e vice versa, onde:
A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda seria naturalmente bem mais ampla que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto, que a memória de nossa vida apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso (Halbwachs, 1920, p.55)
Dessa forma, Halbwachs pontua uma base referencial comum que estrutura nossa memória individual, ao mesmo que a reinsere na memória coletiva. Halbwachs seguindo método durkheimiano, pensava na memória coletiva como uma produtora de solidariedade social, “fundamental para os sentimentos de pertencimento e o estabelecimento de “fronteiras socioculturais”, sendo responsável pela coesão social e a partir de uma comunidade afetiva, tendo a memória nacional enquanto a forma mais bem acabada da memória coletiva (Pollak, 1989, p.3).
Pollak (1989), irá reconhecer a importância de uma visão imbricada entre memória coletiva e memória individual e da importância destas para a produção de identidade e do Estado-Nação. Mas a partir de uma visão construtivista da memória coletiva faz uma crítica ao Halbwachs, buscando compreendê-la através dos atores sociais e dos processos que compõe as memórias coletivas. Desta forma irá centrar seus interesses de pesquisa no conflito e não na coesão, naquilo que está à margem tencionando a memória coletiva, que aqui vou chamar de memória nacional. Essa memória, que Pollak chama de subterrânea, torna a memória nacional um campo de constante disputa, construção e reinterpretação.
Nesse sentido, para fins de argumentação deste ensaio, soma-se às discussões de Pollak sobre memórias subterrâneas a ideia já apresentada de nações enquanto comunidades imaginadas (Anderson, 2008) e a visão do cinema como produtor de memórias e imaginações, inclusive, segundo o sociólogo francês o filme seria a forma mais bem acabada para a captação de emoções e lembranças enquanto confecção de objetos de memória: “donde seu papel crescente na formação e reorganização, e portanto no enquadramento da memória, ele [o filme] se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções” (POLLAK, 1989, p.11). Creio que aqui Pollak se refere a capacidade de criar projeções-identificações do cinema, o que é justamente o componente, que Edgar Moran (2014) identifica como mágico, como corporificador da ilusão do espectador, e, por que não, do cineasta.
Assim, o cinema é entendido com uma arma indispensável nas disputas pelos imaginários, na construção de memórias coletivas, memórias de resistência. Também é visto enquanto a forma artística símbolo da modernidade e do novo sendo logo incorporada como um produto de dominação cultural que é central para a perpetuação da noção de americanidade (Quijano & Wallerstein, 1992) no século XX e XXI, reproduzindo o American way of life para praticamente todo o mundo a partir de Hollywood e seu grande aparato industrial cinematográfico, que entrou abertamente em disputa com outros cinemas nacionais, muitas vezes atrasando e dificultando seu desenvolvimento e uma disputa totalmente desigual.
Como a exemplo do cinema inglês que em 1940 teve a quota de filmes locais exibidos nos cinemas da Inglaterra aumentadas pelo governo britânico, o que significava irremediavelmente uma diminuição de salas ocupadas pelo cinema americano. Hollywood respondeu com um boicote aos cinemas da Grã-Bretanha cortando a exibição de seus filmes por lá, a indústria nacional não conseguiu dar conta da demanda e muitos cinemas ameaçavam falir, obrigando o governo a retroceder, tornando a industrial local totalmente dependente dos EUA (Wollen, 1996).
O padrão que cinema hollywoodiano impôs aos outros cinemas no mundo funciona como mecanismo de colonização eurocêntrica. As indústrias nacionais tendiam a tentar reproduzir tal padrão em seus filmes por meio de uma estética que não condizia com a realidade da produção local, bem como as narrativas. Nesse sentido Peter Wollen (1996) faz uma distinção entre indústria nacional e cinema nacional, a indústria nacional engolida e colonizada por Hollywood, pautada pela homogeneidade, não seria a representante do cinema nacional que por sua vez abrangeria toda uma diversidade de forma e histórias absorvendo aí uma própria noção plural de povo.
Dessa forma compreendemos as disputas empreendidas pelos sentidos e produções das imagens no cinema a nível local e global, com relação tanto a um colonialismo interno quanto a uma resistência a americanidade (Quijano & Wallerstein, 1992) e ao eurocentrismo.
Há assim nos cinemas nacionais do terceiro mundo uma re-apropriação do cinema enquanto arma anti-colonial, formulando uma estética da resistência (Stam & Shohat, 2006) tanto local quanto global nas disputas daquilo que seria o povo, o sujeito e a própria nação. Isso inserido numa disputa do cinema nacional vs a industria nacional do cinema que reflete o campo da colonialidade do poder em relação a formas de dominação hierarquizadas, etnocentradas que estavam no colonialismo histórico e são continuadas no Estado-nação independente, e que através do esvaziamento de sentido e temporalidade mobilizam símbolos nacionais para implementar questões muitas vezes anti-nacionais, o que não é novidade já que o Estado-Nação foi ele próprio construído na esteira institucional deixada pelas velhas colônias (Anderson, 2008).
O cinema autoral no Brasil é construído a partir do Cinema Novo, que faz uma refuncionalização, ou seja, “uma transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista” (Bretch como citado em Benjamin, 1992, p. 127) do conceito de autor. Essa ressignificação se deu a partir do imbricamento entre noção de autoria e um cinema político e, na medida do possível, independente, que vai pautar a construção de um cinema de autor nacional anti-industrial e anticolonial.
Assim o autor-cineasta no contexto periférico de uma produção crítica acaba assumindo um discurso contraventor e político (Coutinho, 2018). Seja, esteticamente falando, ao transformar a precariedade em potência estética; seja na postura mesma do cineasta, visto como como uma figura atuante cultural e politicamente na sociedade. Ambas às formas são muito bem acabadas nos filmes e na figura de Glauber Rocha, um dos principais expoentes do Cinema Novo.
O movimento nasce da reflexão politica de jovens críticos e cineastas que queriam mudar o mundo e que buscavam produzir em resposta a dominação imperialista dos EUA à América Latina. Em oposição a essa dominação colonialista, queriam construir um cinema nacional popular, independente economicamente, que refletisse e pensasse as questões da realidade brasileira. Para isso, “buscavam apresentar novas imagens do Brasil fundamentadas na figura do povo”, uma estética do terceiro mundo (Figueirôa, 2021).
Essa busca por construir novas imagens do país em uma estética não colonizada e popular passa por revisões críticas e teóricas. A primeira delas no pós golpe militar, onde em 1967 com Terra em Transe Glauber Rocha busca compreender através de alegorias onde a esquerda havia errado. Deixando um certo otimismo e didatismo épico de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), escancara as contradições de um terceiro mundo em transe (Pierre, 1996), de um artista que quer mudar o mundo e se mostra incompreendido pelo público e ao mesmo tempo depende do financiamento de bancos para o empreendimento de seu projetos artísticos revolucionários.
Glauber transita dialeticamente entre a estética da fome (1964) e a estética do sonho (1971), mas sempre pensando o cinema nacional como uma arma política anti-colonial e anti-imperialista. O diretor busca repensar a própria atuação de um cinema político e a possibilidade de uma construção popular do mesmo, a relações entre arte e revolução. Segundo ele, “A arte revolucionária foi a palavra de ordem no Terceiro Mundo nos anos 60 e continuará a ser nesta década, acho, porém, que as mudanças de muitas condições políticas e mentais exige um desenvolvimento contínuo dos conceitos de arte revolucionária” (Rocha, [1971] 1996, p.135).
Em todo caso, o Glauber Rocha, figura central no Cinema Novo, era totalmente consciente do papel político do cinema na construção de representações e memórias coletivas, trazendo o passado para o presente de forma latente. Pois, “o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual do grupo” (Pollak, 1989) de uma nação. Valorizando paisagens e tipos populares brasileiros, mostrando a fome e o subdesenvolvimento enquanto potência estética para devorar o primeiro mundo e sair do lugar de subalternização:
(...)uma estética da violência antes de ser primitiva [é] revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror a força da cultura que ele explora. (Rocha, [1965] 1996, p.129)
Bacurau é constantemente remetido pela crítica à tradição cinema novista (Bentes, 2019; Suppia 2020; Fagundes 2019; Soares, 2020), a exemplo de um retorno e valorização de uma ideia de popular, do uso de atores não profissionais e de alegorias para expressar uma realidade subalterna nacional. Para Ivana Bentes (2019) o filme traça relações entre a Eztetyka da Fome e a Estética do sonho, de Glauber Rocha, em uma construção autoral que é feita no embate ao colonialismo, carregando as imagens de alegorias sangrentas. Uma violência/resistência - “Foi preciso um primeiro policial morto para que o Francês reconhecesse o Argelino” (Rocha, [1965] 1996, p. 129) - própria da fome, do apagamento daqueles que são explorados e jogados à margem do capitalismo.
Em Bacurau não há figurantes. Melhor dizendo, os figurantes tomam a cena, “fazendo das imagens o lugar comum das imagens do povo” (Didi-Huberman, 2017, p. 28). Há um enquadramento constante e privilegiado nos rostos das habitantes do povoado independente de ser a Sonia Braga ou um ator desconhecido, morador local da cidade de Barra. Os únicos tipos estigmatizados e descentrados, desprivilegiados imageticamente e narrativamente seriam as personagens estrangeiras. Eleva-se assim o povo e o povoado como personagem heroica e central e os americanos enquanto antagonistas bárbaros e estereotipados, gerando uma inversão política na forma como as imagens e representações são construídas no cinema hegemônico.
Pensando então Bacurau através do seu papel enquanto representante de um cinema nacional, herdeiro do Cinema Novo, que vem galgando cada vez mais espaço entre os espectadores do país e criando uma representação desse cinema para o mundo, a partir das imagens e alegorias que cria tanto para a situação política cultural do país quanto para o povo brasileiro, tentando abrangê-lo em uma imagem plural e desierarquizada. Gostaria de pontuar o lugar desse filme na disputa de memórias e imaginários pela ideia de nação e cidadão empreendida pelo governo do presidente Bolsonaro e sua fábrica de vídeos e imagens no geral, que circulam nas mídias móveis formando uma ideia de cidadão de bem e brasileiro.
O filme:
Bacurau é um povoado sertanejo fictício em um futuro despótico, não tão distante assim, onde execuções ocorrem oficialmente em praças públicas na cidade de São Paulo e são transmitidas pela televisão.
O povoado se encontra claramente à margem do país, esquecido por qualquer tipo de política pública, a exemplo da personagem que retorna a Bacurau para o enterro da avó trazer consigo vacinas e medicamentos que de outra forma não chegariam ao lugar. Mesmo o prefeito da cidade, cujo vilarejo é anexado, é capaz de negociar com as personagens sudestinas que auxiliam os estrangeiros em seus planos de extermínio do lugar.
O filme se inicia com a morte de sua matriarca, não a toa interpretada pela cirandeira Lia de Itamaracá, que representa uma força da cultura popular e por ter tais questões tão marcada no seu corpo e na sua biografia acaba por trazer tal força na representação de seu papel.

Figura 1 Frame do filme Bacurau, onde todo o povoado segue para o cemitério, no cortejo do enterro de dona Carmelita.
Após o enterro, os moradores de Bacurau descobrem que a localidade foi apagada do mapa, o que a crítica Stéphane Delórme chamou de sadismo cartográfico, no sentido de um tipo de crueldade que começa com um extermínio territorial, um povo sem território delimitado num mundo de Estados-Nação fica fora do guarda-chuva de diretos, passível a assentamentos, campos de concentração e extermínio como o é o caso dos palestinos na Faixa de Gaza. Mas a unidade de Bacurau não é restrita a fronteiras imaginadas, e a partir de tal apagamento as pessoas se unem mais para enfrentar a onda de violência que os espera.
Culminando na invasão do povoado por ‘gringos’ advindos dos EUA que participam de uma espécie de reality show macabro, onde os participantes matam pessoas que são justamente aqueles considerados involuntários da pátria (Viveiro de Castro, 2017), ou o excedente humano do modelo capitalista, tendo enquanto adendo ao fetiche do terror o uso de armas antigas apreciadas por colecionadores.
Os “gringos” são auxiliados em seu empreendimento macabro por sudestinos, que inseridos nos mecanismos do colonialismo interno se veem de forma superior aos conterrâneos brasileiros, que então seriam considerados de uma raça ou cultura inferior. É interessante a forma como o filme deixa expressa os mecanismos da colonialidade do poder que está sempre subalternizando, inferiorizando e até desumanizando os Outros para engendrar dispositivos de dominação, seja forma coerciva ou cognitiva. Por exemplo, o prefeito que negocia o vilarejo para os gringos praticarem sua barbaridade como se o lugar e seus habitantes fossem uma parque de diversões, os sudestinos que se sentem superiores aos moradores de Bacurau e se identificam com os americanos, que por sua vez se veem radicalmente diferentes e superiores aos sudestinos, deixando claro para estes segundos antes de matá-los, que eles não são iguais.
A população da cidade se une em toda sua pluralidade para se defender dos invasores, inclusive com a volta de moradores que não mais vivam ali, mostrando que não é tão fácil assim destruir o povo unido de Bacurau. Segundo Ivana Bentes (2019), Bacurau instaurou um laboratório pós-colonial, mostrando estratégias de resistência de autogestão, para sobreviver e criar o novo à margem de um capitalismo em crise o qual impõe sua governamentalidade pautada em uma necropolítica (Mbembe, 2016).
Resiste a partir de uma crítica à modernidade, que é pensada de forma inseparável do colonialismo, do racismo para a formulação um sistema mundo capitalista ao mesmo tempo causa efeito da americanidade (Quijano & Wallerstein, 1992).
Modernidade, cujo potencial destruidor e bárbaro é demonstrado fora da Europa muito antes dos horrores do holocausto na Segunda Guerra, onde, sob a luz do iluminismo no século XVIII, construiu-se pela primeira vez uma vaga noção de raça, que foi usada para designar o Outro, sempre em oposição ao homem, branco, cristão, europeu, apesar de seus efeitos etnocentrados já serem sentido e datados desde muito antes (Seyferth, 2002).
Mais tarde no século XIX através do evolucionismo e suas aclamadas pretensões científicas a ideia de raça foi mais fortemente elaborada, para dar conta de todos aqueles que se organizassem na contramão da ideia de progresso e de civilização tanto no velho continente quanto fora, que, portanto, precisavam ser civilizados, explorados, pesquisados, conhecidos através dessa grande onde destruidora que foi a modernidade para o mundo não europeu.
Assim, busco pensar os invasores em Bacurau dentro dessa missão-ritual modernizadora, que vê os povos do Sul ainda como corpos abertos a intervenções e disponíveis para sacrifícios 'rituais', que parecem necessários à atualização de uma sociedade pautada no individualismo, no espetáculo egocêntrico, reafirmando o conservadorismo que se volta para o obscurantismo do Iluminismo por meio do sangue da diferença, buscando assim a realização do ‘Eu’ hegemônico eleito pela modernidade, que deveria ser o cidadão de direitos do Estado-Nação e o Homem de Bem que o presidente Bolsonaro busca representar. Homem este que na verdade morre de medo de sucumbir diante das diferenças, da pluralidade, do Outro que é tudo aquilo que sobra desse Eu diminuto.
As imagens de Bolsonaro:
O ‘ritual’ que busca reencenar a barbárie tantas vezes vista nas tentativas de construção do moderno, não pode ocorrer se não como pastiche, uma violência banalizada mediada por câmeras que filmam um reality show macabro e de baixa qualidade para o divertimento do público americano. Da mesma forma os vídeos publicados pelo presidente para circular nos WhatsApps dos eleitores, eram vídeos esteticamente toscos, e intencionalmente mal construídos, sem sincronicidade de áudio e imagem, o que é chamado de “imagem pobre” (Steyerl como citado Bentes, 2019). Nesses vídeos, o presidente encenava toscamente, como se não restasse outra forma, também através de um pastiche, uma masculinidade agressiva e decadente, por exemplo, simulando em mais de uma ocasião a feitura de flexões (figura 2), comendo enquanto suja como uma criança um cachorro quente, ou um pão com leite condensado (figura 3); cuspindo, em plena pandemia, na cara das pessoas enquanto fala; fazendo uma muleta de metralhadora enquanto diz que vai metralhar os opositores em um comício, tudo isso gravado de forma amadora e transmitida nas redes sociais do presidente e de seus seguidores-eleitores.

Figura 2 - Presidente Jair Bolsonaro em visita a quartel grava vídeo simulando flexões.

Figura 3 Presidente Bolsonaro em live feita durante o café da manhã em que come sem prato na mesa pão com leite condensado.

Figura 4 Presidente Jair Bolsonaro em comissio realizado durante a campnha presidencial de 2018, fingindo que sua moleta é uma metradora enquanto diz que é para fuzilar todos os petistas.
Voltando ao filme:
A resistência no filme se dá pela união do devir índio, caboclo, queer, de toda a tecnologia que a modernidade não compreende, criando subjetividades que se opõe ao poder modernizador. Ou seja, o povo resiste através de uma violência consciente e pela simples existência de seus corpos, práticas e saberes, que são também formas de performar e manter viva a memória, enquanto práticas de memorização (Zambrano & Gnecco, 2000). Busca-se a construção da ideia de povo a partir da exaltação de memórias que Pollak (1989) chamou de subalternas em oposição a memória erigida pela Estado-Nação, em um confronto ativo das mais diversas histórias dissidentes (Zambrano & Gnecco, 2000).

Figura 5 Frame do filme de Bacurau, povoado depois da resistência ao ataque dos estrangeiros, enterram o único que sobreviveu.
O povoado acaba por construir alternativas ao esquecimento que a memória hegemônica lança a seu povo, através de uma autogestão anticolonial na montagem de um museu. O museu é uma herança institucional dos dispositivos de poder do colonialismo histórico, sendo ele e a “imaginação museológica profundamente políticos” (Anderson, 2008, p.246), geralmente são guardiões e organizadores das memórias e traumas nacionais, o que o torna um espaço de disputa para refuncionalização em um sentido anticolonial e de elaboração das memórias dissidentes, do passado dos Outros.
Assim o museu é um espaço simbólico de grande importância em Bacurau, que guarda de forma organizada seu passado, mas, é onde a população vai encontrar as armas para se defender dos invasores (Mourão, 2020). Há, nesse sentido, um uso político do passado como constituinte da identidade, memória e dos sentidos do presente vivido pelo povoado, e de onde o mesmo vai resgatar sua força e união para se defender dos que tentam destruí-los.

Figura 6 Frame do filme Bacurau, onde se ver o museu sendo aberto pela sua guardiã.
Quando os sudestinos chegam ao povoado são questionados se não pretendem conhecer o museu, porém imbuídos de sua arrogância e ignorância erigidas sob o colonialismo interno, acham absurdo e até engraçado que aquele lugar pequeno tenha história própria para contar, ou que de lá algo de relevante possa ser dito, talvez se tivessem entrado e conhecido a história do lugar já atravessada por tantas perdas, resistência e força o filme não tivesse continuado.
O museu possivelmente teria alertado os forasteiros o que estavam prestes a enfrentar, mas ele permanece fechado para os estrangeiros e o espectador, até o momento em que as armas são necessárias. Lá dentro, a personagem Lunga, une cangaceire trans queer, que havia saído do vilarejo numa vida de vilania, e que retorna para liderar a resistência, protagoniza uma das cenas mais violentas do filme, em que corta a cabeça de um invasor deixando as paredes e o chão do museu cobertos de sangue.

Figura 7 Frame do filme Bacurau, já no final do filme, os moradores do povoado limpam o museu que está repleto de sangue, e a curado do museu pede para que limpem tudo menos as paredes.
Conclusiones:
A memória coletiva é uma construção social e política, onde os subalternos ou dominados lutam constantemente para encontrar respaldo para suas vidas e histórias na sociedade. Essa luta é dolorosa e por vezes traumática. O museu de Bacurau além ser fonte de resistência também, ou por isso mesmo, guarda os traumas do povoado, deixando-os latentes para que não se esqueçam o quanto o presente e o (r)exitir de tal povo é feito de luta constante. Por isso, o sangue na parede do museu não é limpo, continua enquanto lembrança de um trauma e a potência de resistência de Bacurau.
No filme as imagens são produzidas para tomar partido de uma disputa imagética do imaginário, trazendo preocupações com representações que possam desestabilizar o olhar colonial. O povo em sua diversidade é o ponto de resistência heroica do filme, trazendo um horizonte utópico para que possamos alimentar nossa imaginação política para disputar as representações de identidades nacionais mais plurais ou, quem sabe, como diria Appadurai (1997, p.33), imaginar para chegar além da nação.
Como vimos, Bacurau, encarna múltiplas formas de resistência, tanto em seu mundo diegético, quanto como no próprio fazer cinema autoral no contexto de periferia no terceiro mundo, sob um governo que está numa disputa escancarada pelos sentidos de povo e da história do país. A exemplo das constantes menções honrosas feitas pelo presidente a torturadores conhecidos da ditadura militar de 1964, a insistência em chamar de revolução tal golpe, o incentivo de que se comemore o golpe nos quartéis, a ameaça de mudar os livros didáticos de história e ao ressuscitar leis autoritárias da época da ditadura, como a Lei de Segurança Nacional, contra seus opositores numa disputa que escancara o passado contido na significação do presente e seus entraves políticos.
Vemos assim que a “dominação política requer a definição da história e da memória” (Zambrano & Gnecco 2000, p.12), e os subalternos e dominados estão ativamente nessa luta. Bacurau, assim como muitos outros filmes, se coloca potencialmente ao lado da produção de enquadramentos de memórias de insubordinação, através das escolhas estéticas e políticas de enquadramento de imagens e sons dos cineastas, que buscam produzir outras imagens de um Brasil não hegemônico e não eurocêntrico.
Um Brasil que exalta a memória de João Pedro Teixeira, líder das ligas camponesas assassinado pela ditadura militar de 1964, que é o único nome citado por inteiro no final do filme, onde vemos e ouvimos homenagens a memória dos mortos do confronto que Bacurau acaba de enfrentar. Também faz referência a Marielle, que nos remete imediatamente a Marielle Franco, vereadora negra e lésbica assassinada por milicianos em 2018. Juntando os seus nomes a uma fila de outros mortos que constroem uma memória dissidente e de luta do país, que estavam buscando outras possibilidades mais justas de Brasil.
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Palabras clave:
Cinema Brasileiro, Memórias divergentes, Bacurau.