Brasil -
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Resumen de la Ponencia:
O objeto desta pesquisa foi a Teoria da Democracia de Norberto Bobbio. Em nosso estágio de pós-doutorado, procuramos analisar o conteúdo atual da democracia liberal tomando como referência as análises e ideias de Bobbi, antes da ascensão de governos conservadores no Brasil e na Itália. Agora o cerne da análise se concentrará na reconstrução do percurso teórico-categorial que o filósofo italiano conduziu até a elaboração do conceito de “mínima democracia processual”. Trata-se de uma pesquisa dialógica a partir da perspectiva da história das ideias políticas em sua relação com o conteúdo filosófico-político que o tema reproduz. Dessa forma, pretendemos investigar possíveis mudanças, ou mesmo inflexões, na Teoria da Democracia de Norberto Bobbio ocorridas entre o final da década de 1970 e durante a década de 1980, Analisando a “tensão dialética” entre os conceitos de liberdade e igualdade, presentes em sua obra. Ao mesmo tempo, buscaremos analisar como essa evolução conceitual se insere no contexto histórico do período, principalmente no que diz respeito ao debate teórico sobre o tema “democracia”, dadas as transformações observadas, como o fim do Guerra Fria, ou o avanço do neoliberalismo na Guerra ao Terror. O objetivo é analisar a evolução e os desdobramentos resultantes do processo de elaboração teórica do autor no período, seus elementos constitutivos, as convergências e possíveis contradições dentro de seu desenvolvimento conceitual, contextualizando-ou não debatendo e no diálogo das ideias políticas do seu tempo. . A pesquisa é organizada a partir de instrumentos metodológicos fundados na análise qualitativa, exegética e imanente de seus textos,
Introducción:
O núcleo temático de análise deste texto é a Teoria da Democracia desenvolvida pelo filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), tema que passamos a investigar no projeto intitulado “Norberto Bobbio e a Democracia do Futuro na Era (do Fim) dos Direitos", Desenvolvido durante o Estágio de Pós-Doutorado na Università Degli Studi di Urbino "Carlo Bo" - Itália, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (proc. 2019/06042-3 ). entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020.
Durante nossa pesquisa de pós-doutorado analisamos as formulações de Bobbi sobre o que o autor definiu como “regras mínimas” do método-democracia, abordando o fundamento filosófico que fortalece suas concepções e propostas políticas sobre o caráter liberal do Estado Democrático de Direito. Em seguida, comparamos esse referencial político-filosófico com a ascensão do discurso e dos governos conservadores/reacionários em dois países, Brasil e Itália, tentando identificar como esses fenômenos políticos colidem com as “regras do jogo democrático” propostas por Bobbio. A investigação insere-se em um importante debate atual que aponta para um processo de Crise da Democracia Liberal, o que se agrava à medida que verificamos, cada vez mais, a “ausência de debate público em espaços dilatados, em tempos acelerados do capitalismo contemporâneo” (RÊGO, 2013, p. 15).
Desarrollo:
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E DISCUSSÃO DO PROBLEMA
Em 1984, ver o público ou título O futuro da democracia . Nesta obra, Norberto Bobbio reúne uma série de reflexões elaboradas entre 1978 e a referida data de sua publicação. Na apresentação da primeira edição, intitulada "Premissas", o autor deixa claro que não trataria a questão da democracia sob uma perspectiva "negativa" ou "positiva", mas "num sentido axiologicamente neutro" (BOBBIO, 2009, p. 19), pois pretendia discutir as transformações dos quais passaram os regimes democráticos a partir do que identifica como suas “promessas não cumpridas”. Ou seja, das diferenças, contrastes e possíveis incontradições entre as teorizações dos chamados clássicos do pensamento democrático, uma forma histórico-social “real” que se conformou – e ainda se conforma, crescemos – à democracia não ocidental.
Aponta, ainda, que não era possível falar na crise da democracia, porque a ideia de crise levaria a um "colapso iminente" e mesmo que a democracia não gozasse, naquele momento, de "óptima saúde ", estaria longe de ser enterrado, porque “Nenhum dois regimes democráticos nascidos na Europa após a Segunda Guerra Mundial foram mortos por uma calamidade”. Mais do que isso, naquele momento histórico, jamais seria possível identificar, segundo ou autor, os dois ventos democratizantes sobre as “ditaduras do leste europeu”, uma vez que já era possível visualizar os “frenesis democráticos” que abalavam o mundo soviético , alemão Confirma-se que a raça humana que sobreviveu à catástrofe da Segunda Guerra conseguiu se manter, pois se transformou em democracias, e o fascismo demorou muito para se estabelecer como uma ameaça às democracias ocidentais (BOBBIO, 2009, p.
Ao nos debruçarmos sobre o conjunto da obra do autor, verificamos que sua definição de democracia resulta de um processo de elaboração teórica que remonta, no mínimo, há quatro décadas de investigações, formulações, debates e atuação política. Essa trajetória possui um núcleo teórico comum, qual seja, a defesa dos princípios liberais, numa chave de leitura neokantiana, em articulação com a tipificação das formas de governo oferecida por Hans Kelsen, mas que também dialoga com uma série de autores liberais, clássicos e contemporâneos ao próprio Bobbio[1]. No entanto, se é possível identificar uma “defesa intransigente” do liberalismo em sua articulação com a democracia, podemos apontar que a leitura procedimental sobre o método democrático defendido pelo autor nem sempre existiu, tendo sido elaborado ao longo de sua evolução conceitual.
Ao analisarmos o conjunto de sua volumosa obra, fundamentalmente seus escritos de maior densidade teórica, notamos a presença de uma “tensão dialética” – que é própria da tradição filosófica liberal – entre os princípios filosóficos da liberdade e da igualdade. Mesmo identificando o fundamento da liberdade como o direito natural primígeno a ser observado no regime democrático, a questão da igualdade abordada numa chave de elaboração que procurava “equilibrar” a valoração moral e conceitual entre os dois princípios, foi exaustivamente debatida por Bobbio, o que lhe conferiu a vinculação à corrente política denominada Social Liberalismo[3]. Do ponto de vista do contexto histórico, esse período se estende do imediato pós-2ª Guerra Mundial, até meados da década de 1980 e os respectivos avanços do Estado de Bem-estar nas democracias do Ocidente. É a partir das transformações observadas na segunda metade dos anos 1980, diante da derrubada do Muro de Berlim, do desaparecimento da União Soviética e o progressivo fim da Guerra Fria, o consecutivo avanço do neoliberalismo, mas também – principalmente – com a Guerra do Golfo, já em 1991, que o filósofo italiano claramente se posiciona a favor do princípio da liberdade em sua dialética relação com o princípio da igualdade. Sobretudo no plano das relações e conflitos internacionais, por identificar uma nova modalidade de conflitos originada por países autocráticos (BOBBIO, 2000).
Com essa proposição não estamos inferindo que Bobbio propõe uma mudança em sua teoria da democracia para adequá-la às transformações históricas de seu tempo. Tal como nosso autor propõe, pensar o futuro da democracia envolve um exercício de reconhecimento histórico daquilo que “não foi realizado enquanto pressuposto filosófico clássico” (BOBBIO, 2000), para então, fundamentado em procedimentos mínimos da democracia-método, discutir o presente e propor o futuro. Ao refazer o percurso de elaboração teórico-filosófica de seu pensamento, procuraremos compreendê-lo enquanto expressão do debate das ideias políticas de seu tempo, bem como as respostas práticas que o mesmo apontava, sobretudo naquilo que diz respeito à teoria normativa, já que, como sabemos, para o filósofo italiano esse era um dos sentidos fundamentais da ciência política.
Bobbio se fundamenta numa perspectiva liberal de democracia, cuja elaboração sintetiza uma série de autores clássicos do universo teórico contratualista, sobretudo Kant, conjugando elementos jurídicos do positivismo, principalmente Kelsen (RÊGO, 2004). Ao nos referirmos a um processo de síntese teórica, indicamos o esforço intelectivo do autor na elaboração de uma atualização histórica, de aggiornamento teórico de uma tradição filosófica que nasce como cosmologia burguesa a partir do século XV e que se reproduz hegemonicamente depois do século XVIII (MAZZEO, 2009 e 2019). Assim, o escopo de nossas investigações se concentrará, de forma dialógica, na reconstrução de seu pensamento – em seu constante diálogo com a história das ideias políticas – e na análise de sua evolução interna – analisando sua coerência, desdobramentos e possíveis inflexões, enquanto filosofia política da democracia.
Dito isso, apontamos de forma inicial a hipótese que pretendemos discutir no presente texto: é possível observar um momento de inflexão filosófico-conceitual na teoria da democracia proposta por Norberto Bobbio, localizado temporalmente na segunda metade da década de 1980. O primeiro momento do processo de elaboração de sua teoria democrática resulta de suas reflexões durante o período de avanço da democracia liberal no Ocidente, iniciado a partir de 1945, e oferece elementos conceituais à estruturação de uma forma de Estado democrático de direito. O segundo momento desse processo se reproduz a partir de finais da década de 1970, estendendo-se pelos anos 1980. Diante do avanço do neoliberalismo – sobretudo da retomada da proposição de um Estado mínimo – que redundaria no desmantelamento do Estado de Bem-estar, e da emergência de uma nova ordem mundial, pós-Guerra Fria, que prenunciava conflitos internacionais com novos conteúdos político-ideológicos (Guerra ao Terror), o filósofo italiano passa a propor uma teoria democrática procedimental, fundamentada em conteúdos mínimos, entendida como “regras do jogo” que garantissem os fundamentos de uma proposição liberal de democracia. Se o primeiro momento de elaboração se caracteriza pela busca permanente de um equilíbrio na tensão dialética entre os princípios da liberdade e igualdade políticas, no segundo momento, diante das transformações dos Estados democráticos (não previstas pelos clássicos da democracia), o princípio da liberdade será valorizado como o núcleo fundamental – e inegociável – da democracia do futuro.
Mesmo reconhecendo os princípios da liberdade e da igualdade como antitéticos (OLIVEIRA, 2016), em algumas obras como Qual socialismo?, Nem com Marx, nem contra Marx e Direita e Esquerda, o filósofo reproduz um esforço intelectivo na busca de um “termo médio” entre os princípios, que aqui identificamos como uma tentativa de “equilíbrio”, onde a liberdade só poderia se realizar plenamente na medida em que o Estado democrático de direito garantisse regras constitucionais que proporcionassem o máximo possível de igualdade de condições aos indivíduos. Tais preocupações não foram abandonadas pelo autor, mas passaram a figurar num segundo plano em sua obra, na medida em que este identifica as transformações pelas quais passava a democracia e, portanto, a necessidade de garantias mínimas para que esse regime pudesse continuar a existir no futuro. Em sua elaboração, as regras constitucionais são os pressupostos fundamentais para garantir o correto funcionamento dos procedimentos que caracterizam um regime democrático. Assim, propugna o Estado Liberal como o pressuposto histórico e jurídico do Estado Democrático, na medida em que são duplamente interdependentes: “na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático” e por sua vez, “na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais” (BOBBIO, 2009, p. 32 e 33).
Para o filósofo italiano, a prova cabal de que liberalismo e democracia estão essencialmente ligados e de que um não existe sem o outro é que, em momentos de crise “quando caem, caem juntos”, ou seja, a crise do Estado Liberal se expressa através da Crise da Democracia, e vice-e versa. A partir desse conjunto de argumentos, apontamos um questionamento que se desdobra dos anteriores: ao identificar as transformações pelas quais os regimes democráticos estavam passando desde a década de 1970, ao analisar os indícios do que viria a ser a derrocada do Leste Europeu e a ascensão de novas formas de autocracias, sobretudo no Oriente Médio, Bobbio teria proposto um “conteúdo mínimo” da democracia como forma de preservação do direito natural à liberdade, mesmo que isso significasse, desde uma perspectiva da organização social e jurídica dos Estados nacionais, lançar mão, ou tornar no mínimo secundário, o direito natural à igualdade? Seria essa uma proposição que garantiria a permanência do Estado Liberal, bem como da democracia? Tal postura teórica seria o resultado da absorção de elementos analíticos da tradição filosófica da pós-modernidade, diante dos novos paradigmas que as referidas transformações históricas colocaram às ciências sociais em geral e, naquilo que aqui nos interessa diretamente, à ciência política, sobretudo aquilo que o autor denominou Estados nacionais pluridemocráticos? Ou ainda, o que o autor identificou (BOBBIO, 2004) como uma 4ª geração de direitos, denominada de Bioética e Biodireito? Tais questionamentos orientarão complementarmente os esforços de nossa pesquisa.
Um dos principais e mais influentes estudiosos sobre o tema da democracia no século XX, Norberto Bobbio é muito claro e objetivo quanto ao gradiente teórico ao qual se vinculou. Passamos agora a identificar a forma como o autor discute a temática analisada.
Com clara e declarada orientação filosófica amparada na teoria liberal desenvolvida por Emmanuel Kant (BOBBIO, 1965, 1997, 2000, 2004), o filósofo italiano propõe uma análise exegética da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, obra de 1785, da Metafísica dos Costumes, de 1797 e Sobre a Paz Perpétua, de 1795 (BOBBIO, 1997, p. 49).
Fundamentado numa concepção individualista do Homem[4], que pode ser identificada na definição que “cada um de nós é um fim em si mesmo”, Kant (1993) desenvolve sua conceituação de liberdade a partir de uma relação, por assim dizer, de causa e efeito, pois entende que a liberdade é “a liberdade de agir segundo leis”, e as leis descrevem tais relações – de causa e efeito. Assim, “os homens são livres quando causados a agir” (ANDRADE, 2002, p. 53). Dessa definição se desdobra as conceituações de liberdade negativa e positiva, que Bobbio também utiliza. Em linhas gerais, liberdade em seu conceito negativo diz respeito a ação humana fundamentada no arbítrio, ausente de determinações externas. Mas daqui decorre o conceito positivo de liberdade. Todas ações são causadas e, portanto, obedecem a leis; estas estabelecem condições que limitam a liberdade do arbítrio. Sendo assim, a liberdade tem leis e estas são auto-impostas, ou seja, “a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais legislarem para si próprios” (ANDRADE, 2002, p. 54). Para o nosso intento, é fundamental apontar que todo edifício categórico-conceitual erigido por Kant, e que será em grande medida retomado por Bobbio, se fundamenta no conceito de liberdade acima exposto. Qualquer forma de governo e regime político que desconsidere tais elementos seriam essencialmente injustos. Assim nos assevera Andrade (2002, p.55): “Segundo Kant, a sociedade se organiza conforme a justiça, quando, nela, cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais. Kant é possivelmente o mais sólido e radical teórico do liberalismo.”.
Dessa forma, observamos também que a propriedade privada expressa um aspecto da liberdade, pois os indivíduos são livres para se apropriarem daquilo que não pertence a outrem. O Estado é assim o ente político responsável pela criação e promulgação de leis públicas universais, que expressam a disposição do conjunto social – mas também dos indivíduos – de viver em liberdade.
Ainda sobre o pensamento kantiano, parece-nos fundamental ao tema, a defesa da forma republicana como a mais adequada à organização do Estado que o filósofo desenvolve. Em A Paz Perpétua (2008, p. 138), Kant é enfático ao afirmar que a forma ideal de Estado é a República, pois esta se constitui, segundo o filósofo alemão, da “ideia do contrato originário” (p. 138). Isso porque para Kant, nessa forma de organização do Estado, os governantes se obrigam a se aproximarem do ponto de vista prático de uma Constituição política legítima. Segundo a leitura de Regis Andrade (2002, p. 63), na Constituição republicana – sinônimo de legítima – “(a) a lei é autônoma, isto é, manifesta a vontade do povo, e não a vontade de indivíduos ou grupos particulares”, além do que “(b) cada pessoa tem a posse do que é seu peremptoriamente, visto que pode valer-se da coação pública para garantir seus direitos”. Sendo assim, podemos inferir a partir do referido comentarista que o princípio da Constituição republicana é a liberdade, pois nela estariam conjugadas a soberania popular e a soberania dos indivíduos “na esfera juridicamente limitada dos seus interesses e valores particulares” (ANDRADE, 2002, p. 63).
É preciso, no entanto, apontar uma discussão indicada por Kant sobre a diferença da forma da “soberania (forma imperii)”, da “forma de governo (forma regiminis)”. Aqui não há que se confundir “constituição republicana com democrática”, pois é preciso evitar a confusão entre o exercício da soberania, a forma imperii e o regime político, a forma regiminis. Isso porque a primeira conceituação diz respeito ao indivíduo, ou grupo de indivíduos, ou ainda a toda a coletividade, que exerce o poder soberano, sendo classificado pelo autor como autocracia, aristocracia e democracia, respectivamente. Já a segunda conceituação, diz respeito ao modo fundado na Constituição, “no ato da vontade geral pela qual a massa se torna um povo”, de como o Estado se utiliza e faz uso de seu poder, e aqui o autor aponta apenas dois regimes, ou seja, a Constituição é “ou republicana, ou despótica”. Tomemos a definição do próprio autor, quando este aponta que
O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do legislativo; o despotismo é o princípio da execução/arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. (KANT, 2008, p. 140 e 141).
Para Kant é fundamental que o exercício do poder se articule como “síntese dos seus momentos particulares” (ANDRADE, 2002, p. 64), pois ao reproduzirem tal movimento negam-se mutuamente, subordinando os poderes que compõem o Estado uns aos outros. Ao negar-se a si própria, a soberania do Estado se reproduz através da mediação de instituições políticas, que devem ser representativas, pois a soberania não pode se encontrar representada por uma só pessoa, o que redundaria em despotismo (KANT, 2008, p. 141)[5].
Como apontado anteriormente, não se trata de mera reprodução da filosofia kantiana, mas sim da recomposição categórico-conceitual recolocada no contexto histórico das transformações da democracia no último quartel do século XX. E a primeira questão tratada pelo autor, ainda na parte introdutória da obra citada (BOBBIO, 2009, p. 24), define – e aqui já identificamos uma primeira aproximação de Kant – que “Poder e Direito” se constituem como elementos distintos de um mesmo processo, pois “só o poder pode criar direito e só o direito pode limitar o poder”. O “poder”, se tomado isoladamente, vincula-se aos Estados despóticos, uma vez que as leis derivariam de grandes legisladores, que estariam acima da sociedade. Daí a necessidade de sua articulação com o “direito”, que caracteriza os Estados democráticos, uma vez que as leis derivam do debate político, onde todos estarão submetidos ao conjunto legal (Constituição).
Complementar ao argumento acima apresentado, encontramos a definição do autor propondo que, mesmo sendo diferentes em essência, as doutrinas Liberal e Democrática repousam sobre uma concepção individualista da sociedade, pois “o primeiro separa o indivíduo do corpo orgânico da comunidade [...] a segunda o reúne aos outros homens singulares” para que dessa reunião “artificial” haja uma recomposição “como uma associação de indivíduos livres”. O Estado Liberal se caracteriza, assim, como o pressuposto histórico do Estado Democrático (BOBBIO, 2009, p. 32).
Tal como nos indica González (2005), as ideias políticas de Bobbio possuem um “corte liberal”. No entanto, seria necessário uma maior precisão nessa definição, uma vez que o autor não se vincularia à tradição conservadora, própria do neoliberalismo, mas sim à tradição progressista, ou seja, “O liberalismo de Bobbio vem da tradição política, não econômica”, o que o colocaria “mais próximo de Stuart Mill do ‘Governo Representativo’ que do Adam Smith da ‘Riqueza das Nações’” (GONZÁLEZ, 2005, p. 128).
A formulação acima abre espaço para o debate no interior da produção intelectual do filósofo italiano, que para muitos autores o colou em caminhos políticos aparentemente contraditórios, paralelos, fundamentalmente pelas suas elaborações em Direita e esquerda (1995) e Qual socialismo? (1987), entre outros escritos. Trata-se do que se usou denominar como liberal-socialismo ou social-liberalismo e que teria uma forte influência em nosso autor (MONDAINI, 2013)[6]. Tais formulações parodoxais, “que não se resolvem em uma suposta e ilusória síntese dialética” (FILIPPI; LAFER, 2004, p. 97) seriam uma das marcas do pensamento bobbiano. Para além da resolutibilidade ou não de tais paradoxos, as preocupações temáticas em sua obra apontam a sensibilidade de uma análise que busca reafirmar o primado liberal como fundamento da democracia, mas que não despreza as questões sociais desencadeadas pelas transformações do capitalismo a partir da década de 1970.
É preciso compreender que as discussões aqui travadas por Bobbio se inserem num contexto de ativismo político do filósofo. A concepção de uma democracia procedimental, do processo democrático como regras do jogo, tem como foco central a esquerda italiana no período mencionado, desenvolvida por um autor
[...] que não quer usar sua teoria para combater ou inviabilizar a alternativa de esquerda, mas deseja contribuir para a construção de uma alternativa de esquerda democrática. Sua defesa da necessidade do procedimento é de base normativa, reconhecendo a possibilidade de outras possibilidades, dialogando com elas, mas defendendo seu ponto de vista, e não uma suposta descrição da única forma possível (GONZALÉZ, 2005, p. 135).
Um autor que tem um profundo senso da história de seu país, das mazelas que o fascismo representou – e que Bobbio combateu diretamente – e que vê na defesa da democracia método a forma mais fecunda de se evitar um retorno ao passado, pois tinha clareza que “a história e o passado de um povo tem poderes modeladores que agem nas camadas mais profundas de sua memória e na sua capacidade de projetar o futuro” e que “a democracia supõe o direito, mas não qualquer direito”, pois “os conteúdos nas normas jurídicas devem ser regras constitucionais que garantam o poder da maioria, ao mesmo tempo que assegurem os limites desse mesmo poder” (RÊGO, 2004, p. 10-11). Mas que também, como nos demonstra Nogueira, preocupou-se em manter uma dúvida metódica rigorosa, buscando confrontar conceitos opostos, de forma que produzissem uma espécie de esclarecimento recíproco, “como fez nos diversos textos que dedicou à teoria democrática e particularmente à sua ideia ‘procedimental’ da democracia dos modernos”, sempre entendida “como sendo essencialmente uma realidade formal e um conjunto de regras e valores universais” (NOGUEIRA, 2004, p. 198). Nesse sentido, a “democracia será tratada como antítese irreconciliável da ditadura” (NOGUEIRA, 2013, p. 36).
Uma importante formulação ao nosso trabalho, apontada por Marco Aurélio Nogueira (2013, p. 60), constata que igualdade e liberdade sempre foram fins “supremos” perseguidos por Bobbio, mas que nem sempre “conseguiu fundamentar com suficiente clareza tal convicção”, sendo que essa “conclamação muitas vezes permaneceu abstrata e genérica demais e não se compreende por inteiro em que base social concreta ele imaginava ancorar e enraizar o igualitarismo”.
A partir de uma leitura crítica, Domenico Losurdo (2003, p. 115) afirma que a “chave de leitura sugerida por Bobbio e pela historiografia liberal é inadequada” quando se trata de “compreender os grandes debates que acompanham o desenvolvimento do pensamento moderno”. Em polêmico debate, travado através de artigos de jornais em 1992, Losurdo (2012) questiona as posições de apoio que Bobbio havia manifestado sobre a Guerra do Golfo e os desdobramentos da invasão estadunidense ao Iraque. Este responde se apoiando no argumento de que existem diferenças no desenvolvimento do jogo democrático quando tratamos de assuntos internacionais, pois as “coisas são (...) um pouco mais complicadas”, e continua:
Onde a força do direito é quase ausente, acaba prevalecendo o direito da força. Escrevi várias vezes que em um universo que não é democraticamente regulamentado e composto por uma esmagadora maioria de estados não democráticos, para um estado democrático é mais difícil, se não impossível, se comportar democraticamente. Em outras palavras, é muito mais difícil manter a fé nas regras da democracia em um universo com regras muito fracas do jogo e com parceiros que não respeitam nem mesmo essas (BOBBIO, apud: LOSURDO, 2012, p. 124 e 125)[7].
Identificamos, mais uma vez, um vínculo com a argumentação kantiana em A Paz Perpétua (2008), quando o filósofo alemão aponta a forma ideal da organização das nações em nível internacional, alicerçada nos princípios de uma confederação de repúblicas autônomas e soberanas. Esta, segundo Kant, seria a forma mais equilibrada de manter as relações entre Estados soberanos. Caso contrário, a existência de Estados que impõem através da força seus interesses sobre outros, coloca em risco os próprios mecanismos de regulação entre eles, uma vez que o Estado agredido tende a reagir, também através da força, para manter sua soberania. O próprio Bobbio (2000, p. 384) nos oferece uma definição de forma bastante clara ao afirmar que “Enquanto um Estado democrático viver em uma comunidade à qual pertencem Estados não-democráticos, e ela própria não é democrática, o regime dos Estados democráticos também será apenas uma democracia incompleta”.
De tais formulações se desdobra outra questão, por assim dizer secundária, que buscaremos investigar em nossa pesquisa: seria possível afirmar, acompanhando Johannes Agnoli (1971), que a democracia liberal se reproduz na contemporaneidade como “autocracia burguesa”, através do mecanismo parlamentar e do respectivo esvaziamento da participação política das classes sociais antagônicas?
Assim, como forma de síntese, indicamos o problema e a hipótese que orientarão nossas investigações. Problema: seria possível afirmar que a conceituação oferecida por Norberto Bobbio, no que diz respeito à sua Teoria da Democracia, passou por uma inflexão no seu processo de elaboração, mesmo mantendo seu núcleo filosófico original alicerçado no liberalismo? Se é possível observar essa mudança, em qual período, em que contexto histórico, quais as possíveis implicações teórico-filosóficas, bem como quais desdobramentos – as permanências e as transformações – seriam produzidos na concepção de democracia liberal do autor; Hipótese: é possível observar um momento de inflexão filosófico-conceitual na teoria da democracia proposta por Norberto Bobbio, localizado temporalmente entre o final da década de 1970 e o transcorrer dos anos 1980, sobretudo em sua segunda metade.
[1] Particularmente John Stuart Mill, Jeremy Bentham, Max Weber, Benjamin Constant, Carlo Rosselli, Guido Calogero, Piero Gobetti, Giovanni Sartori e Gino Germani, entre outros.
[3] Também chamada Socialismo Liberal ou Liberal Socialismo.
[4] Utilizamos aqui o conceito de Homem enquanto ser genérico, que expressa a humanidade e sua forma de ser, socialmente desenvolvida. A inicial maiúscula procura diferenciar a utilização do conceito de sua variante reproduzida no debate sobre gênero, que distingue homem e mulher (mas não só).
[5] Veja-se aqui como se articulam as noções de liberdade, negativa e positiva, a que fizemos referência anteriormente.
[6] Podemos encontrar a definição oferecida pela interpretação espanhola, que aponta para um caminho percorrido por Bobbio entre o “liberalismo socialista” e o “socialismo liberal” (FILIPPI; LAFER, 2004, p. 97-102). Ver também RÊGO (2004) e Nogueira (2004).
[7] Tradução nossa.
[8] Parte dessa bibliografia se encontra no item “Referências” desse projeto.
Conclusiones:
Em nossa pesquisa de pós-doutorado buscamos analisar se e como as “regras do jogo” democrático abririam espaço político para a “interrupção” ou o “bloqueio” da própria democracia. Alguns de nossos resultados parciais apontam para: a) nos parece importante tratar da questão da “democracia total”, já apontada por Bobbio em O futuro da democracia, como um elemento degradante da própria democracia. O filósofo italiano já havia indicado que há problemas que o desenvolvimento de novas tecnologias no campo da comunicação de massa, especialmente o desenvolvimento da Internet, pode ocasionar, na medida em que produzem o que ele chamou de “democracia em excesso”. O fenômeno apontado pelo autor italiano pode ser identificado com o uso das chamadas “redes sociais”, uma das duas formas pelas quais os movimentos políticos conservadores se apropriam e promovem seus discursos e candidaturas atuais (SANTOS JR., 2019), como forma de reproduzir uma “democracia direta” distorcida; b) outro elemento que nos parece central é o descompasso, pelo mesmo dizer, Observado entre as “regras do jogo democrático” e as condições econômico-materiais de grandes contingentes populacionais dentro de dois estados nacionais contemporâneos. Na medida em que as crises econômicas se aprofundam, e que as medidas de dois governos eleitos democraticamente visando a eliminação e/ou redução de direitos sociais, ainda são garantidas pelos Estados, como “única alternativa” possível, ou desacreditam as instituições políticas – sem Estado próprio –, bem, já que um regime democrático não se amplia e se aprofunda, abrindo espaço para a retirada de propostas políticas de teor conservador e reacionário, bem como de grandes manifestações que expressam o desgaste social causado pelo neoliberalismo.
Nesse sentido, ao propormos a continuidade e aprofundamento de nossas investigações, nos parece fundamental à articulação científica e metodológica entre os conceitos desenvolvidos por Bobbio e o objeto de estudo que aqui apresentamos, uma importante questão abordada por Nogueira (2014). Apesar de seu declarado e decidido empenho em desenvolver uma teoria política que promova os direitos sociais, o que lhe teria valido a caracterização como liberal e socialista, seria possível afirmar que há uma articulação entre a Teoria da Democracia proposta pelo filósofo italiano e uma matriz liberal econômica, tal como a de Adam Smith, uma vez que o conceito de “indivíduo” como fundamento filosófico os aproximaria? Mais do que isso, teria o autor inflexionado suas formulações na medida em que historicamente avançaram as medidas neoliberais, como forma de garantir uma “democracia mínima” para um “Estado mínimo”? Aqui se coloca outro elemento teórico que apontamos anteriormente, e que está presente na argumentação de nosso autor, qual seja, de que Liberalismo e Democracia sempre se desenvolveram historicamente como princípios distintos, mas interdependentes.
Na atualidade das Democracias Ocidentais observamos um descolamento entre tais fundamentos, uma vez que o discurso e prática políticas conservadoras – e também reacionárias – estão sendo reproduzidas como forma de aprofundamento de reformas econômicas de caráter liberal. Tais reformas, identificadas como uma nova onda “neoliberal”, ao proporem a eliminação da democratização dos direitos sociais, historicamente constituídos, só poderiam ser reproduzidas no plano político a partir de uma agenda de governos conservadores.
Ademais, em nosso entendimento a proposta de pesquisa apresentada possui elevado potencial de impacto, pela emergência histórica do tema, que versa sobre a crise dos regimes democráticos e suas (possíveis) transformações futuras, a partir da análise oferecida por um dos maiores filósofos do século XX que trataram do tema, Norberto Bobbio.
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Palabras clave:
Teoria da Democracia. Liberalismo social. Democracia Mínima. Tensão Dialética. Neoliberalismo. Guerra ao Terror.