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Resumen de la Ponencia:
O objetivo desta comunicação é apresentar e discutir o ponto de vista de policiais militares do Rio de Janeiro sobre um sistema de rotulações que possibilita acionar uma distribuição seletiva de vigilância e punição sobre os sujeitos e seus espaços de permanência e circulação pela cidade. Trata-se de um desdobramento da pesquisa em andamento que analisa aspectos da construção social da categoria “envolvido-com” o crime. Examina-se, por um lado, a cartografia que orienta os fazeres policiais nos chamados territórios instáveis, expostos as disputas entre domínios armados e destes com a polícia, explorando as táticas discursivas e as manobras de sentido nas narrativas policiais sobre os significados do envolvimento com o crime. Por outro, a produção destas formas de policiamento como o modo de governo da esquina no qual o policial, o streetcorner politician, conjuga a seletividade da escolha de seu campo de vigilância com a prática de desigualar desiguais. Tem-se, com isso, um modo de policiar que se abre a autonomização e apropriação pessoalizada do “poder de polícia” e que se traduz na constituição de um tipo de governança policial que controla para saber e sabe para negociar no mercado ilícito. Evidencia-se um modo de governar pessoas, territórios, seus bens e suas interações que produz e faz uso de alfândegas itinerantes. Estas formas de policiar estimulam a emergência de governos autônomos, um tipo de perversão da polícia (pública e estatal) DE (afirmação do) BEM em um polícia (particular e miliciana) DOS (negócios que exploram) BENS nos territórios populares. Nesse contexto, o policial se torna uma empresa de si, ao operar como regulador das atividades legais e ilegais, formais e informais, legitimas e ilegítimas em espaços periféricos. Dentro dessa lógica, o (des)envolver-se policial implica uma delicada gestão como agente de regulação, seja quando resiste às oportunidades no mercado ilegal, seja quando “milicia” fazendo parte ou montando sua própria concessionária de prestação ilegal e informal de serviços essenciais. Implica em caminhar na corda bamba da convivência, conveniência e conivência com lado criminoso e bandido da vida. Basta estar do lado de favelado, passar perto da boca para ser visto como funcionário, sócio ou até mesmo patrão no mercado de ilícitos. Para problematizar os significados e sentidos contidos nos discursos policiais, adotou-se o referencial da antropologia cultural. Foram realizadas entrevistas com 15 policiais militares de ambos os sexos e dois grupos focais, ao longo dos anos 2017/19 e, ainda, conversas por meio das redes sociais e de chamadas de vídeo durante 2020 e 2021. O acesso aos participantes foi possível graças a pesquisas anteriores desenvolvidas há mais de vinte anos por uma das autoras deste artigo e, ainda, o diálogo com os policiais alunos do Bacharelado de segurança pública da Universidade Federal Fluminense/Brasil
Introducción:
Falar de polícia é falar do exercício de governo estatal ou não, público ou privado, legal ou ilegal, de fluxos de pessoas, bens e serviços. É situar uma expressão de governo itinerante e pervasiva, distribuído nas entradas, encruzilhadas e saídas dos grupos sociais. Um dispositivo móvel de gestão para produzir controles também móveis sobre as temporalidades e as territorialidades dos sujeitos. Um meio potencial e concreto de força para afirmar as distintas formas de cidadania e os contornos, inclusivos ou não, do status quo do pacto político-legal.
O artigo situa a filosofia das correições, a sociologia da decepção e a criminologia da desconfiança policiais e suas afetações na rotina policial militar. Registram-se suas performances no espaço público cujo propósito seria o de restaurar a ordem moral dos moradores dos territórios e áreas conflagradas. Ilustram uma saga de Sísifo para salvar, na medida do possível, alguns de seu próprio destino de ser “envolvido” nas malhas da perdição. Explicita-se a construção da autoridade heroica, destinada a ganhar a vida na hora da morte. A lutar contra o perigo virtual e constante de inimigos da boa ordem e da cidadania sacrificial. Enfatiza-se a visão paradoxal e desencantada dos sujeitos-homens-policiais que se dedicam a expressar seu pessimismo melancólico do policiar com poucas oportunidades de glória. A disputa de moralidades distintas, analisadas no decorrer do texto, inclui a narrativa da defesa de princípios morais que consideram violados por aqueles que fazem por merecer o rótulo de bandido ou criminosos.
Para compreender o pensar policial e os padrões atuais de policiamento, desenvolvemos uma moldura teórica na qual tem especial relevância o sintagma “envolvido-com-o-crime” mobilizado como uma forma de rotulação, vigilância e controle sobre e entre os grupos sociais, em especial àqueles subalternizados (Cecchetto, Muniz e Monteiro, 2018).
A pesquisa com policiais está em curso desde 2017. Ocorreu em favelas do Rio de Janeiro. Realizamos conversas informais, entrevistas e grupos focais com praças da PM e guardas municipais de sexo, gênero e cores diversos. Ressalte-se a presença mais expressiva de homens entre os entrevistados que, dada a clivagem institucional de gênero, tem a hegemonia nas atividades de policiamento[1].
O trabalho de campo seguiu a errática própria do mundo citadino policial até na sua folga. O acesso aos policiais se fez nos meios dos seus caminhos, entre deslocamentos intermitentes na região metropolitana. Uma metodologia em flashes do real, propositalmente à deriva e atravessado por interrupções sucessivas por conta da pandemia da COVID.
[1] Apesar da crescente presença das mulheres na patrulha ostensiva, parte expressiva das PMFEM está nas atividades internas da PM.
Desarrollo:
Filosofia correcional, sociologia da decepção e criminologia policial.
Policiar é um modo itinerante de conhecer para controlar. Um modo ambulante de classificar para rotular os sujeitos e seus mundos. Um modo andarilho de produzir obediências às regras de um jogo social com qualquer cidadania. Um modo volante de distribuição de coerções, com recurso potencial e concreto de força, para sustentar o status quo. Um dispositivo móvel de vigília e de regulação sobre uma realidade dinâmica, em movimento: a cidade, seus fluxos de ideias, memórias, imagens, pessoas, reputações, serviços, coisas e mercadorias. Uma tecnologia de governo à distância e em escala sobre deslocamentos de populações diversas em territórios distintos.
Policiar é conservar o “estado das coisas dentro da normalidade”. É transitar pelos locais para “manter a ordem” de cima sobre as ordens plurais de dentro e ao lado dos grupos sociais. É circular entre os sujeitos para contê-los em seus “devidos lugares” físicos, sociais e simbólicos. Acredita-se que “cada sociedade tem a polícia que merece”. Credita-se à polícia a sociedade que ela fez por merecer.
Os periféricos fardados e “paisanos” do pó da periferia vieram e para os lados contrários e em confronto por lá merecem voltar. Espera-se que o “policia” e o “favelado”, vindos de baixo e de longe, devam, como entregadores de serviços, pegar só a poeira das ruas da Zona Sul no seu trabalho de delivery. A ordem do dia para os PM é circular para manter a paz do lado cosmopolita do Rio. A ordem dos PM para os outros periféricos é circular só quando cumprem tarefas. Nem polícia, nem favelado devem ali “ficar de bobeira” depois do serviço feito.
Um cara na esquina, duas da manhã, olhando de um lado pro outro: filho, ele tá de sacanagem, ele tá envolvido com o tráfico. (Cabo PM).
Policiar para os praças vai do aquém ao além da lei para garantir “cobertura ostensiva” sobre o que acreditam ser a “moral da sociedade”, patrulhando o cumprimento dos seus “bons costumes”. É exercer governo, ao seu modo e segundo suas regras particulares, nos territórios populares sob arrendamento dos domínios armados e onde o “Estado não vai”.
O lema “servir e proteger”, bradado pelos “bravos guerreiros” é um fardo, uma “obrigação do ofício” superior ao dever profissional. Uma missão vivida como sina, uma vocação predestinada a perseguir um ideal “que nem todos podem entender na luta contra o mal”[1].
Vai lá, pega os seus melhores homens, homens de confiança, homens de combate, e vá preparado pra trocar tiro’. (G.F. Praças[2])
Cápsulas pelo caminho, marcas de tiro nas paredes, manchas escuras no chão formam os rastros de combates na favela. Como não ver? Projeteis, buracos de bala, sangue e combustível retratam indícios de confrontos em “áreas conflagradas” pela polícia ou com sua participação. Como antever? A produção da insegurança como projeto de poder, isto é, do regime do medo em suas práticas de exceção, fazem dos executores da política do “tiro, porrada e bomba” reféns do medo que disseminam, vítimas dos combates que travam e estrangeiros em seu próprio território de atuação (Muniz e Cecchetto, 2021).
Pelo acionamento da narrativa do medo que estrutura o campo discursivo da segurança no Rio de Janeiro, revalida-se uma procuração em aberto para policiar, abrindo uma exceção a mais na exigência democrática de limitação, especialização, desconcentração, descentralização e pluralização do poder de polícia. Experimentam a insegurança nas “áreas de risco”[3] por eles também fabricadas, seus front diários de batalha. Tornam-se, especialmente nas “comunidades carentes”, mas fartas de operação policial, zumbis-de-patrulhamento a vagarem sem alvos definidos e sob a mira dos olhares indistintos por detrás das portas que descem, das janelas que batem, dos portões que cerram à sua progressão pelos “territórios instáveis”, hostis à sua presença, e formas de ação.
O suplício que fortalece as fortes emoções e o sacrifício que revigora a razão missionária são dramatizados pelos PM por meio de provérbios edificantes que colocam a régua do destemor e da superação no alto, por sobre eles e acima do resto de nós, os ricos e pobres mortais policiados. Assim se pode suportar as suas vivências cruas de uma realidade que se revela cruel. “Vencedores vencem as dores” do ofício de salvar de si mesmos os desenganados, irrecuperáveis e perdidos na vida social. Não se faz por menos. O preço a ser pago é salgado: a vida eliminável de matáveis, a “vida perdida do inocente”, a “vida honrosa de um combatente”. Guerreiros sentem medo, mas se forjam como combatentes nas batalhas porque seguem adiante apoiando-se na máxima moral de que “a coragem não é a ausência de medo, é agir apesar do medo”.
No Rio dos PM, tantos são os medos de quem “dá medo” e faz deste a base temerosa de sua autoridade, a fonte do respeito temerário. Medo da “judiação” de dentro do sistema, do Estado nas suas manobras burocráticas para fazer covardias com o “desvalorizado servidor militar”.
Os praças PM acreditam que são injustiçados porque “fazem justiça” certa mesmo que com ações erradas, um sentenciamento certeiro feito por decisões tortuosas. Acreditam-se em prontidão para se defenderem da reputação enxovalhada de uma corporação incompreendida pela sua atuação em defesa da sociedade.
O dever-ser-heroico dos PM, sintetiza sua filosofia moral aprendida nas ruas, as “escolas da vida”. De sua visão de mundo emerge uma filosofia desencantada com os seres humanos que, mesmo falhando como “humanos direitos”, insistiriam em “manter o privilégio de ter direito aos direitos humanos”.
A filosofia moral dos PM prescreve as bases de um dever-saber-policial consolidado em uma sociologia da decepção com “esta sociedade que está aí”. Seu mito de origem habita o senso comum popular-policial e atravessa as visões conservadoras das camadas médias e das elites: “Portugal mandou a escória de prostitutas, assassinos e ladrões, e estes degenerados se misturaram com índios lascivos e africanos libidinosos para povoarem o Brasil”, sentencia o discurso da lei e da ordem. Esta origem colonial justifica seguirmos desiguais e disciplinados por controles tutelares exercidos por autoridades firmes e fortes, acima de nós e com “carta branca para agir”.
A sociológica policial instrumentaliza uma criminologia persecutória e corretora dos envolvimentos com o crime. Ela preconiza que se é da essência da alma humana “mentir e esconder algo da polícia”, há que confiar nas impressões das aparências e seus jogos de raça, gênero, orientação sexual, classe social, moradia, consumo etc.
Compleição física, roupa que está vestindo, cor de pele – a verdade é essa. Existe um estigma proposital na nossa classe. Aprendi com o mais antigo e passo pro mais moderno”. (G.F. Praças)
Há uma geografia de prestígio estruturado pela hierarquia que opõe bairros da zona sul e da zona norte no Rio de Janeiro[4]. Esse mapa de distinção de lugares e de “gente distinta” é um sensor classificatório que orienta as práticas dos PM nas ruas. Serve como um GPS moral do que se deve e se pode fazer em cada local e com cada sujeito, intuindo a “condição econômica” e a “colocação do indivíduo” no mercado de capitais social, político e cultural:
Na favela não tem capital simbólico. Na Zona. Sul tem que ter cuidado. Se houver o conflito que há na favela você tem que dar o tratamento legal. (Cabo PM)
Não há viagem classificatória perdida. A polícia sempre acha o que procura porque é ela que, ali nas esquinas-da-vida-cotidiana, controla categorizando os sujeitos sociais: “envolvido”, “mulher de bandido”, “semente do mal”, “paisano”, “Mike”[5]. Colisões tensas e até violentas que são carregadas de estigmas, dogmas, preconceitos que categorizam territórios, personagens e vinculações e que circulam na corporação, do alto ao baixo.
Tem-se um saber-fazer-presentista que constrói um tutorial sobre como identificar os envolvidos e seus graus de envolvimento distinguindo, no vivido imediato dos acontecimentos, os diversos tons de preto, os distintos tons de pobre, os variados tons de adequação ao padrão socioeconômico esperado. Ter do bom e do melhor dentro casa e jogar no corpo algum material de primeira estão fora do padrão desejado para o morador de favela e, por extensão metonímica, para os demais periféricos como os próprios policiais. Seu consumo deve atender as necessidades básicas de um estado disciplinar de sobrevivência para manter um estado conformado de sujeição. Consumo restrito ao indispensável corresponde a um acesso limitado aos bens de distinção e aos jogos de aparência que possibilitam mobilidades para dentro e no além do mundo da favela, deslocamentos entre estilos de vida. Estes se abrem para novos sentidos de pertencimento a outras realidades sociais e econômicas. Os modos do morador dos espaços populares deveriam reproduzir o mundo do pobre-esforçado que “luta muito para ter as coisas direito”. Mas as suas modas ambicionam mais que a linha branca de eletrodomésticos: vai-se de consumidor a cidadão que também paga seus impostos na cidade commodity (Harvey, 2014), das mercadorias políticas de Misse (2014) e dos impostos informais dos domínios armados de Muniz e Proença Jr (2007).
Seus modos e modas soam como uma ostentação provocativa que afronta as cercas do status quo mantidas pelos policiais em cada localidade. Elevados ao exagero, os espaços populares têm no dispêndio “acima da sua condição” com gestos, falas, trejeitos e objetos a exuberância de sua parte maldita (Bataille, 2013). A despesa “acima das posses”, é o lugar de subversão da ordem econômica excludente para ter as coisas e experimentar o conforto e a mobilidade da gente de bens no isolamento social, sem sair da favela, e no confinamento presentista, frente a escassez do amanhã. Dádiva é dívida, dívida é crédito, crédito é contrato (Graeber, 2016).
Policiar os perigos e incertezas, exige sagacidade para captar os detalhes, habilidade descrita como o feeling policial: “bater o olho e sentir algo suspeito”.
Se tu entras em uma casa e na cozinha tem ar-condicionado grande chance, 95%, dessa casa de ser de um vagabundo.. (G.F. Praças)
As construções narrativas de casos, pessoas, lugares, objetos e fenômenos são vinculadas a uma cronologia representada como plausível que fornece as minúcias sobre o que está acontecendo e um grau de explicação sobre o seus porque. Faz-se render a naturalização da hierarquia e a desigualdade social.
Tem-se um manual classificatório policial saído do acervo popular de receituários informais partilhados entre os sujeitos precarizados que vivem em “áreas deterioradas”, alvos privilegiados da vigilância policial. Isto se agrava quando a polícia, a política em armas, se torna armas da política da guerra contra o inimigo interno.
O saber-ser-filosófico, o dever-saber-sociológico e o saber-fazer-criminológico dos PM se articulam ungidos pela luta sagrada e fatalista contra o mal em seus modos de contágio do espírito pela política, lugar de privação da verdade, e de sedução da carne pelo mercado, lugar de provação das virtudes (Muniz,1999). Dos males da corrosão moral da sociedade, a paz do arrego é ponderada como um mal menor que produz o bem para o morador de favela e uns bens para certos policiais como uma contraprestação pela manutenção criminosa da ordem local. A rigidez draconiana da classificação e julgamento dos envolvimentos favelados tem como contraface um relativismo-total-flex apoiado numa moral contábil e numa ética utilitária sobre o envolvimento policiais.
Não vai morrer criança, não vai morrer polícia, não vai morrer morador”. “Eu tô falando de ajustes locais, imediatos, a ponta da linha, os ajustes imediatos. Tem que dar conta disso agora, tá cheio de criança, festa agora, natal. Vai ter troca de tiros, a bala vai voar, vai morrer velhinha, vai morrer criança. Vai ter paz no arrego? Então pega o arrego (Tenente PM)
Sorria ninguém precisa morrer! O negócio da polícia é negociar, administrar conflitos para sustentar a ordem da ocasião, interpretando a lei em benefício da sua manutenção provisória até o próximo conflito, provocado, espontâneo ou latente. Isto consiste em conciliar, a cada ocorrência, o mundo da lei com as leis dos mundos do asfalto, da favela. Isto corresponde a contornar, atravessar ou rasgar as normas legais para poder cumpri-las fazendo valer as regras locais do jogo. Esta é a virtude de quem está na fronteira entre realidades sociais. Esta é a fortuna de quem escolta as entradas e saídas dos grupos sociais. Pode-se escolher, bem ou mal, se morre morador, se morre polícia, quem mata ou deixa morrer.
A violência policial parece trazer “mais problemas para comunidade, para a polícia, para o governo e para o pessoal dos direitos humanos” que a corrupção policial. Violência e corrupção policiais não são situadas, na narrativa policial, como faces de uma mesma moeda: a autonomização predatória do poder de polícia. Uma e outra são vistas como traços pessoais, dissociados e independentes que apontam para variações de personalidades profissionais distintas. Uma e outra desfrutam de fontes de legitimidade quando conveniente e de mantos de legalidade quando oportuno, configurando mandatos policiais informais com chancelas morais e institucionais. Se matar (quem merece) em nome da lei tem mais méritos morais, arregar em nome da ordem tem maiores rendimentos político-econômicos: negociam-se vidas de uma “gente sem CPF” para que o CNPJ do crime não possa parar, nem na pandemia da COVID.
Pergunta a mãe da criança que morreu de bala perdida: prefere que o policial pegue a “prata” para não ter um tiroteio ou a tua filha morta? Aqui embaixo no mundo real, onde as coisas estão acontecendo, é melhor que haja o arrego e ninguém morra é melhor, é o que eu penso.
Na odisseia policial há um periculoso inimigo que estaria lá, dentro de todos nós, corroendo a ordem idealizada como uniforme e harmônica. O grande vilão a ser combatido pelos centuriões-da-PM é o próprio conflito, suas naturezas e expressões. Este é visto como negativo porque se manifesta no confronto de paixões, intenções e interesses na arena pública da cidade.
Policiar torna-se, aqui, um confronto épico contra o conflito que, para Simmel, institui a nossa vida em comum e, paradoxalmente, ameaçaria, na moral devota dos PMs, o comum das nossas vidas por constituir o pior de nós mesmos: a existência da diferença que questiona a imposição de um sentido único sobre o social.
(G.F. Praças)
Todo dia os Sisifos-do-policiamento acreditam reabrir o mesmo caminho para seguirem, solitários e incompreendidos, com sua marcha civilizatória. Uma marcha que faz o relógio evolutivo andar para trás na vida dos envolvidos com o crime, reincidentes, ou para frente na história de quem se esforçou e escapou das cercas do envolvimento, sejam eles policiais ou não. Assiste-se a um regime policial de produção e disputa por uma narrativa de verdade sobre o mundo que se faz policiado.
Eles [moradores da periferia] têm muita dificuldade, muito grande, em aceitar a presença policial. (G.F. Praças)
O modo PM de conhecer é um amálgama de distintas teorias sobre o indivíduo e a sociedade. Manobra com uma natureza humana comum caracterizada por um sujeito moral e psicológico universal que desliza suas explicações do aspecto mais singular ao atributo mais geral dos sujeitos e suas realidades sociais (Muniz, 2012).
Este é um saber-prescritivo-da salvação de nós mesmos. Sua filosofia moral faz uso de um messianismo correcional curativo. Haveria uma missão catequista para os “PMs vocacionados” - “dar segurança à sociedade”-, que exige sacrifícios compulsórios para eles e voluntários para todos.
Polícia foi criada para marretar, pra tirar direitos, pra garantir o desmando da Coroa contra os direitos constitucionais. Por isso essa resistência do povo da comunidade com a gente”. (G.F. Praças)
“Soltar o dedo”, “sentar a mão”, ir “na base da violência” seria a única língua que a periferia abusada seria capaz de entender. O polícia, de lá também, sabe disso. A violência é um tipo de pedagogia adequada às favelas que mostra abuso de poder, mas com deferência e interesse de quem ensina para quem recebe a heterodoxa lição: “fazemos um favor”.
“Escrachar-e-dar-dura” são legitimados pelo poder de defender a sociedade. O stop-and-frisk carioca é mais que um procedimento. É um modo de ser citadino e fazer a cidade: uma moral cívica policial. Liberar a liberdade para o alto em favor dos “cidadãos-dos-bens”, obstruir a liberdade para baixo em defesa dos “cidadãos-de-bem”: defesa da “liberdade de cada um”, ancorada nos ‘valores tradicionais’ do neoliberalismo popular.
Para o PM-sujeito-homem-de-bem há que exibir uma masculinidade ostentatória, heteronormativa, atestada por seus “companheiros-de-farda” e outros homólogos (Cecchetto, 2004).
Vivifica-se um saber ora cifrado com as palavras, ora proselitista nos seus sermões corretivos, morais e físicos. O apetite ordenador que envolve todos em sua suspeição, que nada fica de fora, gera ambiguidades, sobras do esforço classificatório que requerem sucessivos confinamentos dos sujeitos pelos rótulos.
Peguei a mulher cheirando no vaso, meti o pé na porta do banheiro dei um bico na tampa do vaso, joguei o pó fora. Ela foi pra casa, tomou banho, trocou de roupa e foi pra DP: assina aí, é teu. Abuso de autoridade. (G.F. Praças)
Rotular é preciso e policiar é impreciso. Requer superar indefinições classificatórias vindas dos imponderáveis sociais da vida. Se a “polícia é para quem precisa de polícia”, um saber do (des)envolvimento vigilante revela uma escolha produtiva. Voltar-se para quem a rotulação e suas gradações apresentem maiores rendimentos de controle: “quem tem um pé no crime” ou é portador de marcadores sociais da diferença vistos como desvantajosos.
O saber-dos-passaportes sociais do PM das ruas do Rio é um conhecer casuístico. Sua disposição reguladora, diante das múltiplas e simultâneas causas dos fenômenos humanos, apoia-se em uma moral evolucionária. Espera-se reduzir a complexidade social e generalizar-se por meio de uma sobredeterminação causal que estabelece estágios civilizatórios dos envolvimentos, tipos de envolvidos e seu horizonte de (des)envolvimento.
Ela anda com tanto ouro, vai chamar atenção, tem cara de "ganso". O relógio é caro, unha de gel, o cabelo é aplique 3D, tá gastando dinheiro. (G.F. Praças)
Os PM desfrutam de uma memória acumulativa para produção deste controle social ampliado. Nada deve escapar da sanha classificatória policial. Caiu na rede policial, envolvido está, envolvido foi ou envolvido será.
Vê-se a serventia da abordagem evolucionista linear para os empreendimentos policiais. Justifica as tutelas seletivas sob medida para cada sujeito, segundo a etapa evolutiva, crescente ou decrescente, colocadas pelas réguas do PM-da-esquina. Justifica os tratamentos distintos, com filtros sociais diferenciados, para protegerem os desiguais deles mesmos.
O saber dos PM-na-rua é um saber de propriedades normativas sobre a vida social e de oportunidades instrumentais sobre o que dela se pode extrair em proveito próprio. Este saber-empiricista, esculpido nas práticas de policiamento, mobiliza argumentos que tenham serventia operacional para uma narrativa legitimatória dos seus ditos e feitos em cada abordagem policial. Esta racionalidade PM-bricouleur combina os elementos do pensar determinista para agregar estatuto de verdade às suas rotulações nas manobras interativas entre policiais e policiados. O determinismo geográfico serve às tipificações morais dos lugares fundamentadas nos elementos naturais (clima, ambiente, etc.).
O determinismo biológico é acionado para tipificar as espécies morais de indivíduos por seus “traços naturais” como raça, gênero, geração etc. O feeling policial enquadra: “adolescentes pretinhos, pode abordar que é ladrão”. O determinismo cultural presta para rotular as realidades sociais como mundos refratários, fechados em si e excludentes.
As determinações biológicas dos indivíduos, culturais dos grupos sociais e geográficas do “meio natural” onde vivem se mesclam e são acionadas enquanto são úteis ao modo policial pragmático de conhecer, criar e fundamentar os controles itinerantes e seletivos em sua deriva pela cidade. Um enquadramento funcionalista se mostra rentável como uma engenharia dos saberes de rua que glorifica a ordem e vivifica uma ortopedia social para mantê-la. Nada mais inconveniente para um saber hierárquico e da ordem, que vincula o normal ao que é estável e permanente, do que as mudanças, os desencaixes, as desorganizações do mundo real.
O saber-ver-do-PM faz crer que é o olho do panóptico de Bentham que tudo vê. Afirma-se uma natureza calculista, competitiva, explicitando a ambição monopolista dos controles das ruas. Um saber-agir que se apropria do realismo político e do pragmatismo, ao estilo de Maquiavel, para se orientar em um mundo de envolvidos em conspirações entre si e contra a polícia.
Este é um saber-atuarial, que faz contas e faz de conta, dissimulando a sua contabilidade, sempre que oportuno, porque incide sobre o tempo presente, o agora-já de sua atuação, o imediato da performance dos outros. Oculta de todos que as soluções policiais são sempre finitas e provisórias, porque policiar produz controles sobre os mundos e não mudanças estruturais do mundo. Um saber que sabe que o seu controle não muda as vontades de quem quer se envolver. Apenas altera a chance de poder estar envolvido.
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Um saber que produz, espera e acumula o pior de nós mesmos, é um saber que desconfia e que se mantém em estado de alerta. Constitui-se como um saber-testemunha-ocular do que se reputa como indecente, humilhante, cínico, desumano etc. Um saber que se abre às sucessivas colisões com “o lado desagradável da vida” é um saber-pessimista, sempre “preparado para o pior” do seu mundo e dos nossos mundos possíveis. Sua sociologia nativa é a do desencanto. A desconfiança generalizada e a suspeita prévia fazem parte dos dispositivos de sociabilidade que alimentam um circuito de trocas assimétricas entre os PM entre si e deles com os envolvidos, moderadas pela expectativa latente de uso ilegal e ilegítimo de força potencial e concreta.
Assiste-se a um saber-desgostoso que, para sobreviver aos dissabores da vida e da profissão, às decepções com seres incorrigíveis, se justifica como um saber suspeitoso dos mesmos e de todos. Acredita estar em alerta contra outros de si e os mesmos dos outros.
Não tenho vida social, não saio à noite. Vou na casa de qualquer um de dia, bebo, mas de noite estou na minha casa, eu não confio na noite. (G.F. Praças)
Tem-se um dever-saber-fazer para intervir no imediato dos acontecimentos. Este saber, premido pela ocasião, construído e recapitulado a cada atendimento, superestima uma leitura contextual dos eventos e dos seus cursos. Se esta contextualização é frequente na retórica policial de rua, fica claro para os pragmáticos policiais que a norma opera como uma referência para o agir. Os desvios e as divergências em relação à sua execução não são exceções ou acidentes de percurso. Na rua, se “faz tudo diferente” porque a aplicação da norma, cuja execução é discricionária, envolve adequá-la ao mundo real constituído por moralidades entrecruzadas (Muniz e Albernaz, 2016).
O dever-saber-fazer que normatiza a “normalidade”, desenvolve uma memória prodigiosa capaz de armazenar uma coleção de pessoas, coisas, locais e situações. As estórias narradas por PM são epopeias que descrevem, com detalhes, os indivíduos, os seus nomes e vulgos, os lugares, a “mecânica dos eventos”. Através de analogias e extrapolações, conecta-se o desconhecido com o que já foi mapeado. Por esse percurso cognitivo, os PM entrevistados reduzem a variedade de possibilidades de compreensão a um conjunto finito de chaves interpretativas que orientem o seu decidir e agir. Este é um saber-pragmático que se move por um projeto de poder utilitário e finalístico: a produção de uma verdade a serviço da suspeição.
[1] Frase do Hino da PMERJ. : https://www.letras.mus.br/hinos-marchas-militares/546104/. Último acesso em 20/07/22.
[2] Grupo focal com praças PM.
[3] Uma apreciação da categoria político-policial “área de risco” no Rio de Janeiro e suas implicações encontra-se em Miranda, Muniz e Correa (2019).
[4] Sobre os espaços urbanos e as representações policiais da ordem e seus processos de negociação ver Caruso (2016).
[5] Papa Mike é a sigla PM.
Conclusiones:
Saber para controlar, controlar para saber.
Policiar corresponde à produção de uma verdade substantiva do envolvimento como método no Rio de Janeiro. Uma verdade saída das regras morais do senso comum, redefinida por um processo de particularização, que singulariza cada encontro com a polícia, para disciplinar as verdades situacionais trazidas pelos envolvidos. O saber-prático-do-PM, de natureza política e coercitiva, (re)afirma uma ordem, a sua vontade de conhecer para produzir controles, mesmo que difusos e indiretos. Sua função classificatória persecutória ambiciona controlar para saber, saber para controlar. Suspeita-se para conhecer e seguir desconfiando de quem foi, é ou será envolvido-com. Há uma instrumentalidade que responde a uma intenção cognitiva – vigiar para conhecer. Sua missão primeira é controlar para só, então, entender, incluindo e excluindo, de forma seletiva, os sujeitos, suas visões de mundo e suas práticas. O dever-ser-e-fazer-policial-carioca revela um apetite ilimitado de poder. Poder ordenar, poder rotular, poder tutorar, poder governar sem ser governado. Uma vontade, um saber, um poder, emancipados da sociedade e contra o Estado.
Bibliografía:
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Caruso, H. Entre ruas, becos e esquinas. 2016. A construção da ordem na Lapa Cariosa. Brasilia: ED. UNB.
Cecchetto, F. 2004.Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV
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Cecchetto F, Muniz J, Monteiro R. A produção da vítima empreendedora de seu resgate social: juventudes, controles e envolvimentos. Cien Saude Colet 2018; 23(9):2803-2812.
Graeber, D. 2016. Dívida. Os primeiros 5.000 anos. São Paulo: Ed. Três Estrelas
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Palabras clave:
Rotulação policial. Representações policiais. Moralidades. Práticas policiais. Periferia. Favelas. Envolvido-com.